A disputa em torno do chamado PL das fake news – o controverso projeto de lei de número 2630, que estipula regulamentação e fiscalização de plataformas digitais – escalou nesta terça-feira (02/05) para uma batalha direta entre o governo brasileiro e a Google, uma das maiores companhias de tecnologia do mundo.
A plataforma fixou na página inicial do seu buscador um link para um conteúdo contrário ao projeto na segunda-feira (01/05), véspera da data prevista para a votação da matéria na Câmara dos Deputados.
A Secretaria Nacional do Consumidor, órgão do Ministério da Justiça, acusou a empresa de praticar propaganda enganosa e fixou uma multa de R$ 1 milhão por hora, caso o Google não ajustasse esse conteúdo.
Após a decisão, o Google negou qualquer irregularidade, mas a página inicial do buscador deixou de exibir o link.
“Google removeu a publicidade cifrada e ilegal contida na sua página inicial. Esperamos que as plataformas desativem mecanismos de censura ou de violação à liberdade de expressão com isonomia. E seguimos abertos ao diálogo. A LEI deve prevalecer sobre o faroeste digital”, comemorou no Twitter o ministro da Justiça, Flávio Dino, depois do cumprimento da decisão.
Já o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, determinou nesta terça-feira que a Polícia Federal (PF) ouça presidentes das empresas Google, Meta, Spotify e Brasil Paralelo.
Ele também decidiu que as empresas devem ser multadas em R$ 150 mil se não removerem, em até um hora, “todos os anúncios, textos e informações veiculados, propagados e impulsionados a partir do blog oficial da Google com ataques ao PL 2630”.
A decisão do ministro se baseou em um levantamento do NetLab, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Segundo Moraes, essa análise “aponta que Google, Meta, Spotify e Brasil Paralelo anunciam e veiculam anúncios contra o PL 2630 (PL das Fake News) de forma opaca e burlando seus próprios termos de uso”.
O mesmo estudo foi usado pelo Ministério Público Federal para abrir uma investigação na segunda-feira.
A votação do PL pode ser adiada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), devido à incerteza sobre se há votos suficientes para aprová-lo.
A discussão da matéria — que tramita na Câmara desde 2020, após ser aprovada no Senado — voltou a ganhar fôlego depois dos recentes ataques violentos em escolas e dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro, quando bolsonaristas radicais invadiram as sedes dos Três Poderes, em Brasília.
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) apoia o projeto de lei com o argumento de que nova lei vai melhorar o combate à desinformação, ao discurso de ódio e a outros conteúdos criminosos no ambiente digital, enquanto opositores apontam riscos de as novas regras ferirem a liberdade de expressão.
Além do Google, que detém o YouTube, outras grandes empresas do setor (big techs) também são contra o PL, como Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp), Twitter e TikTok.
Entenda seguir em três pontos a briga entre governo e Google e por que o PL é alvo de disputas.
Por que governo fixou multa milionária contra o Google?
A Secretaria Nacional do Consumidor reconhece em sua decisão que a Google e outras empresas “têm o direito de se manifestar sobre leis e regulamentações que afetem os seus interesses”.
Nesse caso, porém, o órgão acusa a plataforma de não ter agido com transparência, já que não havia qualquer identificação para o usuário do buscador indicando que o conteúdo fixado seria um conteúdo patrocinado da própria Google.
“No caso de publicidade paga, usualmente o resultado do Google informa que há patrocínio. Nesse caso, não há informação nenhuma sobre o caráter publicitário do material”, argumenta a secretaria, na decisão contra a empresa.
Para o órgão, o conteúdo fixado em interesse próprio deve ser entendido como publicidade porque a empresa não está constituída no Brasil como um serviço de comunicação social, que gera conteúdo de natureza editorial.
“Não sendo editorial, trata-se de publicidade, com a incidência do art. 36 do CDC (Código de Defesa do Consumidor), que prevê que a publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal”, continua o órgão.
A decisão determina ainda a abertura de investigação administrativa para apurar denúncias de que o Google teria manipulado a indexação de resultados para buscas relacionados ao PL das fake news para que fosse exibido ao usuário predominantemente conteúdo crítico ao projeto de lei.
Para a secretaria, se isso tiver ocorrido sem que fosse informado ao usuário, a prática configuraria censura.
“Ainda, acaso confirmados os indícios da prática de intervenção dessa natureza por plataformas digitais com poder de mercado e posição dominante, tal busca ativa de interferência na formação da opinião política da sociedade civil mediante moderação direcionada de conteúdo sobre tal proposição legislativa, às vésperas da sua votação, pode ser tomada como modalidade de fraude mediante abuso de poder econômico”, diz ainda a decisão, ressaltando que isso pode levar a sanções no âmbito do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).
Diante desse entendimento, a Secretaria Nacional do Consumidor determinou à Google “sinalizar os conteúdos publicitários próprios publicados no âmbito de seus serviços, bem como informar os consumidores de eventual conflito de interesses que afetem a prestação de seus serviços”, assim como “informar qualquer interferência no sistema de indexação de buscas relativos ao debate do PL 2630”.
O órgão determinou também que a Google, num prazo de até duas horas após ser notificado da decisão, divulgasse em sua plataforma “contrapropaganda” para “informar devidamente os consumidores o interesse comercial da empresa no que concerne à referida proposição legislativa”.
Foi fixada ainda multa de R$ 1 milhão por hora, caso a decisão não fosse cumprida.
Além da decisão do governo, o Ministério Público Federal (MPF) também decidiu apurar se Google e Meta teriam violado direitos dos usuários ao promover conteúdo contra o projeto de lei.
Em ofício encaminhado à Google na segunda-feira, a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, do MPF de São Paulo, questionou a empresa sobre um levantamento do NetLab, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Segundo o órgão, essa análise identificou que links contrários ao PL “estariam aparecendo na primeira página do buscador não como propaganda, mas como resultado de uma suposta busca orgânica pelo termo ‘PL 2.630′”.
O NetLab apontou também que anúncios contrários à proposta pagos pela Google teriam sido veiculados no Facebook sem serem marcados como sensíveis, categoria definida pela Meta para a propaganda de temas políticos.
“Por isso, o MPF também encaminhou ofício à Meta para que preste informações sobre a possível falta de transparência em relação à publicidade e que apresente a lista de anúncios contratados pela Google envolvendo o Projeto de Lei 2.630/2020”, informou a Procuradoria.
Qual foi a resposta do Google?
Procurada pela reportagem, a Google disse que não comentaria a decisão da Secretaria Nacional do Consumidor ou a apuração do MPF, mas enviou uma manifestação em que rebate acusações de manipulações e defende seu posicionamento contrário ao projeto de lei.
A empresa diz que são falsas as alegações de que estaria ampliando o alcance de conteúdos contrários ao PL, em detrimento de outros favoráveis.
“É importante ressaltar que nunca alteramos manualmente as listas de resultados para favorecer a posição de uma página de web específica”, disse a Google.
Na manifestação, a empresa também afirma que está empenhada em explicar suas preocupações sobre o projeto de lei.
“Destacamos essas preocupações em campanhas de marketing em mídia tradicional e digital, incluindo em nossas plataformas. Também reforçamos este posicionamento no blog oficial do Google e na página inicial da Busca, por meio de uma mensagem com link sobre o PL 2630. São recursos que já utilizamos em diversas ocasiões, incluindo para estimular a vacinação durante a pandemia e o voto informado nas eleições”, argumentou a empresa.
A manifestação defende ainda mais debate antes da votação da proposta.
“Assim como diversos grupos e associações que se manifestaram a favor do adiamento da votação, entendemos que é preciso mais tempo para que o texto seja aprimorado e seguimos à disposição de parlamentares e autoridades públicas para esclarecer quaisquer dúvidas sobre como nossos produtos funcionam”.
Procurada pela BBC News Brasil, a Meta disse que “vai colaborar com o Ministério Público Federal nos termos da legislação aplicável”.
Por que ‘big techs’ são contra o PL das fake news?
O PL das fake news cria novas regras para a moderação de conteúdo por parte das plataformas digitais, que poderão ser punidas com elevadas multas se não agirem “diligentemente para prevenir e mitigar práticas ilícitas no âmbito de seus serviços”.
A proposta estabelece multa de até 10% do faturamento do grupo econômico no Brasil, caso a lei não seja cumprida.
Essa nova abordagem é inspirada em uma legislação mais dura recentemente adotada pela União Europeia, a Lei dos Serviços Digitais (DSA, na sigla em inglês).
Segundo as regras atuais brasileiras, estabelecidas no Marco Civil da Internet, as “big techs” não têm responsabilidade pelo conteúdo criado por terceiros e compartilhado em suas plataformas.
Dentro desse princípio, as empresas só são obrigadas a excluir conteúdos no Brasil em caso de decisão judicial.
Se o projeto de lei for aprovado, as plataformas poderão ser responsabilizadas civilmente pela circulação de conteúdos que se enquadrem nos seguintes crimes já tipificados na lei brasileira: crimes contra o Estado Democrático de Direito; atos de terrorismo e preparatórios de terrorismo; crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação; crimes contra crianças e adolescentes e de incitação à prática de crimes contra crianças e adolescentes; racismo; violência contra a mulher; e infração sanitária, por deixar de executar, dificultar ou opor-se à execução de medidas sanitárias quando sob situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional.
De acordo com o PL das fake news, são duas as situações em que as empresas podem ser punidas pela circulação desses conteúdos criminosos:
- Quando esse conteúdo for patrocinado ou impulsionado (ou seja, a plataforma receber algum pagamento para a exposição desse material);
- Quando as empresas falharem em conter a disseminação de conteúdo criminoso, obrigação prevista em seu “dever de cuidado”, um dos conceitos importados da legislação europeia (entenda melhor ao longo da reportagem).
Segundo o PL das fake news, as plataformas terão que produzir “relatórios de avaliação de risco sistêmico e transparência”, que serão usados para fiscalizar se as empresas estão cumprindo determinadas obrigações, como evitar a difusão de conteúdos ilícitos e garantir o direito à liberdade de expressão, de informação e de imprensa.
E, caso seja identificado “risco iminente de danos à dimensão coletiva de direitos fundamentais” ou “descumprimento das obrigações estabelecidas na seção da avaliação de risco sistêmico”, poderá ser acionado um “protocolo de segurança pelo prazo de até 30 dias, procedimento de natureza administrativa cujas etapas e objetivos deverão ser objeto de regulamentação próprio”.
É durante a vigência desse protocolo que as plataformas poderão ser punidas se falharem no seu “dever de cuidado”. E, para identificar se houve falha, o órgão fiscalizador vai analisar notificações dos próprios usuários sobre conteúdos criminosos disseminados na plataforma.
O PL prevê que não haverá punição por casos específicos, mas por eventual falha generalizada em conter esses conteúdos denunciados por usuários por meio das notificações.
A incorporação de conceitos da legislação europeia pelo PL brasileiro é considerada positiva pelo jurista Ricardo Campos, professor na Universidade Goethe, em Frankfurt e diretor do LGPD (Legal Grounds for Privacy Design), instituto voltado à proteção de dados. Na sua visão, isso vai dificultar que as empresas argumentem que não é possível seguir a lei, caso o PL seja aprovado.
“Essa versão (do projeto de lei) está se orientando nos pilares centrais do regulamento europeu. E isso é ruim para as plataformas porque, se passar (a aprovação do PL), como na Europa vai seguir a lei e no Brasil não?”, ressaltou.
Para Campos, a oposição das “big techs” não decorre de uma preocupação com a liberdade de expressão, mas com a resistência aos os novos custos e limitações que a regulamentação trará para o setor.
As grandes empresas, por sua vez, dizem que incertezas sobre o que se enquadraria na lei poderão levar a retirada de conteúdos legítimos.
“Sem os parâmetros de proteção do Marco Civil da Internet e com as novas ameaças de multas, as empresas seriam estimuladas a remover discursos legítimos, resultando em um bloqueio excessivo e uma nova forma de censura”, disse a Google, em uma manifestação.
“Quando pensamos no YouTube ou na Busca do Google, que já têm mecanismos de denúncia disponíveis para usuários, a redação atual do PL 2630 cria um sistema que pode incentivar abusos, permitindo que pessoas e grupos mal-intencionados inundem nossos sistemas com requerimentos para remover conteúdos sem nenhuma proteção legal”, reclama ainda a empresa.
Mas as novas regras contra conteúdos criminosos não são a única polêmica. O texto que tramita na Câmara também trouxe dispositivos novos em relação ao aprovado no Senado, ampliando o escopo do PL.
A nova versão da proposta prevê, por exemplo, que grandes empresas de tecnologia remunerem os autores de conteúdo jornalístico e artístico compartilhados em suas plataformas.
Essa medida é apoiada pela Associação Nacional de Jornais (ANJ), a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT) e artistas como Marisa Monte, Glória Pires e Caetano Veloso.
“Como já ocorre em outros países, a remuneração da atividade jornalística por plataformas de tecnologia pode ser um elemento decisivo para a formação de um ecossistema jornalístico amplo, diverso e saudável, capaz de se opor à difusão da desinformação e dos discursos de ódio. Tal ecossistema é essencial para a manutenção da própria democracia”, diz nota da ANJ.
Por outro lado, grandes empresas afetadas dizem que a forma como o PL estabelece essas remunerações obrigatórias pode inviabilizar a oferta de serviços gratuitos, como ocorre hoje.
Elas também alegam que o PL blinda qualquer empresa jornalística, mesmo que individual (formada por apenas um profissional), de ter conteúdos removidos caso desrespeitem regras das plataformas.
Segundo o projeto de lei, somente conteúdos que se enquadrem nos crimes previstos na proposta poderiam ser retirados do ar pelas empresas.
“Plataformas terão que remunerar os veículos de notícia por qualquer conteúdo noticioso que os usuários publiquem. Isso significa que as plataformas serão obrigadas a remunerar inclusive veículos propagadores de notícias falsas. O projeto de lei também proíbe que as plataformas removam este tipo de conteúdo, portanto, o PL cria um ‘custo compulsório’ para as redes. Pior: qualquer veículo que exista há dois anos – e mesmo que seja uma empresa individual – terá que ser remunerado”, criticou por meio de nota a Câmara Brasileira da Economia Digital, que tem entre seus associados empresas como Google, TikTok e Meta.
Em um comunicado próprio, a Meta diz ainda que a falta de uma definição sobre o que é “conteúdo jornalístico” cria riscos. “Isso pode levar a um aumento da desinformação, e não o contrário. Imagine, por exemplo, um mundo em que pessoas mal intencionadas se passam por jornalistas para publicar informações falsas em nossas plataformas e sermos forçados a pagar por isso”, argumentou.
Você precisa fazer login para comentar.