- Author, Felipe Souza
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
- Twitter, @felipe_dess
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O representante de vendas Darley Oliveira, de 29 anos, pede um carro pelo aplicativo Uber para ir ao cabeleireiro.
O motorista aceita e se dirige ao local onde ele está. Mas, ao perceber que o jovem estava acompanhado da cadela Clark, diz que não vai levá-lo.
Ele diz que explicou a situação ao motorista e que ouviu de volta que o profissional “perderia o dia” caso aceitasse a viagem.
O motorista, segundo Darley, teria feito uma referência ao tempo que teria de ficar parado limpando uma possível sujeira causada pela queda de pelos do cachorro.
Após ouvir a negativa, Darley passou a filmar o motorista e disse que iria denunciá-lo.
Nas imagens, o profissional do aplicativo aparece dizendo: “Denuncia. Tchau”, enquanto arranca com o carro.
A ação também foi gravada por câmeras de segurança do prédio onde Darley mora. Elas foram anexadas ao processo que ele abriu contra o motorista e a Uber.
A empresa foi condenada em primeira instância a pagar uma indenização por daos morais no valor de R$ 10 mil. Ainda cabe recurso.
Este é o segundo processo que Darley move contra a empresa pelo mesmo motivo.
No primeiro caso, ocorrido em 2020, ele venceu a ação contra a Uber em primeira instância, perdeu na segunda instância e diz que agora vai recorrer no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
O motorista foi condenado a fazer um ano de trabalho voluntário em uma instituição voltada para pessoas com deficiência visual.
Procurada, a Uber informou que “não tolera qualquer forma de discriminação em viagens pelo aplicativo e reafirma o seu compromisso de promover o respeito, igualdade e inclusão para todas as pessoas que utilizam o nosso app”.
O aplicativo informou ainda que tem como política o respeito à legislação “que rege o transporte de pessoas com deficiência e acomodem cães de serviço”.
A Uber, no entanto, não respondeu aos questionamentos sobre o caso de Darley.
Em uma página dedicada à política para animais de serviço, a empresa informa que “os motoristas parceiros que apresentarem comportamentos discriminatórios e violarem essas obrigações legais perderão o acesso ao app de parceiro”.
Casos como o de Darley não são incomuns, de acordo com outras pessoas com deficiência ouvidas pela reportagem e advogadas especializadas em atender esse público.
A advogada Dandara Piani está à frente de ao menos dez processos que tratam de descriminação contra pessoas com deficiência.
“Só de impedir esse acesso da pessoa acompanhada de seu cão-guia já configura discriminação. Não precisa ter o dolo. Basta a negativa ou a ausência de inclusão dessa pessoa”, diz Piani.
“O cão-guia é uma extensão dos olhos da pessoa com deficiência e esse dever é garantido em todo o país pela chamada Lei do Cão-Guia, de 2005.”
Um trecho desta lei diz que “é assegurado à pessoa com deficiência visual acompanhada de cão-guia o direito de ingressar e de permanecer com o animal em todos os meios de transporte e em estabelecimentos abertos ao público, de uso público e privados de uso coletivo”.
Ao contrário do cão-guia, o motorista de aplicativo pode se negar a transportar um animal de estimação comum.
O passageiro que quiser fazer uma viagem com seu bicho em um transporte por aplicativo, como Uber ou 99, deve negociar previamente com o motorista em que condições isso será feito.
O mais comum, segundo passageiros, é que os motoristas peçam para que o animal esteja em uma caixa de transporte ou enrolado em um pano para evitar que ele espalhe pelos ou urine no veículo.
No caso da pessoa com cão-guia, no entanto, os motoristas são obrigados a aceitar o animal em todas as corridas – e não cabe fazer exigências.
Isso porque um cão-guia não pode ser comparado a um animal de estimação em nenhum ambiente e não pode ser vetado nem mesmo em restaurantes, explica a advogada Dandara Piani.
Ela orienta que, em casos de desrespeito à Lei do Cão-Guia, a pessoa com deficiência deve registrar a recusa em vídeo, áudio ou texto.
Ainda há a possibilidade de solicitar imagens da câmera de segurança da rua ou prédio onde a pessoa estava para provar que sofreu descriminação.
Um motorista de aplicativo ouvido pela reportagem, que pediu para não ser identificado, disse já ter negado corrida de uma pessoa acompanhada por cão-guia.
Ele diz que passou a fazer isso depois que um animal de grande porte, “um labrador ou golden (retriever)”, conta o motorista, deixou muitos pelos em seu banco.
“Isso quebra a gente, de verdade. Porque nenhum outro passageiro quer entrar em um carro cheio de pelo de cachorro”, diz o motorista.
“Fora que a lavagem demora pelo menos uma hora e ainda pago pelo menos R$ 150 quando preciso higienizar os bancos. Sabe quem fica com o prejuízo? Eu.”
Na última semana, Darley teve mais uma corrida negada por estar com seu cão-guia. Ele mandou os prints da mensagem que trocou com uma motorista da 99.
No início da mensagem, ele avisa que tem deficiência visual e pede para que buzine quando chegar. Ela confirma e, minutos depois, pergunta: “Você está com cachorro?”
Darley responde que sim e que é o cão-guia dele e afirma que ela é obrigada por lei a transportá-los. E diz que o cão é comportado. A motorista não responde e cancela a corrida.
Procurada, a 99 informou que “lamenta profundamente o ocorrido e, assim que o relato foi registrado em sua Central de Segurança, a motorista foi preventivamente bloqueada”.
A empresa disse ainda que “uma equipe está em contato com o passageiro para realizar o acolhimento e suporte. A plataforma se coloca à disposição para colaborar com quaisquer investigações das autoridades, se necessário”.
Darley consultou a advogada e estuda se vai processar a plataforma e a motorista pela situação.
Cão-guia no avião
Assim como nos carros de aplicativo, as companhias aéreas não podem proibir a presença de cão-guia na cabine, explica a advogada Dandara Piani.
Segundo o levantamento mais recente da União Nacional de Usuários de Cão-Guia, há 159 cães-guia em atividade no Brasil.
Spencer Miranda é uma das pessoas que conta com a assistência destes animais e conta que enfrentou problemas quando precisou fazer uma viagem sozinho de Brasília para São Paulo em julho de 2022.
Segundo ele, a Latam negou três vezes no mesmo dia que ele viajasse com seu cão-guia, o Wade.
“Falaram que eu tinha que avisar com antecedência sobre a presença do cão-guia, mas isso não é exigido por nenhuma lei federal, estadual ou portaria da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac)”, afirma Spencer.
A Anac orienta que a pessoa com deficiência avise com antecedência que viajará com cão-guia, mas reforça que a ausência desse comunicado não deve impedir o embarque.
“O Wade enxerga por mim. Convivo com ele mais do que com qualquer outra pessoa, cônjuge, familiar ou amigo”, diz Spencer.
“Quando fico sem ele, parece que está faltando um pedaço do meu corpo e, com certeza, ele sente o mesmo.”
Spencer diz ainda que a companhia pediu que ele preenchesse um formulário exigido a pessoas com deficiência que precisam levar equipamentos no voo, como cilindros de oxigênio.
Eles ainda pediram um laudo do oftalmologista para atestar a deficiência dele e outro emitido por um veterinário para provar que o cão-guia está com as vacinas em dia e atende a todos os requisitos sanitários para voar na cabine com outros passageiros.
Ele diz que conseguiu as autorizações e voltou ao aeroporto algumas horas depois para pegar o próximo voo disponível.
No entanto, conta Spencer, mais uma vez a companhia negou o embarque alegando que ele deveria ter avisado com dez dias de antecedência.
“Ninguém merece passar por isso. É uma situação indescritível. A gente está dentro da lei, tem tudo certinho. É uma sensação de impotência muito grande”, diz Spencer.
Ele processou a companhia aérea, que foi condenada em primeira instância a pagar uma indenização por danos morais de R$ 20 mil. Ainda cabe recurso.
A reportagem questionou a Latam sobre o caso, mas a empresa disse em nota que “se manifestará nos autos do processo”.
Em seu site oficial, a companhia diz que “você pode viajar com seu cão de serviço na cabine do avião sem custo adicional em todas as nossas rotas, exceto quando houver restrição pelas normas locais”.
Ela recomenda que a solicitação seja feita “com no mínimo 48 horas de antecedência”.
Procurada, a Anac informou que passageiros com cadeira de rodas ou cão-guia devem informar à companhia aérea sobre suas necessidades específicas quando comprarem a passagem ou com pelo menos 72 horas antes do voo.
Também podem ser solicitados outros cuidados médicos especiais, como o uso de maca, oxigênio ou outro equipamento.
Em todos esses casos, segundo a Anac, “é necessário apresentar documentos médicos comprobatórios, e a empresa solicitará o preenchimento de um formulário padrão chamado Formulário de Informações Médicas (MEDIF) fornecido pela empresa aérea”.
A agência, no entanto, informou que “a ausência das informações sobre a necessidade de assistência especial dentro dos prazos especificados não deve inviabilizar o transporte do passageiro”, caso ele aceite ser “transportado com as assistências que estiverem disponíveis”.
A agência disponibiliza uma página com todos os detalhes para quem precisa solicitar cuidados especiais para a viagem.
O cão-guia, segundo a Anac deve ser transportado de graça, no chão da cabine da avião, ao lado do dono e sob seu controle, “equipado com arreio e dispensado o uso de focinheira”.
A portaria da Anac ainda prevê que o cão não pode obstruir, de maneira total ou parcial, o corredor da aeronave.
Recusa de transportar cadeiras de rodas
Assim como os deficientes visuais, cadeirantes disseram à BBC News Brasil que também têm corridas recusadas por motoristas de aplicativo.
Nesses casos, a principal justificativa, segundo os passageiros com deficiência, é que a cadeira de rodas não cabe no veículo.
“De fato, alguns carros não têm porta-malas espaçoso e podem fazer a recusa. Mas os outros não podem negar”, explica a advogada Dandara Piani.
A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, n° 13.146, prevê que “o direito ao transporte e à mobilidade da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida será assegurado em igualdade de oportunidades com as demais pessoas”.
Dessa maneira, o motorista não pode cancelar uma corrida pelo fato de a pessoa ser cadeirante.
Essa lei já foi usada como argumento em ações contra motoristas e aplicativos de corrida que se recusaram a transportar cadeirantes mesmo quando o porta-malas do veículo comportava a cadeira.
Em um desses casos, a empresa foi condenada a pagar uma indenização de R$ 1 mil por danos morais.
“Não havendo justo motivo para o cancelamento, somado com os depoimentos das testemunhas em audiência de instrução, entendo que a ré praticou ato ilícito classificado como indenizável”, diz um trecho da sentença.
O designer gráfico e estudante de direito Leandro Manger, de 31 anos, vive no município catarinense de Rancho Queimado e diz que constantemente tem corridas negadas por motoristas de aplicativo que se recusam a levar sua cadeira de rodas.
Mas diz que não entrou com nenhum processo por conta da dificuldade de provar o motivo do cancelamento.
Ele conta que já passou por situações humilhantes não apenas nos serviços de aplicativos, mas também no transporte público, por “má vontade e preconceito”.
“Há alguns anos, eu precisei levar meu computador para arrumar na cidade vizinha e o motorista do ônibus não quis me transportar”, conta.
“Entre as desculpas, ele falou que o bagageiro estava cheio, depois falou que eu não poderia levar um computador na cabine e, quando viu que eu tinha passe livre, disse que a empresa não poderia aceitar aquilo porque teria prejuízo.”
Leandro teve que esperar outro ônibus e só conseguiu viajar horas depois. Depois disso, ele conta que fez uma reclamação na empresa e que o motorista foi orientado a levá-lo nas próximas viagens.
“Desde então, sempre que eu precisava pegar ônibus com esse motorista, ele ficava conversando em voz alta com o fiscal que o passe livre – que eu tinha – não deveria existir. Ele falava para me atingir mesmo”, relata.
Ele conta que, na época, não processou o profissional e a empresa porque não tinha conhecimento dos direitos dele.
No entanto, isso o inspirou a estudar e entrar em uma área na qual ele pudesse ajudar pessoas que passam por situações semelhantes. Hoje, Leandro é estudante de Direito.
“Essas situações com certeza me inspiraram a aprender a lutar não só por mim, mas também por outras pessoas”.
O que pode ser feito
Na ação que move contra a Uber, Darley Oliveira diz que não busca apenas uma condenação da empresa, mas também deseja que a empresa altere sua comunicação com os motoristas.
“O aplicativo precisa dizer que o cão-guia vai no assoalho, que ele é dócil e não é um pet comum. Tem pessoas com mais de 20 mil corridas que nunca levaram um cão-guia”, afirma Darley.
“Mesmo que o carro seja dele, o motorista precisa saber que não está fazendo um favor ao carregar um cão-guia, mas sim respeitando a lei. O problema é que o aplicativo não lembra ele disso.”
Por isso, acredita que empresas deste tipo deveriam fazer um trabalho melhor para orientar os prestadores de serviço.
“O carro é deles, tudo bem, mas eles não conseguem entender que estão prestando um serviço público”, diz Darley.
“O que deve haver é uma melhor orientação e punição das empresas para que os motoristas sejam expulsos da plataforma em caso de descumprimento da lei.”
A advogada Kátia Bunn diz que já atendeu “inúmeros” casos relacionados a pessoas com deficiência. As ações vão desde empresas aéreas, estudantes sem transporte para estudar a faculdades sem acessibilidade.
Segundo ela, as penas para quem discrimina uma pessoa com deficiência depende da situação.
“O autor da ofensa pode receber desde uma sanção criminal, até uma ação por danos morais e materiais. Essas atitudes dilaceram e impactam fortemente a vida da vítima”, diz Bunn.
A advogada diz que, embora existam leis que defendam as pessoas com deficiência, elas não são aplicadas de maneira eficaz.
Para ela, o Brasil ainda precisa conscientizar as pessoas para que elas reconheçam as pessoas com deficiência como legítimos cidadãos.
A advogada Dandara Piani acredita que casos como os de Darley e Spencer ainda ocorrerão muitas vezes esse no Brasil porque as penas aos infratores são baixas, diferentemente do que ocorre em outros países.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a Uber foi condenada a pagar uma indenização no valor de R$ 1,1 milhão de dólares (R$ 5,5 milhões) após uma passageira ter 14 corridas negadas por estar com seu cão-guia.
“Por conta dos valores baixos (aplicados no Brasil), a gente não vê mudanças nas políticas para tornar mais efetiva a comunicação para os motoristas de que eles são obrigados a levar o cão-guia”, diz Piani.
Fonte: BBC
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