No centro das investigações da Polícia Federal (PF) que apuram possíveis desvios em suas ações, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) é alvo de críticas e questionamentos desde que foi fundada, em 1999.
A agência também já enfrentou uma série de reviravoltas institucionais — ora sob comando militar, ora civil — e hoje lida com uma defasagem de 80% em seu quadro de pessoal, segundo servidores.
A PF apura se houve a formação de uma suposta organização criminosa, apelidada de “Abin paralela”, para monitorar, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), adversários do ex-presidente e de sua família.
A BBC News Brasil procurou os gabinetes de Ramagem e Carlos Bolsonaro para comentar as acusações, mas não houve resposta.
A reportagem também entrou em contato com a defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro, que não se manifestou até a publicação deste texto.
Em transmissão ao vivo em suas redes sociais, Bolsonaro negou a existência de uma “Abin paralela” e chamou a investigação de uma “narrativa”.
Em nota à imprensa, a Abin disse que é a principal interessada na elucidação dos casos envolvendo a agência.
“Há 10 meses a atual gestão da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) vem colaborando com inquéritos da Polícia Federal e do Supremo Tribunal Federal sobre eventuais irregularidades cometidas no período de uso de ferramenta de geolocalização, de 2019 a 2021. A Abin é a maior interessada na apuração rigorosa dos fatos e continuará colaborando com as investigações”, diz a nota.
A Abin foi criada em 1999, no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. É um órgão da Presidência da República, atualmente vinculado à Casa Civil, com orçamento para 2024 em cerca de R$ 800 milhões.
A missão da Abin é ser “responsável por fornecer ao presidente da República e a seus ministros informações e análises estratégicas, oportunas e confiáveis, necessárias ao processo de decisão”, conforme diz a agência em seu site oficial.
A Abin deve ainda “assegurar que o Executivo federal tenha acesso a conhecimentos relativos à segurança do Estado e da sociedade, como os que envolvem defesa externa, relações exteriores, segurança interna, desenvolvimento socioeconômico e desenvolvimento científico-tecnológico”.
A agência diz colher informações relacionadas à proteção das fronteiras nacionais, à segurança de infraestruturas críticas, à contraespionagem, ao terrorismo e à proliferação de armas de destruição de massa, entre outros temas.
Sucessora do SNI
A criação da agência preencheu um vácuo deixado pela extinção do Serviço Nacional de Informação (SNI), em 1990.
Fundado em 1964, logo após o golpe militar, o SNI colhia informações que orientaram a repressão da ditadura a militantes de esquerda.
Também entraram na mira do SNI partidos políticos, sindicatos e setores da Igreja Católica.
Após a redemocratização, em 1985, houve pressões para que o SNI fosse extinto, o que só ocorreu em 1990, no governo de Fernando Collor.
Desde sua criação, a Abin já passou por diferentes pastas, num reflexo da disputa entre civis e militares pelo seu controle. Nos seus primeiros 16 anos de existência, ela esteve subordinada ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência (GSI), órgão que costuma ser gerido por militares.
Em 2015, no entanto, a então presidente Dilma Rousseff (PT) extinguiu o GSI e transferiu a Abin para o controle civil, subordinando a entidade à Secretaria de Governo.
A medida foi desfeita pelo sucessor de Dilma, Michel Temer (MDB), que recriou o GSI e devolveu a Abin ao órgão. A agência então voltou a ser subordinada a um órgão comandado por militares e manteve esse status durante o governo Jair Bolsonaro (PL).
Até que, em maio de 2023, em nova reviravolta, o presidente Lula transferiu a Abin para a Casa Civil. Meses depois, Lula publicou dois decretos alterando o funcionamento da agência e do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin).
Entre outras medidas, os decretos fortaleceram a Escola de Inteligência e deixaram mais claras as atribuições dos órgãos que compõem o Sisbin.
O objetivo, segundo o governo, é “dinamizar o ambiente de cooperação, fortalecer o papel da Abin como órgão central (do Sisbin) e aumentar a efetividade do assessoramento”.
Ainda assim, muitos servidores da Abin se queixam do que consideram uma falta de prestígio do órgão, o que, segundo eles, se reflete na falta de profissionais e de reajustes salariais.
Em outubro de 2022, a União dos Profissionais de Inteligência de Estado da Abin (Intelis) divulgou uma carta na qual diz que a agência tem uma “defasagem de mais de 80% em seu quadro de pessoal”. O problema ainda não foi resolvido, segundo os servidores.
“Tal situação não encontra precedente no Poder Executivo Federal e representa risco para a realização do trabalho da agência”, diz o texto.
Uso para fins políticos
Desde a fundação da Abin, houve várias ocasiões em que seus agentes foram acusados de agir com fins políticos.
Numa dessas ocasiões, em 2002, houve denúncias de que agentes da Abin teriam participado de investigações que culminaram na operação de apreensão de documentos e dinheiro vivo na empresa Lunus, de propriedade da ex-governadora do Maranhão e então pré-candidata do PFL (atual Democratas) à Presidência da República, Roseana Sarney.
Em meio à repercussão do caso, Roseana desistiu de concorrer à Presidência.
Em 2008, foi revelado pela revista Veja que a agência tinha grampeado autoridades como o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), e o então senador Demóstenes Torres, do Democratas.
Além deles, diversos outros parlamentares teriam sido grampeados.
O diretor-geral da Abin à época, Paulo Lacerda, foi afastado do cargo — de início, temporariamente, e depois de forma definitiva.
Lacerda defendeu a agência, afirmou que a imprensa acusava “sem provas” e que não havia envolvimento da Abin em grampos ilegais.
Coleta de ‘informações para governar’
Desde antes da criação da Abin, analistas já apontavam a possibilidade de que a agência fosse vulnerável a abusos e desvios de função.
Em “SNI e Abin: uma leitura da atuação dos serviços secretos brasileiros ao longo do século 20” (FGV editora), de 2002, Priscila Carlos Brandão, professora de História da UFMG, descreve debates que sucederam a criação do órgão.
Um dos principais idealizadores da Abin foi o general Alberto Cardoso, que entre 1995 e 1999 foi ministro-chefe da então Casa Militar da Presidência da República (o órgão foi depois transformado no Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, o GSI).
Em audiência na Comissão de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados em 1996, três anos antes da criação da Abin, o general defendeu que o órgão fosse “não ideologizado, um órgão de Estado, e não de governo, que em hipótese alguma poderia ter conotações político-partidárias”.
Na mesma audiência, porém, o cientista político Thomaz Guedes da Costa, hoje professor de Estudos de Defesa na National Defense University, nos Estados Unidos, apontou o que considerou uma discrepância entre o objetivo declarado dos idealizadores da agência e as atribuições que eles queriam conferir ao órgão.
Segundo Costa, o governo argumentava que, ao criar a Abin, pretendia dotar o Brasil de um serviço de inteligência comparável aos que existem em outras democracias.
Na prática, no entanto, o professor opinou que as tratativas para a criação da agência apontavam em outra direção: desenhava-se um órgão voltado à coleta de “informações para governar”.
Em vez de enfocar a defesa nacional e questões estratégicas de segurança, a Abin corria o risco de se imiscuir em temas variados, como economia, política e questões sociais, alertou o professor.
“O serviço de inteligência que se propõe a ‘dar informações para governar’ é algo intrinsecamente diferente das competências das atividades de inteligência observadas nos outros países”, destacou o professor.
Em sua conclusão, o livro de Brandão também apontava possíveis problemas na atuação da agência.
Segundo a professora, “da forma em que se encontra na lei, a competência da atividade de inteligência dá margem a uma série infinita de interpretações, o que, na cultura política brasileira, pode significar uma ‘grande possibilidade de abusos'”.
Modus operandi militar
Para Priscila Carlos Brandão, autora do livro e professora de História da UFMG, mesmo após a extinção do SNI a cultura militar continuou a influenciar o modus operandi do setor de inteligência no Brasil.
Após 1967, diz ela, o SNI se tornou um órgão “extremamente militarizado” e, mesmo após sua extinção, manteve-se o modo de produção de inteligência.
“Não só o modo de produção, como (se mantiveram) os instrutores que passariam a treinar os seus novos agentes, reproduzindo a lógica cultural”, afirma.
Para Brandão, outro problema da criação da Abin é que “não houve uma separação da inteligência doméstica (ameaças internas ao Estado), da inteligência voltada à segurança pública e a assuntos externos; a Abin englobava os três campos”.
Parte desse problema foi atenuado, segundo ela, com a criação do Sistema de Inteligência de Defesa (Sinde), em 2002, e do Sistema de Inteligência de Segurança Pública (Sisp), em 2005.
Os órgãos passaram a concentrar as ações de inteligência militar e de segurança pública, respectivamente — o que, em tese, reduziu o escopo da Abin. A criação desses órgãos, no entanto, não proibiu a Abin de atuar nessas áreas.
Ainda assim, a professora diz que a falta de uma missão clara para a Abin impediu sua consolidação como um “órgão capaz de subsidiar o poder brasileiro frente às demandas relativas à sua presença estratégica no cenário internacional “.
Atualmente, segundo ela, outro fator que pesa sobre a instituição é a “falta de estímulo de muitos concursados, que não têm perspectivas profissionais positivas, além de considerarem que ganham mal comparado com outras carreiras”.
Fonte: BBC
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