- Author, Leandro Machado
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
O Supremo Tribunal Federal (STF) vai começar a decidir na sexta-feira (10/2) uma série de pedidos de habeas corpus (HC) que, embora com histórias diferentes, tratam do mesmo tema: mulheres condenadas à prisão por crimes não violentos precisam comprovar que são imprescindíveis à criação dos filhos para, assim, poderem cumprir a pena ao lado deles, em casa.
Ao todo, há sete pedidos de HC sobre esse assunto correndo apenas na 2ª turma do Supremo, formada pelos ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Edson Fachin, Kassio Nunes Marques e André Mendonça.
A BBC News Brasil teve acesso a dois desses processos: são duas mulheres de Santa Catarina, condenadas em definitivo por tráfico de drogas, e que estão pleiteando o benefício de cumprimento da pena em domicílio com o objetivo de participar do desenvolvimento dos filhos – um deles com três anos de idade (leia as histórias mais abaixo).
Nos dois casos, porém, o Ministério Público alega que essas mães não conseguiram provar que são indispensáveis para as crianças – a maior parte dos juízes, desembargadores e ministros que atuaram nos processos concordou com essa avaliação.
Com os recursos dos defensores públicos, os casos chegaram ao STF. A série de decisões da 2ª turma acende um debate jurídico: de um lado, a maioria dos juízes que trabalharam nesses casos argumenta que as mães não se encaixam na jurisprudência e precisam comprovar sua importância para os filhos.
Por outro lado, os defensores públicos que representam as mulheres afirmam que isso é uma presunção legal, e não precisa de provas. Ou seja, nesse argumento, toda mãe é imprescindível para o filho até que se prove o contrário.
Para eles, esse cenário é ainda mais evidente com as famílias mais pobres, muitas vezes lideradas por mães solo.
Em entrevista à BBC News Brasil, a professora de Direito Penal Maíra Zapater, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e que analisou um dos processos a pedido da BBC News Brasil, criticou os julgamentos sobre a imprescindibilidade da mãe.
“Há um saber social e de senso comum, mas também dados estatísticos, mostrando que as mulheres são sobrecarregadas com o cuidado dos filhos. Essa não é uma discussão jurídica, e sim sobre gênero e sobre o papel da mulher como mãe. Não é preciso provar que uma criança de três anos precisa da mãe”, diz.
Para ela, se essas mães vencerem no STF, pode-se criar uma nova jurisprudência a ser aplicada em outros casos semelhantes – ou seja, outras mulheres condenadas em definitivo pela Justiça podem ser beneficiadas com prisão domiciliar.
Caso Adriana Ancelmo
O benefício de regime domiciliar para mães passou a ser concedido pela Justiça em maior número a partir de 2017, quando o STF, por meio de um habeas corpus, autorizou que Adriana Ancelmo, ex-companheira do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, deixasse a prisão para ficar perto dos filhos enquanto aguarda a definição de seu processo.
No mesmo ano, ela foi condenada a 18 anos de cadeia por associação criminosa no âmbito da Operação Lava Jato, mas permanece em casa porque ainda não foi julgada definitivamente após os recursos de seus advogados.
O benefício de prisão domiciliar concedido à ex-primeira-dama do Estado, que já era previsto pela legislação, abriu caminho para que milhares de mulheres grávidas ou com filhos de até 12 anos – e que estavam detidas provisoriamente por crimes não violentos – fossem liberadas para o regime domiciliar.
Atualmente, a lei não prevê o benefício a quem já foi condenado em definitivo e que esteja cumprindo a pena de reclusão. Pessoas que praticaram alguma violência contra os próprios filhos também não são contempladas.
O que essas mulheres pleiteiam no STF é uma extensão desse tipo de habeas corpus para pessoas já condenadas em definitivo por crimes considerados não violentos, e que tenham filhos em situação de vulnerabilidade social.
Derrotas
Nos últimos três anos, elas estão perdendo nas instâncias inferiores, permanecendo encarceradas ou em regime semiaberto.
Um dos motivos é que os julgadores consideraram que as presas não conseguiram provar no processo que são indispensáveis para seus filhos. Mas essa exigência é contestada pelos defensores que atuam nos casos.
Eles citam como argumento uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 2021, que afirma que os “cuidados maternos são uma presunção legal” – ou seja, não precisam de comprovação.
“Essa é uma presunção que até admite provas em contrário. Ou seja, o Ministério Público até poderia provar que uma dessas mães não é imprescindível para o filho, porque ela não tem contato com ele há vários anos, por exemplo”, diz o defensor Gustavo de Almeida Ribeiro, da Defensoria Pública da União (DPU), que atua nesses casos junto ao STF.
“Mas não é isso que acontece, e sim o contrário. Está sendo cobrado que a mãe prove que ela é indispensável para o filho, mas isso é presumido. Ela não precisa provar isso”, explica.
Para Maíra Zapater, da Unifesp, a discussão sobre a imprescindibilidade da mãe não cabe ao Direito Penal. “Se a mãe é ou não imprescindível para o filho, é uma questão da assistência social e do Conselho Tutelar”, diz.
Com base na leitura de dois processos, a BBC News Brasil conta abaixo as histórias de duas mulheres de Santa Catarina, ambas condenadas em definitivo por tráfico de drogas ilegais, e que estão tentando comprovar à 2ª turma do STF que são indispensáveis para a criação de seus filhos.
Marido doente, filho sozinho
No primeiro caso a ser julgado pelo Supremo, uma mulher que já havia voltado para casa pode ter de retornar à cadeia se perder a votação.
A farmacêutica Joana (nome fictício), de 56 anos, foi condenada a 5 anos e 10 meses de prisão por tráfico de drogas ilegais.
Seu marido possui uma doença severa que lhe causa “dificuldades para permanecer em pé”. O filho do casal, de 15 anos, é quem cuida do pai.
Essa situação foi constatada por uma servidora do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC), que foi enviada ao bairro da família para tentar responder se Joana é ou não indispensável para os cuidados do filho. Para isso, ela entrevistou a família, parentes e vizinhos.
Segundo o parecer escrito pela servidora, o marido doente “precisa mais de auxílio (do filho) do que pode efetivamente ajudar (na criação do jovem)”. Ela apontou que ele era atendido pelo SUS, mas não trabalhava por causa da doença. A única renda da família é o auxílio-reclusão de R$ 1,9 mil, recebido pelo adolescente por conta da detenção de sua mãe.
Em sua avaliação, a funcionária do TJ-SC apontou que a presença de Joana era “muito importante” para o desenvolvimento do filho, pois, enquanto a mãe estava presa, o adolescente era o responsável por diversas tarefas domésticas, entre elas cuidar do pai. “Não é possível dizer se ele tem maturidade necessária para assumir esses encargos”, argumentou.
Embora o documento tenha sido utilizado por defensores para justificar o pedido de habeas corpus, várias instâncias da Justiça negaram a prisão domiciliar para Joana até o caso chegar ao Supremo, em 2021.
Os argumentos principais eram três: segundo eles, não havia provas de que ela seria imprescindível para a família; o filho tinha mais de 12 anos, corte etário normalmente utilizado pela Justiça para conceder o benefício; e o fato de a farmacêutica já ter sido condenada em definitivo, já que esse tipo de HC é dado a presas provisórias que ainda estão aguardando julgamento.
No entanto, Joana foi liberada da cadeia depois da primeira fase do julgamento no STF em setembro 2021. O placar ficou em 2 a 2, o que lhe garantiu uma espécie de “vitória por empate” – em decisões desse tipo, o empate beneficia o postulante do HC.
Nunes Marques, relator do caso, votou contra o habeas corpus, sem entrar no mérito da importância da mãe – afirmou apenas que ela não encaixava na jurisprudência. Fachin também votou contra, seguindo o entendimento das instâncias inferiores.
Já Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski discordaram, votando a favor. Para ambos,
se trata de um “caso de emergência” e, por isso, o HC deveria ser aceito.
Um mês depois, o Ministério Público Federal (MPF) recorreu dessa “vitória por empate”. Alcides Martins, subprocurador-geral da República, argumentou que Joana não se enquadrava na jurisprudência e repetiu que não havia provas de que a mulher é necessária a sua família.
O subprocurador também questinou a condição física do marido de Joana:
“(… ) Houve, na origem (do processo), demonstração de que o esposo da paciente apresentava ‘certo grau de independência ao se beneficiar do uso de apoio (muleta estilo canadense) e possuir capacidade cognitiva para compreensão e realização de seu tratamento medicamentoso'”, escreveu.
Por causa desse recurso, o caso voltará a ser julgado nesta sexta-feira, mais de um ano depois. O placar recomeça em 0 a 0.
Se nenhum dos magistrados mudar o entendimento, o ministro André Mendonça, que ainda não havia assumido o cargo na primeira fase do julgamento, é quem pode alterar o jogo. Se ele votar contra, Joana terá de retornar à penitenciária para cumprir regime semiaberto. Em processos semelhantes, Mendonça já se posicionou contra a concessão desse benefício às mulheres.
“O que chama atenção é que ela já havia ganhado na turma, estava solta, mas agora, com o recurso do MPF, pode perder e voltar à prisão. Esse caso é um exemplo do rigor absurdo da Justiça com as mães presas, principalmente as mais pobres”, diz o defensor Gustavo de Almeida Ribeiro, que representa Joana no STF.
Filho de três anos
Outro caso de imprescindibilidade a ser julgado nas próximas semanas é ainda mais complexo e vem chamando atenção por causa dos vários recursos e reviravoltas na posição dos ministros, além de um pedido de destaque feito por Gilmar Mendes. Com tudo isso, o placar voltou ao 0 a 0.
Os magistrados da 2ª turma vão decidir se a zeladora Maria, de 43 anos, poderá cumprir uma pena em regime domiciliar para participar da criação de seu filho de três anos.
Com pedido de destaque, o habeas corpus será discutido oralmente entre os ministros. Eles costumam decidir esse tipo de caso de maneira virtual – ou seja, depositam os votos no sistema sem discussão entre eles.
A zeladora, que também vive em Santa Catarina, foi condenada a 12 anos e 10 meses de prisão por furto e tráfico de drogas. Em 2018, foi presa com 6,5 gramas de crack. Para a polícia, era traficante. Ela negou, dizendo ser usuária.
Após a condenação, defensores públicos entraram com um pedido de habeas corpus para que ela cumpra a punição em casa, ao lado do filho.
Mas esse HC vem se arrastando pela Justiça há um ano, mobilizando defensores, promotores, juízes, desembargadores e ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo.
Maria perdeu em todas as instâncias até agora: para a Justiça, ela não conseguiu provar que é imprescindível para o filho pequeno.
De fato, não há muitas informações sobre Maria e seu filho no processo. Ao contrário do caso de Joana, não há um parecer da Justiça sobre a situação social da família.
Essa falta de dados sobre a “condição de vulnerabilidade” da criança foi usada por promotores e juízes de todas as instâncias como justificativa para negar a prisão domiciliar à mãe.
O procurador Cid Luiz Ribeiro Schmitz, do Ministério Público de Santa Catarina (MP-SC), também usou esse argumento, além de criticar o papel da mãe na criação do filho quando cometia os crimes, para defender que o benefício não deve ser concedido:
“Por exemplo, não seria possível deferir a benesse à mãe que não cuidava do seu filho antes de ser presa, ou em situação em que a criança está sendo devidamente cuidada por outro responsável; ou, ainda, quando a apenada cometia crimes na presença da criança. Até porque, obviamente, a genitora não pode se valer do cuidado que nunca dispensou ao filho para alcançar benefício penal”, argumentou, em um dos recursos.
Famílias pobres
Por outro lado, a Defensoria Pública da União argumentou que a imprescindibilidade da mãe é óbvia e não precisa ser comprovada.
Em sua argumentação, o defensor Gustavo de Almeida Ribeiro escreveu que a necessidade da mãe fica ainda mais evidente entre as famílias mais pobres.
Ele comparou a história da zeladora com a de Adriana Ancelmo, ex-esposa de Sérgio Cabral, liberada pelo STF em 2017.
“Pessoas pobres contam com menos estrutura, seja de empregados, seja de familiares, para cuidarem de seus filhos. Também não podem arcar com escolas integrais, em que as crianças passam grande parte do dia seguras e praticando atividades escolares, culturais e recreativas. Em suma, a presença das mães é muito mais sentida em todos os aspectos quando se cuida de família pobre do que em se tratando de família abastada”, escreveu o defensor.
O processo de Maria é marcado por algumas reviravoltas nos últimos meses, com mudanças de posição de dois ministros: o relator do caso, Ricardo Lewandowski, e Edson Fachin. O vaivém levou Gilmar Mendes a pedir destaque para o caso.
Em julho passado, Lewandowski negou o habeas corpus, concordando com a tese da maioria dos julgadores anteriores de que não havia provas de imprescindibilidade.
No entanto, em 1º de setembro, Lewandowski mudou de opinião após um recurso da DPU, concedendo o HC de maneira monocrática. Maria, então, voltou para casa.
“Destaco as especificidades do caso concreto, aptas a demonstrar, de imediato, a existência de constrangimento ilegal. Extrai-se dos autos que a paciente cumpre pena por crimes praticados sem violência ou grave ameaça”, argumentou o ministro, sem entrar no mérito se a zeladora é ou não essencial para a criança.
Já Fachin mudou duas vezes de opinião em meio aos recursos: primeiro votou contra o habeas corpus, depois a favor e, na última votação, novamente contra.
Como o Ministério Público recorreu da decisão de Lewandowski, o habeas corpus passará por uma nova votação nas próximas semanas.
Para Maíra Zapater, professora de Direito Penal da Unifesp, o que está sendo julgado nesses casos é o papel da mulher como mãe. “Quando a mulher sai do estereótipo da mãe zelosa que dedica a vida aos filhos, ela recebe a etiqueta de mãe ruim, de mãe insuficiente e que falhou, ainda mais quando comete um crime”, diz.
“O próprio Ministério Público levantou a questão: ‘por que ela agora quer cuidar do filho se antes ela cometeu um crime?’ Então, o caso é julgado por um comportamento pregresso dela como mulher, e não a partir do direito de uma criança de três anos de conviver com a mãe. Sob um verniz jurídico, na verdade o que está sendo julgado é como as mulheres se comportam como mães”, afirma
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