- Author, Amanda Ruggeri
- Role, BBC Future
Quando alguém fala em “normalizar” alguma coisa em 2024, geralmente é com sentido positivo.
Nas redes sociais e fora delas, tenho visto convocações para normalizar de tudo, desde o corpo das mães após o parto até conversar sobre a saúde mental no trabalho. A ideia, é claro, é romper esses tabus, que podem ser inúteis e até perigosos.
Mas existe outro tipo de normalização, que muitas pessoas não conhecem. Ela é menos consciente e mais perniciosa. E pode ser prejudicial.
É a normalização de tendências, situações e eventos que, na verdade, não deveriam ser considerados nada “normais”. Ela pode também ser chamada de “dessensibilização” ou “habituação”.
Os trágicos eventos verificados no início dos conflitos eram fatos novos e inesperados. Esses eventos chamam a atenção da mente, como sabem os psicólogos.
O tempo passou, a cobertura da imprensa continua, mas esses eventos já ocupam menos espaço nas manchetes em muitos países. E também não aparecem com a mesma frequência nas conversas.
Infelizmente, as pesquisas indicam que, quando uma guerra dura meses ou anos, cada semana de combate causa menos impacto do que a semana anterior.
E essa dessensibilização também se aplica à nossa vida diária.
Os jovens das cidades que crescem lado a lado com a violência, por exemplo, têm maior propensão a acabar pensando que a violência é normal. E as pessoas expressaram mais ansiedade com a covid-19 quando a contagem de mortos era baixa, do que quando o número de vítimas fatais atingiu centenas de milhares de pessoas.
Um estudo particularmente interessante demonstrou que as pessoas que moram em países mais expostos aos impactos negativos das mudanças climáticas consideram que as alterações do clima trazem riscos menores.
Outra pesquisa mostrou que podemos nos habituar até ao nosso próprio comportamento negativo.
Quando voluntários mentiam repetidamente para conseguir mais dinheiro, suas mentiras ficavam cada vez maiores ao longo do experimento – ativando cada vez menos as partes do cérebro associadas às emoções.
Os pesquisadores concluíram que, quanto mais fizermos alguma coisa, mesmo sabendo que é errado, menos desconfortáveis ficamos com aquilo.
Em outras palavras, basta sermos expostos a qualquer coisa por tempo suficiente e aquilo estará normalizado. Mesmo se for algo ruim.
É claro que existem vantagens nesse processo. Até certo ponto, os seres humanos precisam se adaptar a novas circunstâncias e situações, não importa o quanto elas sejam difíceis.
Nossa espécie provavelmente não teria ido muito longe se tivéssemos permanecido em um estado perpétuo de choque e ansiedade – ou, pelo menos, não teria desenvolvido a capacidade emocional de imaginar, criar e resolver problemas. Mas também existem armadilhas muito claras.
Para começar, essa adaptabilidade pode ser parte do motivo por que os seres humanos têm dificuldade de lidar com o que os sociólogos chamam de “violência lenta” – as catástrofes que se desenvolvem lentamente, sem que pareçam urgentes. Isso dificulta o reconhecimento dos prejuízos ocasionados, que só são percebidos meses ou até anos depois.
Basta pensar nas décadas que se passaram com resíduos químicos sendo lançados no rio Mississippi, nos Estados Unidos, até criar o chamado “corredor do câncer” na região. Outro exemplo é o aumento das emissões globais de carbono.
Esse processo também pode perpetuar um círculo vicioso. O estudo sobre a violência nas cidades, por exemplo, concluiu que os participantes eram mais propensos a cometer violência se pensassem que aquilo era normal.
E existem também questões mais complexas que podem ser prejudicadas. Se as pessoas não acreditarem que as mudanças climáticas são um problema importante, por exemplo, por que elas se motivariam a fazer algo a respeito?
Se a consciência das pessoas sobre os desastres humanitários se enfraquecer, será que elas ainda terão disposição de compartilhar suas preocupações com os governantes ou fazer doações para entidades beneficentes?
Como acontece a normalização
Quando o assunto é o consumo dos meios de comunicação, surgem duas questões importantes:
Como a cobertura de um tema específico pode evitar que o público seja dessensibilizado? E, como consumidor de informação inteligente e bem informado, como você pode acompanhar as notícias com a certeza de que não está correndo o mesmo risco?
Pesquisadores vêm estudando como a exposição repetida às mesmas notícias afeta os consumidores. Um estudo concluiu, por exemplo, que os consumidores de notícias podem se irritar com a cobertura e até evitá-la, se perceberem que ela é repetitiva.
O motivo não é apenas porque os espectadores desejam novidades, segundo os pesquisadores. Na verdade, as pessoas podem ficar muito irritadas quando percebem que nada está melhorando.
“Alguns usuários são particularmente negativos sobre a falta de progresso e a cobertura extensa e prolongada da questão – o que, em parte, pode envolver os próprios agentes políticos envolvidos”, afirmam os pesquisadores.
Essa questão é preocupante. Existem diversos temas que não podem ser ignorados, sob pena de protegermos o status quo e as autoridades responsáveis pela situação.
Imagine quantas empresas e governos poderiam reduzir suas ações para combater as mudanças climáticas, por exemplo, se ninguém falasse no assunto.
Ironicamente, isso pode significar que, quanto mais os líderes fizerem pequenos progressos sobre uma determinada questão, mais as pessoas irão se aborrecer quando ouvirem sobre ela. E, teoricamente, isso poderia fazer com aquele tema recebesse cada vez menos cobertura jornalística e as pressões por eventuais progressos também desapareceriam.
Por fim, existe mais uma questão, muito comum quando observamos reportagens sobre outras pessoas sofrendo: se ficarmos muito angustiados com o que observamos, podemos sentir burnout e nos afastar da cobertura como um todo.
Como evitar a dessensibilização
O que podemos fazer a respeito? Como podemos acompanhar as notícias sem ficarmos impressionados, nem dessensibilizados?
Como podemos acompanhar as muitas questões que o mundo enfrenta hoje em dia, atingindo um equilíbrio que nos permita seguir adiante, mas sem aceitá-las como algo “normal”?
Quando o assunto é o consumo de notícias, os pesquisadores sugerem fazê-lo de forma consciente – em momentos específicos, por exemplo – quando nos sentirmos sufocados por uma crise em particular.
Como a novidade é importante, eu também sugeriria a você que, para permanecer bem informado, cuide para que a sua oferta de notícias seja diversificada.
Mesmo se houver um tema ou uma crise específica que você queira conhecer com mais detalhes, expanda seus horizontes para além da mesma fonte ou até do mesmo tipo de mídia.
Se você estiver acompanhando a guerra na Faixa de Gaza, não leia apenas as manchetes sobre os acontecimentos mais urgentes. Procure análises sobre política externa e relatos em primeira pessoa, assista a documentários, ouça audiolivros e leia poesia.
E, principalmente, acompanhe os pontos de vista dos dois lados da guerra.
Também é importante se lembrar de colocar os acontecimentos em perspectiva. Lembre-se de que pensar em prazo mais longo traz um ponto de vista diferente sobre o presente.
Pode ser importante examinar o passado e tentar entender como chegamos até aqui, substituindo parte da cobertura jornalística diária, por exemplo, por livros de história ou documentários.
Ou você pode olhar para frente: o que esta questão poderá significar para o futuro? Para isso, procure análises sobre o que as nossas decisões atuais podem significar daqui a um, 100 ou até mil anos.
E quanto à nossa tendência de nos adaptarmos às circunstâncias que nos afetam mais diretamente, mesmo aquelas que não deveríamos simplesmente aceitar como “normais”?
O primeiro passo é reconhecer que essa habituação é um fato. Tire um momento para refletir sobre as coisas às quais você começou a se acostumar, seja dentro de casa, na sua comunidade ou no seu país – e que, na verdade, você gostaria que elas não fossem normais.
Só depois, você pode planejar suas ações. Alguns pesquisadores sugerem associar a “violência lenta” à “resistência lenta”, ou à “não violência lenta”. Isso inclui ações progressivas do dia a dia, simples como compartilhar conhecimento sobre um determinado tema.
Os pesquisadores responsáveis pelo estudo de habituação às mentiras vantajosas também sugerem estabelecer distância emocional das circunstâncias, a fim de observá-las com novos olhos.
Se algo de que você não gosta sobre o seu país começar a parecer “normal” para você, tente falar com alguém que more em outro lugar, leia sobre como essa mesma questão é abordada em outros países ou, se puder, até viaje para o exterior.
Eu também defenderia que, se uma determinada questão for importante para você hoje, não acredite que você terá o mesmo compromisso emocional daqui a um mês ou um ano. Por isso, transforme a tomada de ações em um hábito.
Coloque na sua agenda dedicar cinco minutos regularmente para escrever aos seus representantes políticos, por exemplo. Ou programe uma doação mensal recorrente para uma entidade que represente uma causa do seu interesse, em vez de fazer doações fragmentadas quando surge a motivação.
Pesquisas indicam que tomar medidas sobre um assunto estressante reduz a probabilidade de sofrer burnout sobre aquele tema.
E, acima de tudo, tenha em mente que, do comércio global de pessoas escravizadas até o apartheid na África do Sul, existem inúmeras situações horríveis que pareciam enraizadas e impossíveis de serem alteradas por décadas e até séculos. E que, em vários momentos, teriam parecido o “novo normal”.
Mas elas acabaram mudando. E aquelas circunstâncias que não queremos que façam parte do futuro – nosso ou dos nossos filhos – também podem mudar.
*Amanda Ruggeri é jornalista de ciências e escritora de artigos premiada. Ela escreve sobre know-how, alfabetização midiática e mais na sua conta @mandyruggeri no Instagram.
Fonte: BBC
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