- Shin Suzuki
- Da BBC News Brasil em São Paulo
O fim do governo Jair Bolsonaro também marca o encerramento de um período particularmente tumultuado para a diplomacia brasileira, que se distanciou nos últimos anos tanto das potências ocidentais quanto de orientais, além de vizinhos na América do Sul.
Logo no seu primeiro discurso após a vitória no segundo turno, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) usou o termo “pária do mundo” para descrever a atual situação do país no cenário internacional.
Já representantes do governo Bolsonaro, como o ex-chanceler Ernesto Araújo, disseram ao longo do mandato que trabalhavam pela estratégia de tornar o Brasil um ator global.
A cerimônia de posse de Lula, no domingo (1º/1), terá a presença de líderes de Alemanha, Angola, Argentina, Bolívia, Cabo Verde, Chile, Colômbia, Equador, Espanha, Guiana, Guiné Bissau, Mali, Marrocos, Paraguai, Portugal, República de Guiné, São Vicente e Granadinas, Suriname, Timor Leste, Togo e Uruguai.
Também haverá representantes de África do Sul, Arábia Saudita, Argélia, Azerbaijão, Camarões, China, Costa Rica, Cuba, Estados Unidos, El Salvador, França, Gabão, Guatemala, Guiné Equatorial, Haiti, Irã, Jamaica, Japão, Moçambique, Palestina, Panamá, México, Nicarágua, Palestina, Reino Unido, República Dominicana, Rússia, Sérvia, Ucrânia, Turquia e Zimbábue.
Alguns desses países tiveram divergências com o Brasil, algumas delas sérias, em anos recentes.
Para especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, há oportunidades para restaurar as pontes danificadas seguindo o mote “credibilidade, previsibilidade e estabilidade”, defendido por Lula para a diplomacia em seu próximo mandato.
Além da reaproximação com as potências mundiais China, EUA, França e Alemanha, há espaço para diálogos com países latino-americanos, vários deles hoje governados pela esquerda (caso de Argentina, Chile, Colômbia e México) e de afinidade histórica com o presidente eleito.
Existe também a possibilidade de uma nova política diplomática Sul-Sul, ou seja, voltada para nações em desenvolvimento do Hemisfério Sul, o que representaria mais contatos com a África. Foi uma marca dos dois primeiros mandatos de Lula.
E mesmo a Rússia, que se acercou de Bolsonaro pouco antes do início da Guerra na Ucrânia, fez acenos ao novo governo. Lula tuitou na terça-feira (20/12) que conversou com o presidente Vladimir Putin e discutiu o “fortalecimento da relação”. Foi anunciada a vinda de uma representante russa para a posse em Brasília.
O futuro ministro das Relações Exteriores, embaixador Mauro Vieira, anunciou que as primeiras viagens internacionais de Lula serão para Argentina, Estados Unidos e China, possivelmente nos três primeiros meses de 2023.
Mudança de tom
Vieira, experiente diplomata de 71 anos, retorna ao cargo de chanceler após uma passagem durante o segundo mandato de Dilma Rousseff (PT).
Seu anúncio causou bem menos ruído dentro da instituição do que o nome de Ernesto Araújo — que nunca havia chefiado uma embaixada e foi alçado por Bolsonaro ao posto máximo das relações exteriores principalmente por suas ligações com o filósofo Olavo de Carvalho (1947-2022).
Em seu período como chanceler, Ernesto Araújo se envolveu em diversas controvérsias.
Hostilizou abertamente a China (o maior parceiro comercial do Brasil), rompeu o caráter historicamente conciliador do Itamaraty durante votações em organismos multilaterais e minimizou a crise climática num momento em que o tema ganhava importância a cada dia.
Pressionado, Araújo foi substituído em março de 2021 pelo diplomata de carreira Carlos Alberto França, de atuação bem menos ruidosa à frente do cargo.
Mas mesmo quando o Itamaraty não estava envolvido, o governo Bolsonaro ocupou manchetes internacionais em situações inesperadas.
No primeiro ano de mandato, o ministro da Economia, Paulo Guedes, ofendeu gratuitamente a primeira-dama francesa Brigitte Macron ao dizer que ela “é feia mesmo”.
Guedes voltou a ser mencionado pela mídia francesa ao declarar que o país europeu (maior empregador estrangeiro em território brasileiro) está “ficando irrelevante” para o Brasil e que o governo poderia “ligar o f…-se”.
Assim, ainda pré-candidato à Presidência e sem um cargo oficial, Lula foi convidado pelo presidente francês Emmanuel Macron para um encontro de pouco mais de uma hora em Paris, em novembro de 2021, com honrarias reservadas a altas personalidades.
Na mesma viagem ainda reuniu-se com Olaf Scholz, atual premiê alemão e então sucessor de Angela Merkel, e o primeiro-ministro espanhol Pedro Sánchez.
Agenda ambiental vai ser motor de relações internacionais
Com a vitória de Lula, a esperada reaproximação com França e Alemanha, os dois sócios mais poderosos da UE, deve se dar principalmente sob uma base: a questão ambiental em meio ao agravamento da crise climática, um dos principais motivos de fricção com os europeus nos anos Bolsonaro.
“Acho que uma parte muito importante da cooperação do Brasil com o resto do mundo será na parte do meio ambiente, que se tornou um tema muito importante ao longo dos últimos anos. Essa é a grande diferença entre o cenário internacional dos dois primeiros governos Lula com o do próximo”, diz Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da FGV (Fundação Getúlio Vargas) em São Paulo.
Adriana Abdenur, diretora da plataforma Cipó e parte da atual equipe de transição na área de relações exteriores, afirma que os temas de desenvolvimento sustentável, clima e meio ambiente servirão de pontes não só com países mais ricos.
“Eles podem representar parte de uma nova base para a integração regional, por meio da revitalização de espaços como o Mercosul, a Organização do Tratado de Cooperação da Amazônia, a Unasul [União de Nações Sul-Americanas,] assim como a Celac [Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos]. E o Brasil jogando em diversas agendas desses espaços pode, então, compor arranjos regionais”.
Vicente Ferraro Jr., cientista político e pesquisador do Laboratório de Estudos da Ásia da Universidade de São Paulo (USP), lembra que Brasil, Indonésia e República Democrática do Congo (RDC) anunciaram o esboço de um acordo na última Conferência do Clima das Nações Unidas.
Os três países, que possuem 52% de todas as florestas tropicais remanescentes do planeta, pretendem atuar juntos com o objetivo de negociar um mecanismo internacional de incentivo financeiro para a preservação ambiental.
“Esse grupo é possivelmente parte de uma estratégia de agenda ambiental que a diplomacia brasileira pode vir a buscar, porque é prioritária para os países do Hemisfério Norte. Pode vir a ser um importante laço”, diz Ferraro Jr.
“O Brasil havia investido e acumulado antes uma grande credibilidade, uma atuação muito propositiva em várias áreas de desenvolvimento sustentável, clima, meio ambiente, paz e segurança. A interrupção disso representou uma inversão do papel do Brasil, que causou grande alarme. E eu diria até perplexidade”, analisa Abdenur.
Volta da ênfase no multilateralismo
Integrante da equipe de transição, Abdenur relata que “ao contrário de outros ministérios que foram realmente esvaziados, inclusive no sentido de estrutura de pessoal, o Ministério das Relações Exteriores não foi desfalcado”.
Mas ela diz que há problemas.
“Encontramos uma série de dívidas para com organizações internacionais, inclusive órgãos-chave, como a Assembleia Geral das Nações Unidas. Muitas dessas dívidas põem em xeque de uma forma muito imediata o poder de voto do Brasil. E isso traz repercussões para uma gama muito ampla de debates, discussões, mas também de políticas públicas.”
Contatado pela BBC News Brasil, o Itamaraty não respondeu sobre essa questão nem sobre outras críticas acerca de sua atuação durante o governo Bolsonaro.
De qualquer forma, a tendência é que organizações multilaterais sejam o meio para o Brasil estimular diferentes formas de integração e coordenação, diz Ferraro Jr.
“É possível que haja um esforço de retomar a Unasul e outros fóruns regionais e um esforço para aprofundar as relações no âmbito do Mercosul.”
Para isso, analisa o cientista político, será fundamental também superar disputas ideológicas no continente.”A gente tem um cenário em que haverá governos de direita convivendo com outros de esquerda no continente. Esse projeto de integração sul-americano, latino-americano, não pode ter um entrave ideológico muito profundo porque inviabiliza o modelo.”
Venezuela e Brics
O futuro chanceler Mauro Vieira declarou que o restabelecimento das relações com a Venezuela, rompida por Bolsonaro, ocorrerá logo no início do governo.
Na visão de Abdenur, “a normalização com o governo Maduro e com outros governos que foram colocados para escanteio nos últimos anos é essencial. Não necessariamente porque o novo governo vá concordar com todos os posicionamentos desses países, mas porque o Brasil tem uma tradição de universalismo através da qual ele dialoga com todos os países”.
Fica a incógnita de como será a cooperação política no âmbito dos Brics, o bloco de países emergentes formado por Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul, observa Ferraro Jr.
“Haja vista que a Rússia é membro do Brics e a gente não sabe o quanto aparecer ao lado de uma figura como Vladimir Putin pode ser prejudicial para Lula e para a política externa brasileira.”
Brasil no meio da tensão e recessão mundiais
A volta de Lula ao poder se dá em um momento bem diferente do início dos anos 2000, quando começou seu primeiro mandato.
Havia entusiasmo pela globalização, e as tensões atuais entre Rússia x Europa Ocidental e Estados Unidos x China estavam em um estágio embrionário.
Stuenkel, da FGV, diz que “no meio das tensões crescentes entre grandes potências, me parece que não haverá muita mudança. Como foi com Bolsonaro, Lula buscará manter uma certa neutralidade para não ter que escolher entre esses blocos”.Outro desafio será enfrentar a perspectiva de uma recessão econômica mundial. Uma parte importante da popularidade de Lula em seus primeiros mandatos se deve aos bons números da economia, que foi ajudada na época por um boom de commodities.
“A expectativa de uma recessão internacional complica a recuperação do Brasil e diminui a chance de uma pacificação social. Isso atrapalha claramente as chances de estabelecer uma cooperação mais ampla pela necessidade de lidar com desafios internos”, diz Stuenkel.
“Agora, a crise é crescente na geopolítica, seja na Ucrânia ou lá na frente em relação a Taiwan. Também pode trazer algumas vantagens para a América Latina porque justamente alguns investidores podem preferir regiões que estão longe desse risco geopolítico. Mas, em geral, obviamente, a recessão sempre tende a aumentar a instabilidade política e dificultar a cooperação.”
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