- Author, João Fellet e Felix Lima
- Role, Enviados da BBC News Brasil a Salvador
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O Brasil não terá representantes na disputa de breaking nos Jogos de Paris, mas capoeiristas brasileiros tiveram um papel importante na consolidação do esporte que fará sua estreia em Olimpíadas nesta sexta-feira (9/8).
No fim dos anos 1970 e início dos 1980, os capoeiristas baianos Jelon Vieira e Loremil Machado viviam em Nova York, onde davam aulas de capoeira e se apresentavam em shows.
Uma amiga então os convidou a se exibir em uma escola pública no Bronx, bairro nova-iorquino considerado o berço moderno do breaking.
“Era uma área bem perigosa”, conta à BBC Jelon Vieira, hoje com 71 anos. Ele diz que os alunos – na maioria negros ou latinos praticantes de breaking – assistiram em êxtase à apresentação de capoeira, misto de dança e luta legado por africanos escravizados e seus descendentes no Brasil.
“Loremil era fantástico”, diz Jelon sobre as habilidades de seu parceiro, morto em 1994. “E ele era muito bonito. [Vendo] o corpo dele, dava pra estudar anatomia.”
Jelon diz que os estudantes ficaram impressionados com os movimentos e, após a exibição, tentaram imitá-los.
Começava ali um intercâmbio que duraria muitos anos e que, segundo Jelon, fez com que o breaking incorporasse vários movimentos da capoeira, entre os quais o pião de cabeça, o relógio e o pião de mão (nos quais o praticante rodopia apoiado em diferentes partes do corpo).
A relação entre a capoeira e o breaking já foi citada pelo jornal The New York Times. Em 1989, Jon Pareles, chefe da editoria de artes do jornal, definiu a capoeira como “uma dança de artes marciais que antecipou o break dancing”.
Mestre Jelon diz que chegou a ser descrito pela imprensa americana como o “pai do breaking”, mas rejeita o título. “Eu não criei o break dance, mas contribuímos com ele”, diz.
Para Jelon, ainda que o breaking moderno tenha surgido em Nova York, o esporte é “mais um presente da África para o mundo”.
Ele diz ter reforçado sua convicção ao ver o documentário “The North Rejoices”, de 1959. Nele, moradores de uma aldeia na Nigéria executam vários movimentos semelhantes aos do breaking moderno.
Sucesso da capoeira em Nova York
Mas o papel da capoeira em Nova York vai bem além de sua influência no breaking. Uma pesquisa no Google hoje revela a existência de 22 academias de capoeira na cidade.
Além disso, várias escolas públicas nova-iorquinas oferecem a modalidade – ago incomum em cidades brasileiras, segundo mestre Jelon.
Ele conta que a capoeira lhe abriu portas para que também se tornasse coreógrafo nos EUA. Jelon é fundador de uma companhia de dança (DanceBrazil), e já coreografou musicais da Broadway e filmes de Hollywood, como Brenda Starr (1989), estrelado por Brooke Shields, e Boomerang (1992), com Eddie Murphy.
Grandes feitos para quem chegou a Nova York aos 22 anos de idade sem falar inglês.
Nascido em Santo Amaro, no Recôncavo Baiano, e criado por uma mulher negra, viúva e mãe de sete filhos, Jelon aprendeu capoeira aos 10 anos no Engenho Velho de Brotas, bairro de Salvador para onde a família se mudou na sua infância.
Até que, durante a ditadura militar (1964-1985), uma notícia o chacoalhou: três amigos desapareceram após colar panfletos políticos nas ruas para ganhar uns trocados.
“Eu me revoltei com aquilo, disse ‘não quero mais ficar no Brasil’. Eu lembrei que eu era capoeirista, e aquela era a minha única salvação”, conta.
Jelon sabia de um grupo em Salvador que estava contratando capoeiristas para apresentações de cultura afro-brasileira no exterior, o Viva Bahia, coordenado pela etnomusicóloga Emília Biancardi.
Ele fez um teste e passou. Em 1974, integrou uma expedição que tinha entre seus integrantes um dos capoeiristas mais conhecidos do Brasil na época, mestre João Grande, com quem seu caminho voltaria a se cruzar adiante.
A viagem incluiu apresentações em vários países da Europa e no Irã, na época uma monarquia comandada pelo xá Reza Pahlavi (1919-1980). “Fizemos um show para família real e convidados. Era coisa de sonhos”, ele recorda.
No dia seguinte à apresentação para o xá, Jelon conta que o grupo se exibiu para o “povão” iraniano em um teatro lotado. Ele diz que o público foi ao delírio quando os capoeiristas entraram em cena. “Eles não estavam acostumados a ver homens sem camisa e ficaram doidos”, conta.
A viagem, porém, quase termina em tragédia: uma dançarina do grupo foi apedrejada ao caminhar por Teerã com um vestido que deixava o corpo à mostra. Jelon diz que a jovem chegou a ser hospitalizada por causa dos ferimentos, mas se recuperou.
Primeira escola de capoeira fora do Brasil
Depois da viagem, Jelon deixou o grupo Viva Bahia e foi tentar a sorte em Nova York. Em 1975, ele abriu no bairro Soho, na ilha de Manhattan, o espaço que ele considera “a primeira escola de capoeira fora do Brasil”.
Foi o início de uma carreira de sucesso – e que lhe deu uma condição financeira a que poucos mestres de capoeira poderiam almejar no Brasil.
Como Jelon, alguns dos homenageados decidiram deixar o Brasil em busca de melhores condições. E para um antigo companheiro de Jelon ali presente, a viagem à Bahia tinha um sabor especial.
O retorno de João Grande
A tarde caía em Salvador, e uma multidão de capoeiristas aguardava em uma tenda ao lado do Mercado Modelo por uma das atividades mais esperadas do evento, classificado pelos organizadores como “o maior encontro de capoeira de todos os tempos”.
“Filho, vem ver, é mestre João Grande”, uma mulher sussurrou enquanto o público abria passagem para um homem negro com as costas envergadas pela idade.
Aos 91 anos, João Grande voltava para a mesma Bahia que o “expulsara” na década de 90, quando, incapaz de sobreviver da capoeira ali, seguiu os passos de Jelon Vieira e também se mudou para os Estados Unidos.
Desta vez, porém, ele era a grande estrela do evento – e motivo pelo qual muitos haviam viajado de diferentes partes do país até Salvador. Queriam ver, em carne e osso, um personagem que só conheciam de filmes, livros e músicas.
Ao lado de alunos estrangeiros, todos fluentes em português, João Grande deu uma oficina ao grupo. Movia-se com agilidade, indicando com as mãos como os movimentos deveriam ser feitos.
Depois, sentou-se e respondeu com sorrisos e acenos às homenagens dos participantes.
“Parece que estou no céu”, ele disse à BBC dias depois, na casa espaçosa em Salvador em que se hospedou durante a estadia.
“Todos me tratam bem aqui, todos me ajudam”, afirmou. Um cenário bastante distinto do que ele enfrentara ao longo de boa parte de sua vida.
Nascido em Itagi, no interior da Bahia, em 1933, João Oliveira dos Santos se mudou para Salvador na juventude e trabalhou como empregado doméstico de uma família.
Em troca dos serviços, não recebia dinheiro, só comida e roupas. Depois, trabalhou em um depósito de cachaça, transportando a bebida “na cabeça, no jegue, entregando nos armazéns”.
João Oliveira dos Santos só virou capoeirista depois de conhecer Vicente Ferreira Pastinha, o mestre Pastinha (1889-1981), considerado o pai da Capoeira Angola.
Nessa vertente, o jogo costuma ser mais cadenciado e próximo do chão, ao passo que na Capoeira Regional, criada por mestre Bimba (1900-1974), os golpes são normalmente mais rápidos e desferidos em pé.
Mestre Pastinha ensinou capoeira ao jovem itagiense e o escolheu como um de seus discípulos ao lado de outro aluno, João Pereira dos Santos (1917-2011). Um virou João Grande, e o outro, João Pequeno.
Na época, João Grande tinha de conciliar a capoeira com outras atividades para pagar as contas. Em 1958, ele diz ter passado três meses como operário na construção da rodovia Belém-Brasília.
Em depoimento na tese “Mestre João Grande entre a Bahia a Nova York”, com que Maurício Barros de Castro obteve o título de Doutor em História pela USP, em 2007, João Grande conta como praticava capoeira durante a obra.
“Treinava sozinho com as moitas e com os bichos”, disse.
A experiência o remeteu à infância na roça, em Itagi, quando passava horas assistindo às danças de peixes e aves. Maravilhado com a capacidade que os bichos tinham de se mover sem jamais tocar uns aos outros, levou isso para sua capoeira anos depois.
À BBC João Grande filosofa sobre essas conexões. “Capoeira é natureza. Tudo o que nós temos, dado por Deus, sai da capoeira, sai da natureza”, afirma.
“Um pé de mato me ensina a jogar, um bicho ensina como é sua ginga”, ele diz.
Anos depois de trabalhar na construção da rodovia, João Grande acompanhou mestre Pastinha numa viagem de grande simbolismo na história da capoeira.
Nela, brasileiros exibiram a modalidade no Festival de Artes Negras em Dakar, no Senegal, em 1966 – em viagem citada na música Triste Bahia, de Caetano Veloso (“Pastinha já foi à África/pra mostrar capoeira do Brasil”).
Também integravam a comitiva brasileira o músico Paulinho da Viola, a ialorixá Olga de Alaketu e a cantora Clementina de Jesus, entre outros artistas afro-brasileiros.
João Grande diz que, na viagem, Pastinha fazia questão de destacar a origem africana de sua arte. “Ele dizia: ‘isto é capoeira de vocês (africanos) que agora está com a gente lá, no Brasil'”.
Alguns africanos reagiam com surpresa, e outros reconheciam semelhanças entre a capoeira e danças locais, conta João Grande.
Embora haja algumas teorias divergentes, a maioria dos estudiosos da capoeira afirma que a modalidade de fato tem raízes africanas.
“Quem inventa a capoeira são os africanos aqui no Brasil: uma mistura étnica de diversos grupos que vão se compor aqui e que vão fazer essa invenção”, defende Antonio Liberac, capoeirista e professor titular de História da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.
Mas se africanos criaram a capoeira no Brasil, diz Liberac, foram brasileiros descendentes de africanos que deram à modalidade a roupagem atual com que ela ganhou o mundo – e entre eles, João Grande.
“É um mestre espetacular, um dos principais responsáveis pela manutenção da tradição dessa capoeira do século 20”, diz Liberac.
Para a etnomusicóloga Emília Biancardi, que conviveu com João Grande nas expedições do grupo Viva Bahia nos anos 1970, ele “é um dos únicos que realmente têm ainda uma verdade dentro da tradição que recebeu dos antepassados”.
Do posto de gasolina a Nova York
Mas a fama e o talento como capoeirista não garantiram a João Grande uma vida confortável em Salvador.
As aulas e apresentações rendiam cada vez menos dinheiro, e ele chegou a ter de trabalhar como lavador de carros em um posto de gasolina. Em 1990, depois de anos de penúria, decidiu emigrar para os Estados Unidos
Ao se mudar para Nova York, que já visitara a convite do antigo parceiro Jelon Vieira, João Grande conseguiu viver só de capoeira e ganhou um reconhecimento que jamais tinha obtido no Brasil.
Em 2001, ele recebeu da agência do governo americano National Endowment for the Arts o National Heritage Fellowship, descrito pelo órgão como “a mais alta honraria da nação em artes folclóricas e tradicionais”.
“Estamos muito felizes e orgulhosos de que ele faça parte da nossa cultura”, disse o apresentador do prêmio antes de entregá-lo ao capoeirista.
João Grande disse à BBC que, ao se mudar para os EUA, queria evitar um final de vida parecido com o de seu mentor, mestre Pastinha, morto em 1981.
Cego, solitário e sem dinheiro, o criador da Capoeira Angola passou seus últimos dias morando de favor num quarto úmido e escuro do Pelourinho.
“Fiquei muito triste por não ter um recurso para ajudar ele”, diz João Grande.
‘Vaquinha para pagar enterro’
Ao conceber o 5º Rede Capoeira para homenagear os velhos mestres, Jair Oliveira Júnior, o mestre Sabiá, disse que queria estimular uma reflexão sobre como o Brasil trata os pioneiros da modalidade.
Entre os capoeiristas homenageados pelo evento – 14 deles acima dos 80 anos -, vários hoje enfrentam dificuldades financeiras, segundo ele.
“Desde criança eu sempre via todos esses mestres em situações extremamente fragilizadas no final do seu ciclo de vida, e sempre se fazia uma vaquinha para pagar o enterro ou para dar algum tipo de assistência médica, comprar remédio”, ele conta à BBC.
Não por acaso, diz Sabiá, até hoje muitos mestres resolvem sair do Brasil. Segundo o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), hoje mais de 150 países têm grupos de capoeira, muitos deles liderados por brasileiros.
Em vários desses países, a capoeira também está presente em escolas, e universidades convidam mestres brasileiros a lecionar em universidades – status que a modalidade nunca alcançou no Brasil.
Por esses motivos, ao longo do evento em Salvador, vários participantes cobraram políticas públicas que amparem os mestres no fim de suas vidas e os encorajem a permanecer no Brasil.
“Esses caras não são só mestres, eles são heróis, porque venceram contra tudo e contra todos, e o mínimo que a gente poderia fazer era devolver a dignidade a eles”, defende Sabiá.
Políticas para a capoeira?
A BBC questionou a ministra da Cultura, Margareth Menezes, sobre as cobranças de capoeiristas por políticas voltadas aos velhos mestres, como uma espécie de bolsa que os sustente no fim da vida.
Em entrevista em seu gabinete, em Brasília, a ministra disse considerar a capoeira “um dos grandes legados da cultura brasileira”.
Menezes afirmou, no entanto, que “o Ministério da Cultura não tem (a possibilidade) de fazer uma ação direta, de fazer um tipo de bonificação”.
A solução, segundo ela, seria a aprovação de um Projeto de Lei que busca a “proteção e promoção dos Mestres e Mestras dos Saberes e Fazeres das Culturas Populares”.
O PL 1176, de 2011, está tramitando no Congresso e prevê, entre outros pontos, a concessão de bolsas e premiações para grandes mestres de diversas tradições populares, entre as quais a capoeira.
“O que nós podemos fazer é buscar com que o Congresso se sensibilize para que essa lei tramite logo”, disse a ministra.
Ela afirmou ainda que outro objetivo de sua gestão é fazer com que artes da cultura popular – incluindo a capoeira – sejam ensinadas em escolas que adotem o ensino integral.
O pleito, segundo Menezes, está sendo tratado com o Ministério da Educação.
Tesouro do Brasil… ou dos EUA?
Por ora, diz o mestre Jelon Vieira, há poucos incentivos para que capoeiristas que encontraram reconhecimento no exterior voltem a morar no Brasil.
Em 2008, sete anos depois de João Grande ser agraciado com o National Heritage Fellowship, Jelon foi convidado à Casa Branca para receber o mesmo prêmio. Na cerimônia, ouviu que ele era um “tesouro” para a cultura dos EUA.
Jelon descreve o que sentiu naquele instante. “Na minha cabeça veio: ‘eu gostaria de ser o tesouro nacional do Brasil’, ele conta.
“Afinal, eu me sentia um embaixador cultural, eu estava levando a cultura baiana e brasileira para o mundo”, ele diz.
Na célebre Chiclete com Banana, gravada por Jackson do Pandeiro em 1959, os compositores Gordurinha e Almira Castilho prometeram só botar “bebop no meu samba quando Tio Sam tocar um tamborim”.
O berimbau, ele já está aprendendo a tocar.
Fonte: BBC
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