- André Bernardo
- Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil
Por pouco, muito pouco mesmo, o Zé Carioca não seria um… tatu. Em agosto de 1941, os desenhistas Franklin Thomas (1912-2004) e Norman Ferguson (1902-1957), que acompanharam Walt Disney (1901-1966) em sua viagem ao Brasil, chegaram a fazer esboços de um simpático tatu-bola tamborilando um pandeiro.
No entanto, de tanto ouvir piada de papagaio, algumas delas contadas pelo jornalista Gilberto Souto (1906-1972), correspondente da revista Cinearte em Hollywood, Walt Disney mudou de ideia e optou por outro animal da fauna brasileira para representar o país em um de seus próximos filmes: o papagaio.
A visita do ‘pai’ do Mickey Mouse ao Brasil começou em 17 de agosto de 1941 quando, por volta das seis da tarde, ele, sua mulher, Lillian (1899-1997), e uma equipe de 16 profissionais, oito desenhistas e oito animadores, desembarcaram no Rio de Janeiro. Do aeroporto Santos Dumont, parte da comitiva seguiu para o Hotel Glória, o primeiro cinco estrelas do Brasil; e parte para o Copacabana Palace, um dos mais tradicionais da orla carioca.
O motivo oficial da visita de Walt Disney ao Brasil foi a divulgação de Fantasia (1940), o terceiro longa de animação dos estúdios Disney. A estreia no dia 23 de agosto, no Pathé Palácio, na Cinelândia, Centro do Rio, foi tão badalada que contou até com a presença do então presidente da República Getúlio Vargas (1882-1954) e da primeira-dama Darcy Vargas (1895-1968).
No dia seguinte, Walt Disney tirou o dia de folga para visitar o Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela. Saiu de Copacabana às cinco da tarde e seguiu para Madureira. Na Azul e Branco, assistiu a um ensaio da escola fundada em 1923 e conheceu o sambista Paulo Benjamin de Oliveira (1901-1949), o Paulo da Portela.
O sambista de Oswaldo Cruz, reza a lenda, teria sido uma das fontes de inspiração para o Zé Carioca. Mas, não foi a única. O figurino do papagaio, por exemplo, foi baseado no rábula alagoano Manuel Vicente Alves, o Dr. Jacarandá (1869-1948), um tipo para lá de folclórico das ruas do Rio. Ele gostava de usar, entre outros adereços, paletó, chapéu-palheta, gravata-borboleta e guarda-chuva. “Pode confiar em mim”, gostava de dizer aos seus clientes. “Sou igual a jacarandá: pau para toda obra”.
Em sua passagem pelo Rio, Walt Disney conheceu alguns brasileiros ilustres. O compositor Heitor Villa-Lobos (1887-1959) foi um deles. O cartunista José Carlos de Brito e Cunha (1884-1950), o J. Carlos, foi outro. Durante um jantar no Copacabana Palace, J. Carlos deu de presente ao visitante a ilustração de um papagaio abraçando o Pato Donald. Até hoje, não se sabe ao certo que fim levou o desenho de J. Carlos. Ou, ainda, se Walt Disney aproveitou algo dele na criação do personagem.
“Ao longo desses 80 anos, o Zé Carioca sofreu muitas alterações no visual. Trocou o tradicional paletó e a gravata-borboleta, por pulôver ou camiseta branca. Numa fase, usou boné. Noutra, tênis”, exemplifica o pesquisador Marcus Ramone, autor de Entre Patos e Ratos: a Epopeia dos Quadrinhos Disney (Editora Noir). “É o meu personagem Disney favorito. Ao contrário de outras aventuras em quadrinhos da Disney, que se passavam em Patópolis, as do Zé se desenrolavam no Rio de Janeiro. Havia muitos elementos familiares ao público brasileiro, a começar pela condição social do personagem”.
Mas, o Zé Carioca não estaria completo se não fosse o músico paulista José do Patrocínio Oliveira (1904-1987), o Zezinho. Um dos integrantes do conjunto musical Bando da Lua, que acompanhava a cantora Carmen Miranda (1909-1955), foi ele quem emprestou a voz ao Zé Carioca no filme Alô, Amigos (1942), que marcou a estreia do mais brasileiro dos personagens da Disney no cinema.
Ao todo, Walt Disney e sua trupe passaram 23 dias no Rio, de 17 de agosto a 8 de setembro de 1941, quando partiram para Buenos Aires. Entre outros compromissos, Disney visitou o Jardim Botânico, conheceu o Pão de Açúcar e concedeu entrevista à imprensa.
Na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), um dos repórteres quis saber se a viagem tinha motivação política. “Não me preocupo com esses assuntos. Bastam-me os meus próprios problemas para me preocupar bastante…”, respondeu o entrevistado, segundo o jornal O Globo, de 19 de agosto de 1941.
Polêmicas à parte, Walt Disney não veio ao Brasil só para lançar Fantasia. A viagem fazia parte da Política de Boa Vizinhança, estratégia política adotada pelo presidente Franklin Roosevelt (1882-1945) para angariar a simpatia de aliados latino-americanos na Segunda Guerra Mundial.
“O Zé Carioca surgiu com uma perspicácia que beira a malandragem. Além disso, é um fã que adora e adula o Pato Donald. Isso demonstra o que é, no entendimento dos artistas da Disney, ser um ‘bom amigo'”, analisa o historiador Alexandre Maccari Ferreira, doutorando em Comunicação pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). “Por um lado, o Zé Carioca tem características metonímicas do ‘brasileiro padrão’, como a alegria. Por outro, as penas do seu rabo são das cores da bandeira norte-americana”. O tema de sua dissertação de mestrado de Alexandre foi O Cinema Disney Agente da História: A Cultura nas Relações Internacionais Entre Estados Unidos, Brasil e Argentina (1942-1945).
Poucos dias antes de desembarcar no Rio, Walt Disney teve a oportunidade de ouvir, pela primeira vez, o samba-exaltação Aquarela do Brasil, de Ary Barroso (1903-1964). Foi em Belém (PA), onde o avião em que ele e sua equipe viajavam pousou para abastecer. Estava hospedado no Grande Hotel, na capital paraense, quando notou que o conjunto musical só tocava canções estrangeiras. Intrigado, pediu ao maestro que executasse alguma música típica do Brasil. O pianista, então, arriscou alguns acordes de Aquarela do Brasil, composta dois anos antes. Walt Disney só veio a conhecer o compositor no último dia de sua visita ao Rio, em um coquetel oferecido pelo Consulado dos Estados Unidos no Hotel Glória.
Na biografia No Tempo de Ari Barroso (1993), o jornalista Sérgio Cabral conta que Ary Barroso compôs Aquarela do Brasil na noite de 28 de fevereiro de 1939. Chovia muito e, sem poder sair de casa, começou a tocar uma nova canção ao piano. Minutos depois, já havia terminado letra e música. “O objetivo do vovô era fugir das tragédias da vida e exaltar as belezas de nosso país”, explica Márcio Barroso, neto de Ary. “Naquela mesma noite, pouco depois de concluir Aquarela do Brasil, compôs As Três Lágrimas. Uma não tem nada a ver com a outra”.
O primeiro comentário que ouviu a respeito de Aquarela do Brasil não foi lá muito encorajador. “O coqueiro que dá coco? Você queria que ele desse o quê?”, desdenhou o cunhado. Ary deu de ombros. De lá para cá, Aquarela do Brasil já ganhou 322 regravações: de Carmen Miranda a Elis Regina (1945-1982), de Bing Crosby (1903-1977) a João Gilberto (1931-2019), de Frank Sinatra (1915-1998) a Plácido Domingo.
Zé Carioca e Aquarela do Brasil estrearam juntos no cinema. Foi no dia 24 de agosto de 1942, quando os cinemas brasileiros exibiram Alô Amigos (Saludos Amigos, no original). Nos EUA, a estreia só aconteceu seis meses depois, em 6 de fevereiro de 1943. Zé Carioca fez tanto sucesso que voltou a dar o ar de sua graça em dois outros longas-metragens: Você Já Foi à Bahia? (The Three Caballeros, 1944) e Tempo de Melodia (Melody Time, 1948).
Por coincidência, Walt Disney convidou J. Carlos e Ary Barroso para trabalharem com ele, em Los Angeles, na Califórnia. Ambos recusaram a proposta. “Because don’t have Flamengo here” foi a desculpa que Ary Barroso, um flamenguista doente, deu para declinar do convite.
Se, nas telas de cinema, Zé Carioca estreou primeiro no Brasil e depois nos EUA; nas tirinhas de jornal, se deu o contrário: estreou primeiro lá e depois aqui. Com roteiro de Hubie Karp (1915-1953) e desenhos de Bob Grant (1914-1968) e Paul Murry (1911-1989), Zé Carioca (Joe Carioca, no original) estreou nas páginas dos jornais americanos em 11 de outubro de 1942. Ele só chegou ao Brasil em 2 de fevereiro de 1943 quando O Globo Juvenil passou a publicar algumas dessas histórias. Logo, o Zé Carioca passou a ser publicado também em revistas em quadrinhos. A estreia no formato gibi aconteceu em dezembro de 1942, na Walt Disney ‘s Comics and Stories. A história O Rei do Carnaval teve roteiro e desenho de Carl Buettner (1903-1965).
“Em suas primeiras tiras de quadrinhos, ainda produzidas nos EUA, pouca coisa realmente diferenciava o Zé dos demais personagens Disney. As tramas eram ambientadas em uma cidade que poderia ser qualquer outra. Isso começou a mudar quando os quadrinhos do Zé começaram a ser produzidos no Brasil por artistas locais. De repente, o Zé Carioca estava vivendo no Rio de Janeiro, na fictícia Vila Xurupita, comendo feijoada e jogando futebol”, analisa Paulo Maffia, editor-chefe da Culturama.
No Brasil, as histórias do Zé Carioca já foram publicadas por duas editoras: a Abril, entre 1961 e 2018, e a Culturama, desde 2020. A primeira revista em quadrinhos brasileira foi a do Pato Donald número 1, publicada em julho de 1950. O Zé Carioca aparece na capa, desenhada pelo artista argentino Luis Destuet. Aos poucos, o papagaio começa a conquistar seu próprio espaço. Em março de 1960, ele protagoniza sua primeira aventura totalmente brasileira, A Volta do Zé Carioca, de autoria de Jorge Kato (1936-2011). E, em janeiro de 1961, ganha sua própria revista.
“Houve um tempo em que a revista do Zé Carioca vendeu muito bem e atingiu o patamar de 180 mil exemplares. A título de comparação, O Pato Donald estava na faixa dos 200 mil”, explica Manoel de Souza, autor de O Império dos Gibis — A Incrível História dos Quadrinhos da Editora Abril (Editora Heroica).
Com o passar dos anos, o Zé Carioca ganhou um grande amor (Rosinha); um melhor amigo (Nestor); um rival (Zé Galo); um time de futebol (Vila Xurupita F.C.), uma versão heróica (Morcego Verde); e até uma série de primos, um de cada estado (Zé Paulista, Zé Jandaia, Zé Pampeiro, Zé Queijinho, Zé Baiano e Zé Pantaneiro).
“O Zé Carioca dos filmes é expansivo e acolhedor. Seu bom humor é contagiante. Quer bancar o esperto, mas com elegância e naturalidade, sem ser desleal. Já o Zé Carioca das revistinhas não é tão ético, mas é bem divertido. Era o típico malandro que gostava de levar vantagem em tudo. Vivia numa pindaíba de fazer gosto e não media esforços para alcançar uma alta condição social, sem ter que trabalhar duro. Hoje em dia, seria considerado ‘politicamente correto'”, compara o pesquisador Jorge Carvalho de Mello, autor de Muito Prazer, Zé Carioca — A Extraordinária Vida do Músico que Inspirou Walt Disney a Criar o Famoso Papagaio (Editora Noir), com previsão de lançamento para novembro.
Para comemorar seu aniversário de 80 anos do Zé Carioca, a Culturama acaba de lançar O Essencial do Zé Carioca — Celebrando 80 Anos, que reúne 14 histórias clássicas do papagaio, de Zé Carioca Contra o Goleiro Gastão, de janeiro de 1961, a Volta, Zé… Volta!, de setembro de 2020. Em edição de capa dura, estão reunidos alguns dos melhores roteiristas e desenhistas do Zé Carioca, como Waldyr Igayara de Souza (1934-2002), Renato Canini (1936-2013) e Ivan Saidenberg (1940-2009), entre outros.
Das 14 histórias de O Essencial do Zé Carioca, Que Galo É Esse, Zé?, publicada em março de 1983, é de autoria de Gerson Borlotti Teixeira. Das 518 histórias que escreveu só com personagens Disney, 187 são do Zé Carioca. “O Zé personifica a alegria, a esperança e até uma pitada de malandragem do brasileiro. Em tempos de politicamente correto, essa malandragem teve que ser praticamente esquecida”, explica Gerson, que estreou na Editora Abril em 1977. “A Disney tem um manual de ética e conduta muito rigoroso que deve ser seguido por qualquer empresa que tem os direitos de usar seus personagens. Antigamente, o Zé era conhecido por seus calotes e malandragens. Hoje, essas práticas são vetadas. Isso obriga os roteiristas a explorar outras características do personagem, como o alto-astral, o otimismo e a cara de pau de filar a feijoada na casa do Pedrão”.
Em outubro, a Culturama lança Zé Carioca Conta a História do Brasil. Com argumento do jornalista e escritor Eduardo Bueno e roteiro de Paulo Maffia, o livro revisita cinco episódios da História do Brasil, desde o Descobrimento até a Independência. Personagens Disney como Donald, Peninha e Gastão, entre outros, interpretam figuras históricas, como Pedro Álvares Cabral (1467-1520), Pero Vaz de Caminha (1450-1500) e Américo Vespúcio (1454-1512). “Minha inspiração foi o Don Rosa, autor de algumas das histórias mais épicas do Tio Patinhas”, conta Eduardo Bueno. “As histórias contadas pelo Zé Carioca não são 100% verdadeiras. Há muita ficção ali. O que eu procurei fazer foi brigar o menos possível a ficção com a realidade”.
Outro lançamento, previsto para novembro, é Muito Prazer, Zé Carioca, de Jorge Carvalho de Mello. Curiosamente, o violonista que inspirou, entre outros, a criação do Zé Carioca era paulista de Jundiaí. No livro, o autor conta que, depois que decidiu incluir o papagaio em seus desenhos animados, Walt Disney precisava de alguém para dublá-lo. O nome escolhido foi o do ator Grande Otelo (1915-1993), mas eles não chegaram a um acordo. “Zezinho estava em estúdio dublando O Dragão Relutante (1941) quando um funcionário da Disney procurou seu chefe para dizer que tinha encontrado a voz ideal para o papagaio. Além da voz, Zezinho emprestou sua ginga e malemolência ao Zé Carioca”, revela o autor.
Mas, a festa preparada para o Zé Carioca não se limita ao lançamento de livros e gibis. Um sem-número de produtos temáticos, de esmalte a chinelo, de pelúcia a quebra-cabeça, de capa de celular a instrumento musical, serão lançados ao longo dos próximos 12 meses. E, como toda festa que se preza, a do Zé Carioca ganhou até música: Os Zés do Brasil, composta por Leandro Lehart e cantada por Xande de Pilares. “O Zé Carioca mostra um lado lindo que o brasileiro tem e, muitas vezes, esquece que tem”, analisa Tokie Esaka, diretora criativa da Disney Brasil. “O brasileiro é um povo otimista por natureza, que não desiste nunca. Isso tem tudo a ver com a Disney. Acreditamos em nossos sonhos e procuramos olhar o lado belo das coisas”.
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