- Author, Vitor Tavares
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
- Twitter, @vitoramtav
Se para boa parte dos brasileiros a palavra “Oiapoque” é o sinônimo imediato do ponto mais ao norte do país, para um grupo cada vez maior ela também significa a entrada para uma vida no exterior.
É ali, naquela cidade do Amapá, que o Brasil encontra a Guiana Francesa, um departamento ultramarino da França na América do Sul — uma espécie de Estado que não faz parte da França Metropolitana (que fica na Europa), mas que é parte do país.
Segundo estimativas recém-divulgadas pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil, o Itamaraty, 91,5 mil brasileiros viviam na Guiana Francesa em 2022. É a 10ª maior população brasileira em um território estrangeiro, à frente pela primeira vez, por exemplo, da comunidade brasileira na Argentina (90,3 mil) e da própria França europeia (90 mil).
É um número que vem aumentando ano após ano — eram 82,5 mil em 2021, e 72,3 mil em 2020, segundo os dados do Itamaraty. O órgão não faz distinção de status migratório (legal ou ilegal) nas estatísticas sobre comunidade brasileira no exterior.
“Você ouve português em todo lugar. De leste a oeste, há brasileiros aqui”, diz a maranhense Vaneza Ferreira, que mora na Guiana Francesa há 24 anos e trabalha numa organização humanitária com atuação na fronteira e com povos tradicionais.
Considerando a população total da Guiana Francesa de 301 mil habitantes (equivalente à de Palmas, capital do Tocantins), segundo estimativas do Insee, o órgão de estatísticas demográficas da França, o número do Itamaraty equivaleria a quase um terço (30,3%) dos moradores daquele território.
Uma fonte do Itamaraty ressaltou à BBC News Brasil que essa proporção pode ser um pouco menor na realidade, já que a população total da Guiana Francesa deve ser maior que os 301 mil, caso fossem consideradas as pessoas que vivem ali sem documentação.
Segundo a estimativa do Brasil, dos 91,5 mil brasileiros no território franco-guianense, 89 mil estão em Caiena, a capital, a cerca de 200 km da fronteira com o Amapá, e 2,5 mil na região da cidade de Saint Georges de L’Oyapock, do outro lado da fronteira com o Oiapoque.
Do lado das estatísticas oficiais francesas, dados de 2020 do Insee apontavam que cerca 30% dos moradores registrados na Guiana Francesa são imigrantes da América, Ásia e Oceania, sem especificar os países .
Em dados de 2015, em que detalhava os grupos migratórios, o Insee já calculava oficialmente que os brasileiros eram 9,2% da população da Guiana Francesa. Além dos brasileiros, os imigrantes mais numerosos no território são os haitianos e os surinameses.
O que torna a Guiana Francesa atrativa?
O que torna a Guiana Francesa especialmente atrativa a brasileiros em primeiro lugar, segundo especialistas e moradores do país, é a moeda. Como é parte da França, os trabalhos são pagos em euro. Na cotação no início de outubro, 1 euro equivale a aproximadamente 5,30 reais.
“Eles conseguem ganhar valores que nunca ganhariam no Brasil, em funções como pedreiros, por exemplo”, diz a socióloga Rosiane Martins, professora da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) que desenvolveu pesquisas no Pará e Amapá sobre o movimento migratório à Guiana Francesa.
Em termos de comparação, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da Guiana Francesa em 2021 era previsto em 0,794 , o equivalente a países como Bulgária. O Brasil tem IDH de 0,754, e o da França é 0,903 (quanto mais perto do 1, mais desenvolvido é o lugar).
Além da busca pelo salário em euro, que possa patrocinar uma vida melhor da família por meio de envio de recursos ao Brasil, a migração à Guiana Francesa também tem outras especificidades, segundo a pesquisadora e especialistas no assunto.
A maioria dos brasileiros que vai para o território é natural de Estados próximos geograficamente, principalmente Amapá, Pará e Maranhão. São, na maior parte, homens, que buscam empregos na área da construção civil e no garimpo.
Como um ato de esforço do governo francês de coibir a entrada ilegal de brasileiros no território, é necessário um visto de turismo, que é solicitado nos consulados da França no Brasil, para acessar temporariamente a Guiana Francesa. Com dinheiro para uma passagem aérea, é mais fácil ir como turista à França, na Europa, onde o brasileiro não precisa de visto.
Desde 2020, também foi suspensa a emissão de vistos para Guiana Francesa em Macapá, a capital mais perto da fronteira. Os interessados precisam ir até Brasília para realizar o procedimento.
Segundo um comunicado emitido pelo governo do Amapá em julho, a gestão estadual tenta fazer acordos com a França para a retomada da retirada dos vistos e também da emissão da carta transfronteiriça para moradores de Oiapoque. Esse documento permite que os moradores da fronteira passem até 72h apenas na cidade de Saint Georges, do outro lado do rio.
Na ponte binacional entre as duas cidades, inaugurada em 2017 após muito atraso, brasileiros precisam mostrar visto e, caso estejam de carro, pagar um seguro de automóvel de até 175 euros. A travessia por barco, muitas vezes sem fiscalização, segue sendo a mais utilizada.
Uma fonte do Itamaraty afirma que essas medidas tomadas pela França acontecem porque, “se não, a Guiana Francesa iria virar brasileira, dada a dimensão da população do Brasil e a pressão demográfica que isso iria causar”.
Dois tipos de imigração
Segundo pesquisadores, o primeiro movimento da imigração brasileira ocorreu a partir do fim dos anos 1960 e anos 1970, quando foi construída a 50 km de Caiena a Base Espacial de Korou.
A mão de obra brasileira foi até incentivada, diante do vazio populacional que existia naquele território. Em 1974, eram estimados 1,5 mil brasileiros ali, em geral qualificados para construção e atuação.
Esse primeiro grupo é considerado por pesquisadores como parte de uma “migração familiar”, que ocorreu com a ida de famílias inteiras ou ainda com as políticas de reunificação familiar a partir de 1976. Essas pessoas formaram uma comunidade estável e permanente, inserida na sociedade local.
Mas, após o término das obras, os brasileiros seguiram sendo mão de obra primordial na construção da infraestrutura francesa.
Desde aquela época até hoje, há relatos de brasileiros reunidos “na praça das Palmeiras (centro de Caiena) onde aguardavam os empreiteiros chegarem com as pickups anunciando obras”.
As notícias sobre as oportunidades correram nos Estados vizinhos, atraindo mais e mais imigrantes, grande parte com baixa escolaridade e sem os documentos legais. Também foram chegando mais moradores à cidade de Oiapoque, atraídos pelas oportunidades na vida fronteiriça, como a possibilidade de ganhar em euro e gastar em real. Em 2000, eram 12 mil moradores na cidade; em 2010, já eram mais de 20 mil; em 2022, a população chegou a 27 mil, segundo o IBGE.
Natural da cidade de Santa Helena, no Maranhão, Vaneza Ferreira tinha 12 anos, em 1999, quando atravessou com a mãe, que se casou com um franco-guianense, para o lado francês da fronteira.
Ela faz parte da geração que se estabeleceu permanentemente no território e se considera parte da “diáspora brasileira, que já tem pessoas de até terceira e quarta geração”.
“Eu me reivindico franco-guianense-brasileira, porque a Guiana adotou agente”, diz.
Do outro lado dessa moeda, há milhares de brasileiros que não criam vínculos com o território e vão ali muitas vezes para atuar em atividades ilegais, como o garimpo em minas de ouro, explica a pesquisadora Rosiane Martins.
“Se pensar nos migrantes clandestinos, é incontável. A cada legalizado que eu encontrava morando lá, havia até sete morando em sublocações, de forma irregular”. diz Martins.
São, em geral, homens que cruzam o rio no Oiapoque para ganhar algum dinheiro e voltar ao Brasil. Muitas vezes são detidos e levados pela polícia francesa de volta ao Amapá. As mulheres conseguem vagas na faxina, cozinha e muitas vezes são exploradas numa rede de prostituição.
Segundo um relatório de 2016 da então Agência Francesa de Coesão Social e Igualdade de Oportunidades, o crescimento da população brasileira na Guiana Francesa está principalmente relacionado ao ressurgimento da atividade de mineração de ouro desde meados da década de 1990.
De acordo com Martins, as redes que cooptam esses migrantes atuam principalmente no Maranhão, Amapá e Pará.
Muitos desses imigrantes vivem no vai e vem na fronteira, mas outros acabam tentando a vida em Caiena, onde vivem em situação extremamente vulnerável, invadindo terrenos e criando ocupações e favelas.
“Eles vão ficando porque é perto, fácil de voltar ao Brasil, tem o fuso horário igual, clima igual. E acabam convivendo bem numa sociedade multiétnica”, explica Martins. “Alguns vão querendo voltar, mas não conseguem fugir mais dessa realidade”.
“A gente que está dentro da sociedade, temos nossa segurança, como se proteger. Mas essas pessoas são exploradas, estão em risco constante. As pessoas precisam tomar cuidado com a ilusão desse trabalho ilegal. A gente recebe todos os dias notícias dramáticas vindas da floresta”, diz Vaneza Ferreira, que vê de perto a realidade no seu trabalho.
Uma fonte do Itamaraty com relações na Guiana Francesa disse que “vira e mexe recebe no celular foto de cadáver”.
“Também presenciei a situação de humilhação de centenas de brasileiros que são deportados toda semana para Belém e Macapá”, disse a fonte.
O caminho para se legalizar é considerado cada vez mais difícil. Mas isso não quer dizer que o fluxo diminui. “São pessoas que consomem, trabalham por um valor baixo, fazem parte da economia. Então, em momentos de necessidade, a fiscalização diminui, não colocam tantas barreiras”, diz Rosiane Martins.
Açaí e ‘frantuguês’
A presença massiva de brasileiros na Guiana Francesa pode ser percebida no dia a dia no território, segundo moradores.
Há restaurantes do tipo self service com churrasco espalhados por Caiena, festas onde se ouve música pop brasileira e igrejas evangélicas nos bairros.
“Quando cheguei aqui, o açaí por exemplo só era consumido por brasileiros. Hoje é universal e todo mundo aqui come, como o paraense, acompanhado de um peixe frito, uma carne”, diz Pierre Cupidon, 35 anos, que trabalha como DJ e na construção civil, instalando redes de água e internet.
Como o pai dele era da Guiana Francesa, ele se mudou com a mãe de Belém para a região de Caiena em 2002.
“Há festas que eu só toco música brasileira. Claro, há influências de outros países também, mas o Brasil é muito presente”.
Outro exemplo é no vocabulário, que muitas vezes mistura o francês com o português e até com o creole (a língua local). “Tem gente que chama ‘amiga’ aqui de ‘copina’. É como se fosse uma aportuguesada de ‘copine’, que é ‘amiga’ em francês”, exemplifica Vaneza Ferreira.
Diante de um território diverso em origens, os brasileiros sentem que há uma intensa troca cultural.
“É engraçado porque a gente ainda é bem pequenininho comparado a outras cidades do Brasil, mas a diversidade cultural é enorme, enriquece o território”, diz Ferreira.
“O povo em si aqui se sente mais parte da América Latina do que da França”, opina Cupidon.
As Guianas
A chamada região das Guianas (que inclui Guiana Francesa, Suriname, Guiana e ainda o Estado brasileiro do Amapá e a região venezuelana de Guayana) foi alvo de disputa entre os colonizadores europeus desde o século 16, com a presença de espanhóis, portugueses, ingleses, holandeses e franceses.
A Guiana (antes chamada de Guiana Inglesa) conseguiu independência do Reino Unido e se tornou um país em 1966. O Suriname (antes Guiana Holandesa) passou pelo mesmo processo em 1975, separando-se do Reino dos Países Baixos. A ocasionalmente chamada “Guiana Portuguesa” virou Estado do Amapá no Brasil, e a parte da Guiana Espanhola somou-se à Venezuela.
A Guiana Francesa, por sua vez, nunca se separou da França. Oficialmente, o território faz parte da União Europeia, sua moeda oficial é o euro e sua população tem cidadania francesa.
Economicamente, a Guiana Francesa segue dependente da França.
Como boa parte da América do Sul, o território foi colonizado como uma sociedade escravista, onde plantadores importavam escravizados da África.
Após o fim da escravidão, a França estabeleceu ali uma colônia penal, com uma rede de campos e penitenciárias onde prisioneiros do país eram enviados a trabalhos forçados.
A primeira onda de imigração à região aconteceu com os chineses ainda no século 19, para trabalhar nas plantações de açúcar, e de pessoas vindas da ilha caribenha de Santa Lúcia.
A partir dos anos 1960, porém, três grupos se sobressaíram nesse movimento migratório: os haitianos (também colonizados por franceses), os vizinhos surinameses e os brasileiros. Em 2016, essas três nacionalidades representavam 90% de todos os imigrantes do país, segundo o órgão de estatísticas da França.
Fonte: BBC
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