O roubo espetacular de uma caixa-forte em Antuérpia, na Bélgica, em 2003 só teve seus autores identificados por ação do acaso – na forma de uma reclamação feita por telefone sobre lixo jogado em um terreno.
A caixa-forte, localizada em um prédio sob forte esquema de segurança na região central da cidade, amanheceu aberta e saqueada na manhã de 17 de fevereiro, uma segunda-feira.
Os ladrões levaram joias e diamantes no valor de US$ 100 milhões sem deixar vestígios. A polícia tateou no escuro, sem ter por onde começar suas investigações.
Alguns dias depois, entretanto, apareceu, finalmente, uma pista, graças a um telefonema.
Essa incrível jornada é relatada em um episódio da terceira temporada do podcast Que História!, da BBC News Brasil. Ele pode pode ser ouvido nas principais plataformas de podcast, como Spotify e Apple Podcasts, e no canal da BBC News Brasil no YouTube.
O ‘roubo do século’
Antuérpia, no norte da Bélgica, é conhecida mundialmente como “a capital dos diamantes”. Por ali, passaram mais de 80% dos diamantes brutos encontrados no mundo, para serem comercializados ou lapidados e eventualmente colocados em joias. O comércio de diamantes movimenta ali mais de US$ 50 bilhões anualmente.
Esse comércio está concentrado em apenas um quarteirão no centro da cidade, o “Distrito dos Diamantes”. Quem chega ali, logo nota o forte esquema de segurança – e as mais de 60 câmeras que monitoram as três ruas desse distrito.
O edifício mais importante dessa região é um monótono bloco de escritórios chamado Diamond Center, o Centro de Diamantes. Seu porão abriga uma caixa-forte, com fileiras de cofres individuais em uma sala de alta segurança.
“A porta da caixa-forte tem 30 centímetros de espessura. Você só abre com uma chave e um código de segurança”, contou à BBC o investigador belga Patrick Peys, que, na época, integrava uma unidade especial da polícia especializada em roubo de diamantes.
“E ela tem um sistema magnético que toca um alarme quando ela é aberta. Dentro da sala há sensores, que dão alertas quando detectam calor, movimento, som e luz e até um alarme sísmico. Qualquer pessoa que usasse uma furadeira dispararia um alarme imediatamente.”
Quando foi chamado após a descoberta do roubo, Peys encontrou abertos mais de cem dos 189 cofres individuais da caixa-forte.
“Havia diamantes, moedas de ouro, bolsas e joias espalhados pelo chão. Depois tivemos de verificar as solas dos sapatos, para ter certeza de que não havia ficado um diamante preso ali. E também notamos que havia alguns diamantes verdes extremamente pequenos no chão do cofre-forte.”
Os ladrões conseguiram desativar todos os alarmes de segurança e deixaram para trás os estragos e algumas ferramentas – sem impressões digitais. E levaram, além do butim, as fitas de vídeo gravadas pelas 24 câmeras de segurança do prédio e de dentro da caixa-forte.
Quando o caso chegou aos noticiários, foi chamado de “roubo do século”. A mídia local destacou a ousadia e a astúcia dos ladrões, que levaram estimados US$ 100 milhões em joias e diamantes.
A polícia não tinha nenhuma pista. Alguns dias depois, entretanto, a polícia recebeu um telefonema de um dono de mercearia aposentado chamado August Van Camp. Ela já tinha ligado algumas vezes para reclamar do lixo que jogavam em um terreno que ele tinha comprado, ao lado de uma autoestrada.
Van Camp tinha duas doninhas, e passeava com elas todo dia na floresta desse terreno. Muitos viajantes que passavam de carro na autoestrada jogavam lixo ali.
Mas naquele dia de fevereiro, Van Camp notou que o lixo era diferente e suspeitou que ele tivesse ligação com o “roubo do século”.
A polícia imediatamente recolheu esse lixo. “Eram documentos, papéis rasgados, títulos, pedaços de dinheiro”, contou Peys, “e envelopes em que estava impresso, Centro de Diamantes, Antuérpia, contendo pequenos diamantes verdes”.
Passaram horas examinando o conteúdo e encontraram um recibo da compra de um sistema de videovigilância. Esse recibo estava no nome de uma pessoa, Leonardo Notarbartolo, um comerciante de diamantes italiano que tinha um escritório no Centro de Diamantes e um cofre individual na caixa-forte.
E que, conforme foi revelado pela polícia italiana, tinha uma ficha criminal.
Notabartolo foi detido, mas em momento algum cooperou com a polícia.
“Era um cavalheiro distinto, muito educado. Mas quando lhe disse que era suspeito do crime, ele não quis mais responder a nenhuma pergunta, resolveu ficar calado”, disse Peys.
“E nesses casos, por lei, não há nada que possamos fazer. A partir daí, por mais que tentássemos, não havia nada que pudesse convencê-lo a cooperar… Até investigadores italianos de uma unidade especial vieram interrogá-lo e ele nunca falou uma palavra.”
Graças ao lixo jogado no terreno do homem que passeava com suas doninhas, entretanto, a polícia conseguiu encontrar, entre restos de sanduíches de salame, de queijos e garrafas de vinho, o recibo de uma mercearia italiana que ficava no Distrito dos Diamantes.
Conferindo as gravações de câmeras de segurança dessa mercearia, identificaram o homem que tinha comprado os alimentos. Outro italiano com ficha criminal, chamado Ferdinando Finotto.
Com as evidências encontradas nos sacos de lixo, nos objetos deixados no cofre-forte e nas filmagens da câmera da mercearia, Peys e seus colegas começaram a entender como e quem realizou o furto.
Os autores do crime, cinco ao todo, faziam parte de uma gangue chamada “Escola de Turim”, em que cada membro tinha uma especialidade – um conhecimento especial em determinada área – e era chamado por um codinome.
Os codinomes parecem ter saído de histórias em quadrinhos: o Gênio, o Monstro, Ligeirinho e o Rei das Chaves.
O Gênio era Elio D’Onorio, o especialista em eletrônica e em alarmes. O Monstro era Ferdinando Finotto, o homem capturado nas imagens da mercearia. Seu grande talento era o de abrir fechaduras. Ele tinha uma queda por sanduíches de salame e os testes mostraram traços de seu DNA em comidas encontradas no lixo.
Ligeirinho era Pietro Tavano, amigo de infância de Leonardo Notarbartolo. O papel dele na ação da gangue não ficou claro. Mas foi ele que, em um provável momento de pânico, jogou os sacos de lixo no terreno ao lado da autoestrada, quando estava a caminho da França. Foi essa ação que acabou levando a polícia a descobrir os autores do crime. Tavano, assim como os outros ladrões detidos, foram descobertos através de rastreamento de chips de celular.
O único membro da gangue que nunca foi identificado e preso é o Rei das Chaves, que era, como o nome sugere, especialista em fazer e falsificar chaves. Ele teria recriado a chave de 30 centímetros necessária para abrir a porta do cofre-forte. Ele foi o único da gangue que nunca foi identificado ou pego.
Leonardo Notarbartolo teria sido o orquestrador do roubo, e foi o único que nãpo tinha codinome.
“Notarbartolo nunca comprou ou vendeu diamantes nos três anos em que esteve em Antuérpia. Ele estava lá simplesmente para fazer o que chamamos de reconhecimento”, contou Peys.
“Nos vídeos das câmeras de segurança, há várias gravações com Notarbartolo dentro da caixa-forte. Ele era um dos clientes e por isso, nunca chamou a atenção dos seguranças.”
“Nos dias antes do furto, ele aparece com uma bolsa preta debaixo do braço, e apontando uma lateral da bolsa discretamente para todos os equipamentos de segurança dentro do cofre. Essa bolsa nós achamos no apartamento dele. Ela continha uma câmera de vídeo e um buraco. Ou seja, essa câmera estava gravando tudo.”
As ‘soluções engenhosas’
Entre as descobertas feitas pela polícia sobre como os ladrões burlaram o sistema de segurança estão várias soluções engenhosas.
- Eles tinham escondido uma pequena câmera em cima da entrada da caixa-forte, que gravava os guardas apertando o código de segurança para abrir a porta. Essa câmera transmitia as gravações para um receptor escondido dentro de um extintor de incêndio em um almoxarifado do centro. Assim, eles ficaram a par da combinação que teriam de usar para abrir a porta. O Rei das Chaves criou uma cópia da chave de 30 cm que abria a caixa-forte observando os vídeos capturados pelo grupo.
- A porta da caixa-forte tinha uma fechadura magnética, que consistia de duas travas presas a cada um dos lados. Essas travas geravam um campo magnético, e quando a porta abria, esse campo era interrompido, soltando o alarme. Mas o Gênio usou uma placa de alumínio que tinha uma fita adesiva de dois lados, de uso industrial. Ele colou essa placa nas travas e as desaparafusou. Soltas, elas estavam presas apenas na placa, lado a lado, gerando o campo magnético. Essa placa foi colada na parede.
- Quando esteve no cofre-forte no dia anterior ao furto, Notarbartolo, hábil, e discretamente, borrifou spray de cabelo nos sensores térmicos de movimento, pois o óleo do produto isolava o sensor de flutuações de temperatura na sala. Esse sensor dependia de movimento e calor para disparar o alarme. A solução era temporária. Eles teriam alguns poucos minutos para desativar os sensores eletronicamente.
- A polícia acredita que a gangue construiu uma réplica do interior da caixa-forte para praticar a ação. Assim que a porta foi aberta, o Monstro entrou para o meio da sala em plena escuridão, contando os passos, e puxou um painel no teto, onde localizou os fios de entrada e saída do sistema de segurança. Com uma gambiarra, ele fez com que qualquer eventual impulso elétrico de um dos sensores fosse desviado e não disparasse o alarme.
- Os cofres individuais foram abertos com uma espécie de macaco manual inverso, que era introduzido na fechadura. Girando a manivela, o macaco aos poucos puxava a fechadura para fora. O conteúdo dos cofre era jogado em uma bolsa de lona.
Algumas etapas do roubo continuam sendo um mistério. Por exemplo: como os ladrões entraram na fortaleza do Diamond Center.
Crime e castigo
A polícia conseguiu reunir provas suficientes para indiciar os quatro nomes conhecidos. E em maio de 2005, o caso foi a julgamento em um tribunal belga.
Ferdinando Finotto, Elio D’Onore e Pietro Tavano foram condenados a cinco anos de prisão. Leonardo Notarbartolo, o cabeça da operação, a 10 anos de prisão.
As joias e os diamantes nunca foram encontrados.
Todos os ladrões do “roubo do século”, pelo menos os condenados, cumpriram pena. Leonardo Notarbartolo, foi posto em liberdade condicional em 2009, por bom comportamento, após ter cumprido 4 anos da pena.
Mas ele quebrou um dos termos da libertação quando entrou em um avião e voou para a Califórnia para discutir um contrato de filme sobre o roubo com um grande produtor de Hollywood.
Ele foi preso em um aeroporto de Paris e cumpriu o resto da pena.
Fonte: BBC
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