- Author, André Biernath
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
- Twitter, @andre_biernath
Um remédio feito com base no conceito da ciência aberta, livre de patentes, sem fins lucrativos e pronto para virar genérico se tornou a primeira opção para tratar crianças com malária no Brasil.
O fármaco, que começou a ser distribuído pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no mês de junho em toda a região amazônica, é resultado de mais de duas décadas de pesquisas e muitos debates, que foram liderados pela ONG Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla em inglês) e pelo Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fundação Oswaldo Cruz (Farmanguinhos-FioCruz).
Além da distribuição gratuita no Brasil, os responsáveis pela inovação se comprometeram a compartilhar a “receita” do fármaco com qualquer entidade que tenha interesse em produzi-lo para outras partes do mundo — uma empresa da Índia, inclusive, já passou por esse processo de transferência de tecnologia e fabrica o remédio para países asiáticos onde a malária também é um problema.
Vale lembrar que essa doença é causada pelo protozoário Plasmodium, transmitido pela picada de mosquitos Anopheles, popularmente conhecido no Brasil como carapanã, muriçoca ou mosquito-prego.
Os principais sintomas da infecção vão de febre alta, calafrios, tremores, sudorese e dor de cabeça a convulsões, alteração da consciência e hemorragias. As crianças são um dos grupos mais atingidos pela moléstia.
Entre as vantagens da nova terapia, especialistas ouvidos pela BBC News Brasil citam o tempo reduzido de tratamento, as doses padronizadas, feitas especificamente para o público infantil, e o menor risco de desenvolvimento de uma resistência do agente causador da malária ao esquema terapêutico (entenda mais a seguir).
Uma grande preocupação na virada do século
O médico André Siqueira, do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI-Fiocruz), explica que, em meados da década de 1950, a cloroquina era o principal tratamento disponível contra a malária.
“Ela era uma medicação muito potente e eficiente, que permanecia na corrente sanguínea por três a quatro semanas e protegia as pessoas de uma nova infecção com esse protozoário”, caracteriza ele.
Mas já nos anos 1960 os especialistas começaram a notar em várias partes do mundo que algumas espécies de Plasmodium desenvolveram uma resistência à medicação. Com isso, esse produto deixou de ser usado como primeira linha terapêutica, já que sua efetividade baixou.
Nesse meio tempo, outros fármacos (como os quininos) entraram em cena — mas os patógenos por trás da malária logo também encontraram maneiras de “driblar” a ação desses medicamentos.
“Na década de 1990, houve uma retomada do uso dos derivados de artemisinina, uma classe farmacêutica que havia sido descoberta em meados dos anos 1960 e 70”, lembra Siqueira.
Aliás, a descoberta da artemisinina rendeu o Prêmio Nobel de Medicina de 2015 para a farmacologista chinesa Tu Youyou.
“A artemisinina é muito potente, mas ela tem uma meia-vida muito curta, o que exige ampliar o tratamento para mais dias”, pontua o infectologista.
“E isso dificulta a adesão ao tratamento, pois a maioria das áreas atingidas pela malária têm um baixo nível educacional, problemas socioeconômicos e sistemas de saúde frágeis”, complementa ele.
Todo esse cenário fez com que a Organização Mundial da Saúde (OMS) soasse o alarme no começo dos anos 2000: havia uma necessidade urgente de desenvolver novas soluções para lidar com a malária e a crescente resistência dos protozoários aos tratamentos disponíveis.
Foi nesse contexto que o projeto para desenvolver uma nova medicação teve início.
“Partindo da orientação da OMS, a ideia era usar dois fármacos diferentes, cada um com um mecanismo de ação sobre o parasita, para evitar o surgimento de cepas resistentes”, conta o farmacêutico Jorge Mendonça, diretor do Farmanguinhos.
“Ao mesmo tempo, pensamos em fazer um estudo para diminuir a concentração de cada um desses fármacos, para reduzir possíveis eventos adversos, como vômitos”, complementa ele.
Com base nesses trabalhos, os pesquisadores chegaram à fórmula do artesunato mefloquina, também conhecido pela sigla ASMQ, o tratamento que chegou há pouco às crianças dos Estados amazônicos.
O artesunato deriva da artemisinina que, por sua vez, é uma substância encontrada na planta Artemisia annua, que cresce no Sudeste Asiático e é tradicionalmente utilizada na medicina de China e Índia.
Já a mefloquina é uma versão sintética dos quininos, um elemento da planta quina ou cinchona, típica da América do Sul.
Ou seja: o ASMQ traz princípios ativos que já eram conhecidos e utilizados pelos médicos. No entanto, ele combina as moléculas de maneira a garantir a recuperação do paciente com o menor número de doses possível para facilitar o tratamento e evitar a resistência do protozoário no futuro.
O novo remédio tem uma versão para adultos (que traz 100 miligramas do artesunato e 200 mg da mefloquina) e outra criada especificamente para o público infantil (artesunato 25 mg e mefloquina 50 mg).
Os testes clínicos mostraram que as doses são seguras e eficazes, além de estarem adaptadas às condições tropicais (não perdem o princípio ativo por causa do calor, por exemplo). A versão pediátrica está liberada para uso em crianças acima dos 6 meses de vida.
“O tratamento consiste em um comprimido diário, durante três dias, sem necessidade de ajustar a dose segundo o peso do paciente”, diz o médico Sergio Sosa-Estani, diretor da DNDi na América Latina.
Para crianças muito pequenas, que ainda não conseguem deglutir adequadamente, há a possibilidade de amassar o comprimido e diluí-lo com um pouco de água.
“Os pacientes já se sentem melhor no primeiro dia de tratamento”, destaca Mendonça. Na opinião do especialista, o ASMQ representa “o maior avanço no tratamento da malária dos últimos 15 anos”.
Segundo os pesquisadores, as duas moléculas que compõem o fármaco atuam em diferentes fases da replicação do protozoário dentro das células humanas. Com isso, a doença deixa de progredir e, por consequência, a pessoa sente um alívio nos sintomas.
Ainda de acordo com os responsáveis pela inovação, todos esses atributos são vitais no contexto em que a maioria dos casos de malária são detectados.
Em primeiro lugar, um tratamento curto, de apenas três dias, garante que o paciente complete o esquema terapêutico preconizado — algo essencial para eliminar os parasitas e evitar o desenvolvimento de resistência.
Segundo, a padronização das doses também facilita a vida dos médicos e cria protocolos mais fáceis de seguir.
E, terceiro, ele supre uma demanda urgente e não atendida há décadas — como você entende a seguir.
Mais negligenciados entre os já negligenciados
Dados compilados pelo Ministério da Saúde mostram que cerca de 130 mil casos e 62 mortes por malária foram registrados no país em 2022 — e 99% das infecções se concentram na região amazônica.
Entre 2013 e 2022, mais de 1,5 milhão de brasileiros tiveram a doença. Desses, 29% (ou quase um terço) tinham até 12 anos.
E, junto com o desmatamento, a mineração ilegal e a desnutrição, a malária também foi um dos fatores que motivou essa decisão. A doença segue até hoje como uma das grandes causas de hospitalizações e óbitos entre membros desse povo indígena.
Um levantamento realizado em 2019 aponta que, de 360 testes clínicos com novos tratamentos contra doenças negligenciadas, apenas 17% incluem pacientes com menos de 18 anos.
A DNDi ainda destaca que, dos 47 remédios indicados pela OMS no tratamento dessas enfermidades “esquecidas”, somente sete possuem formulações elaboradas para os mais jovens.
Dentro desse contexto, o ASMQ na versão pediátrica começou a ser distribuído para diminuir essa disparidade e garantir uma opção para os casos mais graves de malária, causados pelo Plasmodium falciparum.
Essa espécie específica de Plasmodium é responsável por cerca de 25% dos casos da enfermidade na América Latina, segundo a FioCruz. A DNDi lembra que o falciparum é o principal causador de casos severos de malária no Brasil.
Mas a chegada do novo remédio até a ponta, nos serviços de saúde, foi precedida por uma grande discussão entre os especialistas da área.
Mendonça diz que o processo de desenvolvimento do fármaco e a aprovação dele pelas agências regulatórias (como é o caso da Anvisa no Brasil) foi concluído em meados de 2008. Em 2009, o remédio foi incorporado ao Programa Nacional de Prevenção e Controle da Malária.
“Mas à época existia um certo receio dos infectologistas de que a introdução ampla desse remédio levaria ao surgimento de novas cepas resistentes do parasita”, lembra o diretor do Farmanguinhos.
Essa dúvida gerou uma certa cautela na adoção do novo esquema terapêutico — e exigiu a realização de novos estudos.
“Além disso, a experiência de outros países, especialmente no Sudeste Asiático, mostraram que a combinação de artesunato mefloquina até agora não esteve associada à resistência e o tratamento continua a ser efetivo por um tempo prolongado”, acrescenta Siqueira.
Com essas informações em mãos, a partir de 2019, criou-se um consenso entre especialistas e tomadores de decisão de que o novo medicamento poderia ser amplamente adotado no Brasil como a primeira opção de tratamento.
“Mas logo depois, em 2020, veio a pandemia de covid-19 e não conseguimos iniciar a distribuição ampla do ASMQ para crianças”, justifica Mendonça.
A situação só se normalizou a partir de 2023 — e, como mencionado no início da reportagem, os primeiros lotes da versão pediátrica do remédio passaram a ser distribuídos em junho deste ano.
Segundo a Farmanguinhos, foram enviadas cerca de 360 mil unidades do medicamento para o território Yanomami, que enfrenta a emergência de saúde pública desde o ano passado.
Além disso, outros 259 mil comprimidos — metade de uso adulto, metade na versão pediátrica — serão fornecidos às secretarias estaduais de Saúde dos Estados amazônicos (Acre, Amazonas, Amapá, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins, Mato Grosso e Maranhão).
Ainda segundo o instituto da FioCruz, a criação do medicamento custou 7,8 milhões de euros (R$ 46 milhões na cotação atual), valor que foi financiado em conjunto por União Europeia, Reino Unido, Espanha, França e Holanda.
Por fim, Sosa-Estani acredita que o sistema colaborativo utilizado para criar essa medicação pode servir de inspiração na busca por soluções contra outras doenças negligenciadas.
“Esse modelo bem-sucedido de desenvolvimento farmacêutico colaborativo sem fins lucrativos nos ensinou muitas lições valiosas sobre o desenvolvimento de novos tratamentos para outras doenças que requerem atenção urgente, como é o caso da própria epidemia de dengue“, conclui ele.
Fonte: BBC
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