- Giulia Granchi
- Da BBC News Brasil em São Paulo
Diferentemente da década anterior, quando portadores do HIV eram predominantemente pessoas brancas, os negros são agora o perfil racial mais afetado pelo vírus no Brasil.
Segundo dados do Ministério da Saúde, entre 2010 e 2020 houve aumento de 12,9 pontos percentuais na proporção de casos de Aids entre as pessoas negras.
Em termos de óbitos, o percentual é ainda maior. Em 2020, 61,9% das mortes registradas por HIV/Aids no país foram entre pessoas negras (que é contabilizado entre pretos e pardos). Entre mulheres negras, o número atingiu 62,9%.
Para o diretor de arte Raul Nunnes, homem negro mineiro, receber o diagnóstico de HIV em 2016 foi o início de um processo conturbado de entendimento da doença.
“Precisei passar por um processo de autoaceitação e trabalhar para entender como seria minha vida a partir daquele momento.”
Dois anos depois, Emer Conatus, ator e professor de arte, também se descobriu soropositivo. Apesar de já acompanhar alguns perfis na internet que falavam sobre o tema, as dúvidas em relação a seu próprio caso, considerando aspectos sociais, não deixaram de surgir.
Ambos homens pretos e criados em regiões periféricas — Raul no bairro Cariocas, em Nova Lima, Minas Gerais, e Emer em Perus, bairro da zona noroeste de São Paulo — os dois se conheceram pela internet e perceberam que suas trajetórias tinham marcos em comum, não só pelo mesmo diagnóstico, mas porque como muitas pessoas, não tinham informações suficientes sobre o HIV antes de se verem no papel de portadores do vírus, e a raça, além do contexto social em que viviam, influenciava em muitos aspectos do combate à doença.
As pessoas negras, segundo especialistas entrevistados pela BBC News Brasil, têm mais barreiras para acessar os serviços de saúde em busca de cuidados para prevenção e tratamento.
“Muitas vezes elas não têm acesso às tecnologias de prevenção e terão o diagnóstico mais tardiamente. Também estão entre as pessoas com menor escolaridade, menor renda, estão mais sujeitas à violência, então para elas o diagnóstico de HIV vem acrescentar mais uma dificuldade às suas vidas. E após o diagnóstico, vão continuar a experimentar o estigma e preconceito, dificultando a realização do tratamento. O estigma atrapalha o acesso ao serviço de saúde e acrescenta estigma, então atrapalha todo o processo”, enumera Natália de Souza, psicóloga que atua em projetos de pesquisa relacionados ao HIV.
Para ajudar outros na mesma posição, mas também informar quem ainda considera o HIV e a Aids como tabus, assim como aqueles que pouco conhecem sobre o vírus e a doença, Raul e Emer criaram o podcast ‘Preto Positivo’, disponível na plataforma de streaming Spotify.
“Decidimos fazer o projeto porque percebemos que a maior parte dos criadores de conteúdo sobre HIV são brancos, sendo que a maioria que vive com o vírus no Brasil e no mundo é negra. A intenção é trazer as dúvidas, questões sociais, familiares, de atendimento de saúde… Pelo ponto de vista da negritude”, diz Emer.
Os episódios contam com relatos pessoais, informações técnicas e falas de convidados, entre eles, médico infectologista, psicólogo, parteira, advogado, pesquisadores, apresentador de TV, cantor, poetisa, artistas e ativistas da causa. Além disso, há a voz de um personagem que representa o próprio vírus HIV, narrando, no primeiro episódio, o primeiro encontro com Emer e Raul.
Por que o índice de infecções e mortes é maior entre negras e negros?
A resposta para essa pergunta tem diversas camadas — e algumas delas, complexas — mas todas, na avaliação do infectologista acreano Dyemison Pinheiro, há um pano de fundo em comum: o racismo estrutural (práticas institucionais e históricas enraizadas na sociedade e repetidas constantemente, ainda que por vezes de forma não consciente).
“O acesso à informação e aos serviços de saúde, também é afetado pelo racismo institucional, já que há reprodução desse tipo de violência simbólica dentro dos ambientes, como por exemplo, nos serviços de testagem de HIV e de ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis).”
“Por conta dessas barreiras, a população negra morre mais por complicações relacionadas ao vírus, e às vezes isso acontece por demora no diagnóstico. Quando um paciente é diagnosticado mais cedo, ainda sem alterações importantes, o tratamento é muito mais simples e gera melhora mais rápida”, afirma o infectologista.
Ele acrescenta que aqueles que descobrem a doença tardiamente por vezes já sofrem com outras infecções oportunistas, já que o vírus causa uma queda na imunidade. E, sem o tratamento adequado, a pessoa já pode ter desenvolvido Aids.
Isso porque o HIV infecta seletivamente os linfócitos (leucócitos) do tipo CD4, responsáveis pela resposta imune. Conforme o vírus se múltipla e destrói os ‘CD4’, a imunidade vai ficando cada vez mais comprometida.
“Um dos critérios para definir que a pessoa tem Aids é a contagem de CD4. quando um paciente tem esse número abaixo de 350, já é considerado como alguém que tem a doença. Com tratamento, é possível melhorar o número, mas ainda assim, algumas pessoas apresentam falhas qualitativas importantes nas células de defesa, e por isso, há autores que advogam que, uma vez que o número esteve abaixo de 350, a pessoa sempre terá Aids.”
Há também, aponta o médico, outras questões relacionadas a dificuldades financeiras para acessar o serviço, regularidade de visitas por rotinas mais complicadas, que afetam principalmente negros, que no Brasil, assim como em outras partes do mundo, ocupam posições historicamente desprivilegiadas.
Além disso, de acordo com a psicóloga Natalia de Souza, características pessoais que podem tornar o momento do diagnóstico e o tratamento mais ou menos difíceis.
“O impacto mental pode variar bastante de acordo com o que o paciente já sabe sobre HIV, se conhece alguém que vive com o vírus, etc. Depende muito do seu próprio preconceito também. Para alguém que desconhece como é viver com HIV, por exemplo, ou alguém que tem questões com relação à própria sexualidade, tende a ser mais difícil.”
Na opinião de Pinheiro, produções como o podcast ‘Preto Positivo’ que desmistificam o tema, são essenciais.
“Existe uma falta de conhecimento muito grande para alguns públicos, trazer uma linguagem acessível, fácil, que chegue de fato a todos e todas, especialmente no caso desse podcast, que é focado na população negra, é muito importante.”
“O conteúdo traz leveza e tira um pouco desse estigma, porque quando falamos de ISTs, existe um peso, até um julgamento moral, então ter esse conteúdo facilita o acesso a informação. As pessoas escutam sobre como podem se testar e as formas de prevenção em geral, além de participar de uma discussão que vai além da qualidade de vida — que se assemelha a de pessoas sem a doença — mas que fala sobre descobertas tecnológicas, profilaxia, PrEP injetável, e por aí vai”, afirma o infectologista.
Como é o acesso aos testes e tratamento de HIV/Aids no Brasil?
Os testes que detectam a presença do HIV em cerca de 30 minutos estão disponíveis gratuitamente para toda a população nas UBSs (Unidades Básicas de Saúde), Upas (Unidades de Pronto Atendimento) e CTA (Centros de Testagem e Aconselhamento).
O SUS também oferece medicamentos antirretrovirais (antes chamados de coquetel), além da PrEP (profilaxia pré-exposição) e a PEP (profilaxia pós-exposição), tratamentos indicados em situações e por tempos de uso específicos.
Na avaliação do infectologista Dyemison Pinheiro, em geral, o programa de HIV/Aids brasileiro funciona, mas ainda há margem para se tornar melhor.
“Temos um sistema público que consegue abarcar muita coisa, mas precisamos aprofundar ainda mais as boas políticas. Os usuários de PrEP, por exemplo, que são pouco menos de 40 mil pessoas, são em maioria são homens homossexuais brancos e com Ensino Superior completo. Que mais se infecta e morre não é esse público. É necessário pensar em como chegar nas populações mais vulneráveis”
Em artigo publicado na revista Global Public Health, pesquisadores da fiocruz, destacam que o programa brasileiro contra a doença foi referência, mas regrediu nos últimos anos. Entre as causas, segundo o estudo, está a desarticulação das instituições, tanto agências multilaterais, como a Unaids, quanto do governo brasileiro em relação às demandas das ONGs e pacientes, especialmente em relação às políticas de informação e prevenção.
A realidade de acesso também tende a ser diferente fora das capitais — onde há mais pacientes diagnosticados, mas também um melhor rastreio. “Existe essa falta do acesso, sobretudo em áreas afastadas, onde falta informação e também falta desejo dos que fazem a gestão de políticas públicas de saúde, municipais e estaduais, para tornar as políticas mais sólidas.”
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