- Author, André Biernath
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
- Twitter, @andre_biernath
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Todas as quintas-feiras, a infectologista Gisele Cristina Gosuen organiza um café da tarde para reunir idosos portadores do vírus HIV. Familiares, amigos e até vizinhos também são convidados a participar.
“Nós temos uma equipe de residentes em Medicina que faz o atendimento ali, mas, se eu não passo na sala, mesmo que seja para dar um ‘oi’, eles não ficam felizes”, brinca ela.
Há 15 anos, Gosuen coordena o Ambulatório de HIV e o Envelhecer da Escola Paulista de Medicina/Universidade de São Paulo (EPM-Unifesp).
No serviço, ela acompanha e dá suporte a pacientes que convivem com o vírus causador da aids há décadas — e recebe cada vez mais indivíduos que foram infectados após a sexta década de vida.
Esse trabalho, aliás, reflete um fenômeno que fica cada vez mais aparente no Brasil: nos últimos dez anos, o número de indivíduos com 60 anos ou mais que testaram positivo para o HIV subiu mais de quatro vezes.
“E as causas desse crescimento estão relacionadas a muitos fatores”, aponta Gosuen, que também coordena o Comitê de Comorbidades da Sociedade Brasileira de Infectologia.
O que dizem os números
Todos os anos, o Ministério da Saúde publica o Boletim Epidemiológico HIV/Aids, que compila todas as estatísticas sobre essa epidemia no país.
O documento é fundamental para guiar as políticas públicas do setor e saber em quais áreas ou problemas o governo deve concentrar os esforços.
A última edição, divulgada em dezembro de 2022, reforça a tendência de subida nos casos de HIV entre idosos — apesar da queda geral nos diagnósticos em 2020 e 2021, por causa da pandemia de covid-19.
Para se ter ideia, 360 brasileiros com mais de 60 anos testaram positivo para o HIV em 2011. Essa taxa subiu ano após ano e chegou a 1.738 em 2019.
Mesmo com toda a crise pandêmica dos últimos anos, foram 1.517 diagnósticos de HIV entre os brasileiros mais velhos em 2021. Isso representa um salto de quatro vezes em uma década, como você confere em detalhes no gráfico a seguir.
A participação relativa dos idosos na porcentagem total de novos casos também cresceu. Em 2011, 2,6% de todos os diagnósticos ocorreram no grupo com mais de 60 anos. Atualmente, eles representam 3,7% dos testes positivos para esse vírus.
A infectologista Marília Bordignon, do Serviço de Extensão ao Atendimento de Pacientes HIV/Aids do Hospital das Clínicas de São Paulo, chama a atenção para outro indício que mostra o impacto desse vírus na população mais velha: ao longo da última década, a taxa de casos por 100 mil habitantes caiu menos nessa faixa etária.
“Entre pessoas com 60 anos ou mais, até tivemos uma redução na taxa de diagnósticos de aids. Mas essa queda é muito menor do que o observado com os demais grupos”, destaca.
E esse fenômeno pode ser observado tanto em homens quanto em mulheres, como mostram os dois gráficos a seguir.
Um fenômeno de múltiplas causas
O médico Marco Túlio Cintra, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, acredita que, “assim como tudo o que envolve os idosos, o aumento da detecção de HIV não tem uma explicação única”.
“O primeiro fator está relacionado ao baixo uso de preservativos nessa faixa etária, pois não há mais a preocupação com a gravidez”, aponta.
As mulheres que já passaram da menopausa, que ocorre por volta da quinta década de vida, deixam de ovular. Com isso, não há mais como elas gerarem um bebê.
Vale ressaltar, claro, que o uso de preservativos não serve apenas como um método contraceptivo, para evitar uma gestação indesejada: eles também são alternativas eficazes para evitar muitas das infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), como o próprio HIV.
O segundo ingrediente da lista é a popularização de remédios contra a disfunção erétil, como o Viagra e o Cialis. Graças a esses fármacos, os homens mais velhos — que costumam apresentar mais problemas para iniciar ou manter uma ereção — encontraram uma saída para prolongar a vida sexual.
“Muitos indivíduos mais velhos também passam pela experiência do divórcio ou da viuvez. Com isso, eles se sentem mais livres para ter outras relações”, acrescenta Gosuen.
Nessa seara, os aplicativos de relacionamento — alguns deles criados especificamente para quem tem mais de 60 anos — facilitaram os contatos e as novas experiências.
Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil também pontuam que várias pessoas dessa faixa etária constituíram famílias heterossexuais quando jovens, mas agora se descobrem homossexuais ou bissexuais — e alguns também se sentem mais à vontade para ter experiências com parceiros do mesmo sexo nessa fase da vida.
Em quarto lugar, Bordignon explica que há uma razão fisiológica que amplia os riscos de infecção em idades mais avançadas. “Temos questões biológicas que levam a uma maior fragilidade da mucosa [da vagina ou do ânus] e a uma redução do sistema de defesa nesses locais”, diz.
A pouca lubrificação e a fragilidade das barreiras do organismo, que se tornam mais comuns com o envelhecimento, portanto, facilitam a entrada do HIV — caso o parceiro tenha o vírus e não sejam usadas as estratégias preventivas, claro.
Um quinto aspecto levantado pelos pesquisadores é o aumento nos esforços de testagem. Ou seja, será que um aumento nos pedidos de exames para flagrar o vírus gerou uma subida nos diagnósticos?
As informações são um pouco difusas nessa seara. Por um lado, há sim um crescimento nos testes de HIV em todo o país, o que contribui para a subida nos boletins epidemiológicos. Por outro, os idosos nem sempre são contemplados nesses esforços de rastreamento e detecção precoce.
“Mesmo quando a pessoa idosa já apresenta sintomas, como um emagrecimento acentuado, os médicos sempre vão suspeitar de câncer, mas nunca do vírus HIV”, lamenta Cintra, que também é professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“Esse assunto ainda é um tabu dentro dos consultórios, como se os mais velhos não tivessem vida sexual e libido. Isso é um mito”, admite o geriatra.
“Com isso, perdemos a oportunidade de dar uma orientação adequada sobre a prevenção ou fazer um diagnóstico precoce”, lamenta.
“A questão é que, há dez anos, era incomum encontrarmos uma pessoa idosa HIV positivo. Hoje, não é mais tão raro assim.”
O cientista social Alexandre Grangeiro, pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), aponta que a questão geracional também deve entrar nessa equação.
“As gerações que antecederam o início da epidemia de aids nos anos 1980, ou seja, que começaram a transar antes disso, nasceram e foram educadas dentro de um processo muito mais liberal do ponto de vista das relações sexuais e com poucos hábitos de cuidados preventivos”, analisa.
“As gerações posteriores, que começaram a vida sexual nos anos 1980 ou depois, vão naturalmente pensar mais nesse autocuidado”, compara ele.
Grangeiro também lembra que, com o envelhecimento, é comum que as pessoas tenham mais contato com os serviços de saúde — o que de certo modo facilita o diagnóstico de doenças.
Por fim, os especialistas listam um oitavo fator que aglutina todos os anteriores: a falta de campanhas de conscientização específicas para esse público.
“A comunicação sempre foi voltada a grupos específicos, como os mais jovens, ou aos eventos, como o carnaval. Com isso, os idosos nem sempre se veem representados nas campanhas de prevenção do HIV”, aponta Cintra.
O primeiro impacto
Gosuen relata que, em linhas gerais, a reação diante de um teste positivo para o HIV pode variar conforme o sexo.
“As mulheres mais velhas costumam ser infectadas pelo marido, que tiveram alguma relação extraconjugal e trouxeram o vírus para casa. Há também aquelas que se separaram ou ficaram viúvas e começaram a sair com uma outra pessoa”, observa ela.
“A reação é de susto e tristeza profunda, pois elas não enxergavam qualquer risco”, complementa.
Já entre os homens, Gosuen relata que testemunha com mais frequência sentimentos de vergonha.
“Isso ocorre principalmente quando o paciente está junto de algum familiar ou precisa compartilhar a notícia com parentes próximos.”
A infectologista destaca que, não raro, o círculo social descarta automaticamente qualquer possibilidade de a pessoa mais velha ter uma vida sexual ativa.
“Alguns familiares questionam: mas como o meu pai está com HIV se ele ficou viúvo há 20 ou 30 anos?”
“Em ambos os sexos, persiste aquele pensamento do ‘comigo isso nunca vai acontecer’.”
A boa notícia é que hoje existem tratamentos bastante eficazes: as chamadas terapias antirretrovirais permitem controlar a carga de vírus, embora ainda não sejam capazes de eliminá-lo de vez do organismo.
Mas o uso desses remédios tem algumas particularidades nessa faixa etária. “É comum que a pessoa idosa tenha comorbidades e doenças crônicas”, detalha Cintra. Com isso, os médicos adaptam o tratamento e escolhem certas drogas que não prejudicam o funcionamento dos rins, do coração ou dos ossos.
Às vezes, também é necessário ajustar as dosagens ou os princípios ativos usados para controlar outras enfermidades, como hipertensão, colesterol alto, diabetes…
“O objetivo disso é não afetar a efetividade da terapia antirretroviral, o que faria o paciente voltar a ter uma carga viral maior”, complementa o geriatra.
A mandala de prevenção do HIV
Foi-se o tempo em que a camisinha era o único foco para evitar o HIV ou outras ISTs. A forma mais moderna de lidar com o assunto é a “mandala da prevenção combinada”.
O método, que tem o aval do próprio Ministério da Saúde, aponta que existem várias estratégias para prevenir a infecção por esse vírus — e pode ser que uma pessoa se adapte melhor a um método ou outro (eventualmente, é necessário fazer uma combinação de vários deles).
Os componentes dessa mandala incluem:
- Usar preservativo masculino, feminino ou gel lubrificante;
- Profilaxia pré-exposição (PrEP);
- Profilaxia pós-exposição (PEP);
- Testagem regular para o HIV e outras ISTs;
- Tratar todas as pessoas vivendo com HIV/aids;
- Redução de danos;
- Prevenir a transmissão vertical (da mãe para o filho durante a gestação ou parto).
Mas e para os idosos? Nos últimos anos, um time de pesquisadores brasileiros criou uma mandala de prevenção específica para os mais velhos — o estudo que fundamentou a iniciativa foi publicado em setembro de 2021 no periódico acadêmico The Lancet Healthy Longevity.
Além de chamar a atenção para os métodos que servem a todas as idades — como a camisinha, a PrEP, a PEP e a disponibilidade de testes — os pesquisadores deram bastante ênfase a dois aspectos que se tornam mais preponderantes a partir da sexta década de vida.
“O acesso aos lubrificantes é fundamental para contrapor aquela fragilidade da mucosa”, cita Bordignon.
“O outro ponto é a síndrome genitourinária da menopausa, que deixa a região genital da mulher mais ressecada e com microfragilidades que facilitam a transmissão”, complementa a infectologista.
Portanto, quando falamos nos mais velhos, o uso de lubrificantes durante as relações sexuais é algo indispensável — não só do ponto de vista do prazer, mas também da prevenção das ISTs.
Além dos cuidados individuais, Grangeiro reforça a necessidade de campanhas mais inclusivas. “Elas precisam ter esse caráter geracional, porque falamos de públicos muito diferentes”, considera.
O especialista também acredita na importância de ajustar certos aspectos dos aplicativos de relacionamento.
“Eles se tornaram uma grande praça pública para o encontro de parceiros. E esses sistemas precisam cumprir a responsabilidade e o papel social que têm por cuidar da saúde das pessoas e trazer informações mais claras sobre as ISTs”, opina.
“Também deveríamos ter políticas mais claras e que ofereçam o melhor método preventivo a cada pessoa de acordo com as necessidades delas”, avalia Grangeiro.
“Ou seja, precisamos dizer com mais clareza que as pessoas que não conseguem ou não querem usar preservativo adequadamente deveriam procurar a PrEP, por exemplo. Isso não é feito da forma mais adequada e deveria incluir todos os públicos, independentemente da faixa etária”, conclui.
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