Crédito, Reuters

Legenda da foto, As inundações de 1941 e 2024 tiveram origens e características diferentes, mostram pesquisas

Até recentemente, a enchente de 1941 que afetou Porto Alegre figurava no topo da lista de traumas relacionados a eventos climáticos em terras gaúchas.

À época, as águas do lago Guaíba chegaram a 4,75 metros, inundaram 15 mil casas e deixaram 70 mil pessoas desabrigadas. Um terço do comércio e da indústria da região ficou fechado por cerca de 40 dias.

Esses e outros números foram superados de longe nas últimas semanas com as tempestades e as inundações que acometeram não apenas a capital, mas quase a totalidade do Rio Grande do Sul.

O evento climático fez o Guaíba chegar a 5,33 m, afetou mais de 2,1 milhões de indivíduos, com 538 mil desalojados e 76 mil cidadãos instalados em abrigos.

No entanto, os acontecimentos de 1941 são frequentemente usados nas redes sociais como argumento para enfraquecer ou desbancar análises e projeções que apontam as mudanças climáticas como um fator decisivo para a crise atual.

Segundo essa linha de raciocínio, catástrofes climáticas acontecem naturalmente de tempos em tempos — e não estão relacionadas à ação humana.

Mas o que dizem as evidências científicas? Quais foram as causas da enchente de 1941? E será que é possível comparar os dois fenômenos?

Como você confere a seguir, especialistas ouvidos pela BBC News Brasil explicam que a frequência e a intensidade de eventos climáticos extremos vem aumentando em várias partes do mundo — inclusive na região Sul do Brasil.

O que separa 1941 de 2024

Um artigo publicado em 2022 por um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) fez uma série de simulações para tentar explicar o que ocorreu em Porto Alegre entre abril e maio de 1941, quando a cidade foi atingida pela então maior catástrofe climática de sua história.

“A enchente de 1941 pode ser considerada um evento composto, porque ela foi causada por dois fatores: a precipitação [chuva] e os ventos”, explica a engenheira ambiental e sanitarista Thais Magalhães Possa, uma das autoras do estudo.

“Ambos tiveram um papel importante no aumento do nível do Guaíba durante as cheias daquele ano”, complementa a especialista, que também é doutoranda no Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS e hidróloga na SAFF Engenharia.

Como citado no início da reportagem, o lago que margeia a capital gaúcha atingiu à época 4,75 metros e inundou mais de 15 mil casas. Mas a forma como o fenômeno se desenrolou foi diferente do que aconteceu agora, em 2024.

“Em 1941, a precipitação se estendeu por um longo período de 24 dias, entre 13 de abril e 6 de maio. O volume de chuva acumulado em Porto Alegre nessas datas foi de 600 milímetros (mm)”, calcula Possa.

“Já em 2024, observamos altos volumes de chuva durante um período curto. Em algumas regiões, tivemos 200 mm de precipitação em apenas três dias”, compara ela.

As enchentes de 83 anos atrás também tiveram a contribuição importante dos ventos, como mencionado por Possa.

“O que se sabe por meio de relatos é que ocorreu um vento de intensidade forte na direção sul, que contribui para um aumento do nível das águas”, diz a hidróloga.

“Para o evento atual, não observamos ventos tão intensos que justifiquem níveis tão grandes do Guaíba”, pontua ela.

“Esse evento climático de agora está muito mais relacionado à vazão dessa grande precipitação num curto espaço de tempo, que encheu a bacia hidrográfica”, acrescenta o engenheiro ambiental Pedro Frediani Jardim, outro autor do artigo.

Mas o que explica tanta chuva no Rio Grande do Sul durante essas últimas semanas?

Meteorologistas ouvidos pela BBC News Brasil destacam uma conjunção de fatores por trás das tempestades.

Primeiro, um “cavado” (uma frente fria) que tomou todo o Estado. Segundo, uma onda de calor no Centro-Oeste e no Sudeste, que bloqueou a dissipação da frente fria vinda do sul.

Terceiro, a seca na Amazônia e um deslocamento dos “rios voadores”, que trazem umidade da maior floresta tropical do mundo para o resto do Brasil. E, quarto, o fenômeno El Niño, que aquece as águas do Oceano Pacífico e traz mais umidade para terras gaúchas.

Mas daí vem a grande questão: os eventos climáticos extremos que afetam tantas cidades gaúchas agora estão relacionados ou não às mudanças climáticas?

Crédito, ANTÔNIO NUNES/ACERVO FOTOGRÁFICO DO MUSEU DE COMUNICAÇÃO SOCIAL HIPÓLITO JOSÉ DA COSTA

Legenda da foto, As inundações de 1941 foram o maior evento climático a afetar a capital gaúcha — até 2024

15% mais chuvas

Jardim, que também é hidrólogo na Hydrodata Engenharia, pondera que ainda é muito cedo para fazer uma ligação direta e afirmar categoricamente que as atuais inundações no Rio Grande do Sul estão relacionadas ao aquecimento global provocado pela ação humana.

“Com a extensão de dados que nós temos hoje, não é possível cravar com 100% de certeza que as cheias das últimas semanas foram causadas pelas mudanças climáticas. Nós podemos estar diante de um período anômalo, que daqui a pouco volta ao normal”, avalia o especialista.

“No entanto, estamos vivenciando eventos climáticos com mais frequência, como as cheias de setembro e novembro de 2023, além da atual. E esses fenômenos estão muito ligados àquilo que as projeções indicavam sobre os efeitos das mudanças climáticas no Estado”, complementa ele.

“Em outras palavras, a gente ainda não pode afirmar que as cheias atuais são decorrência direta das mudanças climáticas. Mas o que vemos agora condiz com aquilo que os modelos climáticos projetam para o Rio Grande do Sul”, explica Possa.

Aliás, os hidrólogos formados na UFRGS lembram que, das quatro maiores cheias já registradas em Porto Alegre, três ocorreram nos últimos nove meses. A mais forte delas é a atual. Em segundo lugar, vem a de 1941. Na sequência, aparecem as inundações de setembro e novembro do ano passado.

Uma ferramenta usada pelos cientistas para avaliar se eventos extremos estão relacionados ao aquecimento global (ou não) são os chamados estudos de atribuição rápida.

O objetivo aqui é comparar dados, imagens de satélites e outros indicadores para entender se um fenômeno (chuvas intensas, secas, etc.) foi influenciado por uma variabilidade natural, que acontece de tempos em tempos, ou acabou reforçado justamente pelas mudanças climáticas.

Um dos grupos a fazer esse tipo de análise é o ClimaMeter, que foi desenvolvido pelo Laboratório de Ciências do Clima e do Ambiente da Universidade Paris-Sarclay, na França e é liderado por diversas instituições europeias.

O trabalho comparou os sistemas de pressão atmosférica que causaram enchentes no Sul no presente (entre 2001 e 2023) com a forma que eles se comportavam no passado (entre 1979 e 2001).

Segundo o relatório, há 15% mais chuvas nos tempos atuais do que nas décadas anteriores.

“Nós atribuímos o aumento da precipitação que produziu as inundações no sul do Brasil às mudanças climáticas provocadas pelo homem. A variabilidade climática natural provavelmente desempenhou um papel modesto no evento”, concluem os pesquisadores.

“As pessoas podem argumentar que choveu tanto por causa do El Niño, que é uma variabilidade natural da realidade climática”, pontua a pesquisadora brasileira Luiza Vargas-Heinz, doutoranda no Centro Internacional de Física Teórica Abdus Salam, na Itália, e uma das autoras do relatório do ClimaMeter.

“No estudo, levamos em conta os indicadores da intensidade do El Niño, mas eles não são suficientes para explicar esse aumento da intensidade das chuvas. Por isso, chegamos à conclusão de que essa intensificação está relacionada às mudanças climáticas”, reforça ela.

Crédito, Reuters

Legenda da foto, Eventos climáticos extremos estão mais intensos e frequentes, como indicam as projeções

Novas bolinhas nas faces dos dados

Mas por que eventos extremos ficam mais fortes e frequentes num contexto de mudanças climáticas, como apontam os modelos feitos por cientistas?

Para responder essa questão, o climatologista Alexandre Costa, da Universidade Estadual do Ceará, cita um cálculo do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).

“As projeções apontam que, no momento em que o aquecimento global ultrapassou a barreira de 1 ºC, os eventos extremos úmidos se tornaram 30% mais frequentes e 6% mais intensos”, informa ele.

Para explicar como isso ocorre na prática, o pesquisador faz uma comparação com um jogo de dados.

“Vamos imaginar que um evento extremo, como chuvas muito fortes, equivale ao número 12”, começa ele.

“Para que isso aconteça no jogo, você tem uma chance em 36. Isso porque, para obter esse resultado, você precisa que os dois dados caiam no seis.”

Transportando o exemplo para a vida real, para que uma catástrofe relacionada ao clima aconteça, é preciso uma conjunção de fatores um tanto rara — nas enchentes que acometem as cidades gaúchas, houve a frente fria, a onda de calor, o El Niño, a seca na Amazônia…

“O problema é que as mudanças climáticas causadas pelo homem produzem uma forte mudança na distribuição das probabilidades dos eventos extremos”, explica Costa.

“No exemplo do jogo, é como se nós estivéssemos pintando uma bolinha preta a mais em cada face dos dados. Com isso, teríamos os numerais dois, três, quatro, cinco, seis e sete.”

Ou seja: se antes só havia uma possibilidade de somar 12 nos dados (6 6), agora existem duas (6 6 e 5 7), ou o dobro.

“E, pior, essa modificação abre uma outra possibilidade: tirar o número 13. Ou, na vida real, ter eventos extraordinários ainda mais extremos e imprevisíveis”, acrescenta o cientista.

Costa reforça que, quando a atividade humana lança gases que elevam as temperaturas e mudam o ciclo hidrológico do planeta, isso gera uma gama de novas possibilidades, como secas numa região ou tempestades fora do comum em outra.

Além disso, a tendência é que esses eventos extremos — que acontecem naturalmente, de tempos em tempos, segundo os ciclos climáticos do planeta — se repitam em espaços de tempo mais curtos.

“O tempo de recorrência dessas catástrofes se reduz. Cheias extraordinárias ou ondas de calor fortíssimas, que aconteciam a cada 50 anos, passam a ocorrer todas as décadas”, exemplifica ele.

Crédito, Reuters

Legenda da foto, Será necessário repensar na forma como casas, bairros e cidades estão projetados para se adaptar às mudanças climáticas, apontam especialistas

Mas será que isso já é realidade quando pensamos no Rio Grande do Sul? Ou a enchente atual é um evento isolado?

A bióloga Patricia Eichler-Barker, pesquisadora visitante do Laboratório de Geologia e Geofísica Marinha e Monitoramento Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), observa que toda a região Sul do Brasil sofre com uma série de problemas relacionados ao clima nas últimas duas décadas.

“Em 2004, tivemos um furacão em Santa Catarina que destelhou muitas casas e afetou a vida de dezenas de pessoas”, lembra ela.

“Sempre ouvimos que o Brasil não sofria com catástrofes naturais. Furacões e tufões eram coisas dos Estados Unidos. Tsunamis só ocorriam na Tailândia. Mas começamos a ver que isso não correspondia mais à realidade.”

O fato de três das quatro grandes cheias em Porto Alegre terem acontecido nos últimos nove meses também corrobora essa tendência.

“E isso tudo é fruto de políticas públicas e privadas dos últimos 30 anos que não têm o mínimo respeito pelo meio ambiente”, opina a especialista, que também faz projetos de pesquisa na Universidade da Califórnia em Santa Cruz, nos Estados Unidos.

“E agora o país inteiro se mobiliza em solidariedade ao Rio Grande do Sul. Mas o que pode acontecer quando catástrofes do tipo começarem a acontecer em três ou quatro Estados ao mesmo tempo? Precisamos pensar em como atender múltiplas demandas”, sugere Costa.

Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil foram um unânimes em afirmar que, além das medidas para frear o aquecimento do planeta, será necessário pensar em planos de resiliência climática — ou seja, como adaptar moradias, bairros e cidades inteiras a eventos como secas, inundações, ondas de calor, entre outros.

“No caso do Rio Grande do Sul, precisaremos pensar nos padrões de ocupação e nos tipos de estruturas que permitirão a gente conviver com essas cheias”, antevê Jardim.

“E aquilo que já está implantando, como nossos sistemas de proteção contra enchentes ou as pontes em cima de rios, terão que ser estudados e com garantias de manutenção”, conclui ele.