Crédito, Reuters

Há sete anos, em 2017, o historiador argentino Federico Finchelstein escreveu um artigo no jornal americano The Washington Post no qual argumentava que o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, estava se tornando um ditador.

“Maduro é mais do que uma ameaça à democracia, ele de fato destruiu a democracia no seu país”, afirma Finchelstein em entrevista à BBC.

Professor de história na New School for Social Research and Eugene Lang College, em Nova York, Finchelstein já lecionou nas universidades Brown e Cornell e é autor de diversos livros sobre autoritarismo e fascismo, o mais recente deles, Wannabe Fascists (Aspirantes a fascistas, em tradução livre), publicado neste ano.

Finchelstein também publicou, em agosto, o artigo O aspirante da vez, sobre o presidente argentino Javier Milei, na edição 47ª revista Serrote.

Em entrevista à BBC News Brasil, Finchelstein disse que Maduro é um ditador típico que “acredita que a violência é necessária para suprimir a política da oposição”.

Embora políticos que se identificam como de direita critiquem Maduro, argumenta o historiador, a falta de apreço de lideranças como os ex-presidentes americano Donald Trump e brasileiro Jair Bolsonaro pela democracia e a falta de respeito à lei os colocam próximos a populistas que se tornaram ditadores.

Finchelstein vai além e diz que ambos os políticos são o que chama de “aspirantes a fascistas”.

“São pessoas que por quaisquer motivos — falta de determinação ou medo etc. — não conseguiram o que eles parecem querer. Estão, eles estão entre o fascismo e o populismo, mais próximos do fascismo”, diz o pesquisador.

Leia abaixo trechos da entrevista.

Crédito, Arquivo Pessoal

Legenda da foto, Federico Finchelstein explica que no fascismo, a violência é um ‘imperativo ético’

BBC News Brasil – Em seu trabalho, o senhor diz que o fascismo é composto por quatro elementos que precisam estar presentes ao mesmo tempo. Quais são eles?

Federico Finchelstein – O primeiro é a política da xenofobia, do racismo, do ódio extremo ao outro. O segundo é um modo extremo de mentira e propaganda política, mentiras totalitárias. Depois existe a violência e militarização da política. E o quarto elemento é a ditadura.

Quando alguém, algum movimento, regime ou ideologia apresenta esses quatro elementos ao mesmo tempo, precisamos ficar atentos, porque podemos estar lidando com o fascismo. Você pode, é claro, ter qualquer um ou mais de um desses elementos sem fascismo, mas o fascismo não existe sem esses quatro ao mesmo tempo.

BBC News Brasil – O senhor define políticos como Jair Bolsonaro, Donald Trump e Javier Milei como aspirantes a fascistas. O que significa isso?

Finchelstein – Em meu trabalho, quero tentar entender o que está acontecendo no caso dessas pessoas que não são nem populistas típicos, nem fascistas bem sucedidos. No populismo clássico, você tem tendências autoritárias, mas esses quatro elementos do fascismo não estão presentes ao mesmo tempo ou não estão presentes de forma radical. E os aspirantes a fascista como Trump, Bolsonaro e outros como [Narenda] Modi, na Índia, ou [Viktor] Orbán, na Hungria têm diferentes níveis de apego a esses quatro elementos.

No caso de Trump e Bolsonaro, existiu uma tentativa de ficar no poder sem terem sido reeleitos — e, por tentativa de ficar no poder, quero dizer o que a maioria dos estudiosos concordam que foram tentativas de dar um golpe de Estado.

Populistas normalmente não dão golpes de Estado para ficar no poder. O populismo é uma forma de autoritarismo dentro da democracia. Mas Trump e Bolsonaro são ditadores fascistas? Não. Eles falharam. Eles estão totalmente comprometidos com a tentativa de golpe? Não. Estão, eles são aspirantes. São pessoas que por quaisquer motivos — falta de determinação ou medo etc. — não conseguiram o que eles parecem querer. Estão, eles estão entre o fascismo e o populismo, mais próximos do fascismo.

E, é claro, o populismo também pode deixar de ser populismo e virar uma ditadura sem ser fascista — o melhor exemplo é o caso do (Nicolas) Maduro (presidente da Venezuela).

[Nota da redação: Trump e Bolsonaro negam que tenham atuado para manter-se no poder por meio de um golpe de Estado.]

Crédito, EPA/Reuters

Legenda da foto, Finchelstein diz que Bolsonaro, Milei e Trump são ‘aspirantes a fascistas’

BBC News Brasil – O senhor diz que o fascismo é sempre de direita. Por quê? Maduro não pode ser chamado de fascista? Os quatro elementos não estão presentes?

Finchelstein – Em um artigo (no jornal americano) The Washington Post, muitos e muitos anos atrás, já escrevi que Maduro não era mais um populista, mas um ditador. E o que aconteceu agora (na Venezuela) confirma que ele é um ditador.

Mas o fascismo é sempre uma ideologia de extrema direita — na verdade, o mais extremo possível da direita. Está na definição do que é o fascismo. Em Maduro, o que você tem é uma espécie de ditadura de esquerda. Mas isso não faz dele um fascista.

O fascismo envolve a centralidade da xenofobia. Em Maduro, você tem pequenos, por exemplo, de antissemitismo. Mas isso não está no centro da sua política, não é sobre xenofobia, sobre racismo ou sobre cor da pele.

Em termos de violência, existe violência no regime de Maduro. Mas falo muito em meu trabalho que no fascismo não se trata apenas de ser violento, mas de elevar a violência a ponto de torná-la um conceito estético.

Se quisermos ser um pouco mais acadêmicos, Max Weber diz que um Estado é poderoso porque tem o monopólio da violência. Em geral, o Estado realmente usa essa violência quando é um Estado fraco. O que significa que um regime que está tendo sucesso usa menos a violência e a repressão do que quando está ameaçado. O Estado autoritário usa a violência como forma de espalhar medo, de repressão à oposição. Os ditadores autoritários típicos acreditam que a violência é necessária para suprimir a política da oposição, para se manter no poder.

Mas os fascistas acreditam que ser poderoso não é apenas ter o monopólio da violência, mas usá-la. Se você não usa a violência, você é fraco. Os fascistas usam a violência não apenas para espalhar o medo, mas também porque eles acreditam que são homens melhores quando são violentos. Você pode ter, claro, grupos armados e paramilitares em outros regimes. Mas não é sobre a quantidade de violência, mas sobre a dimensão qualitativa.

Ou seja, eles realmente acreditam que a violência é o centro da política. É um conceito diferente. É por isso que não podemos dizer que a União Soviética — que foi extremamente autoritária, ditatorial e violenta — foi fascista. O fascismo é algo muito específico. Se você tem uma ditadura violenta de esquerda, tem que usar outro termo.

Usando uma metáfora esportiva: se você me disser que alguém está jogando futebol com uma raquete, talvez futebol não seja o termo correto para descrever.

BBC News Brasil – É como se a violência não fosse apenas um meio, mas um fim em si mesmo?

Finchelstein – Espalhar o medo é algo importante no fascismo, mas um elemento mais importante é uma questão que envolve o “eu”. É por isso que o fascismo é uma ideologia tão perigosa, porque pegam ideias extremamente misóginas, racistas e acreditam que você é um homem melhor quando é mais violento.

Meu argumento é que liberalismo, conservadorismo, comunismo — a violência é central para qualquer ideologia. Mas o fascismo é a única que eleva a violência a uma espécie de imperativo ético. E isso leva para a militarização da política, essa glorificação de revólveres e armas como um elemento central. Você deve lembrar do Bolsonaro fazendo o símbolo da arma com a mão, é a mesma coisa em todos os outros. Eles se vestem de forma militar, é uma fascinação, uma fusão da política normal com o militarismo.

BBC News Brasil – A militarização está presente em Maduro. Hugo Chávez, antecessor e padrinho político de Maduro, chegou ao poder com ajuda dos militares.

Finchelstein – Sim, com certeza. Mas a questão é dimensão que, no fascismo, se vai além da violência e da militarização. [No fascismo], a violência é o que te torna melhor.

BBC News Brasil – Qual o nível de ameaça de cada uma dessas tendências autoritárias no mundo hoje? Quer dizer, estamos vendo um aumento da direita radical pelo mundo. Mas estávamos falando de Maduro, que o senhor definiu como uma ditadura de esquerda. Há quem aponte o mesmo sobre Daniel Ortega, na Nicarágua. Qual o nível de ameaça à democracia vindo da direita ou da esquerda hoje?

Finchelstein – A Venezuela não é mais uma democracia. Então, o Maduro é mais do que uma ameaça à democracia, ele de fato destruiu a democracia no seu país. De um jeito típico de um ditador convencional. Mas ele perdeu o apoio internacional, tem uma capacidade de mobilização interna muito limitada. Então, ele usa a violência para reprimir e causar medo.

Mas o nível de ameaça, isso depende muito. Se você me perguntar qual a maior ameaça à democracia no Brasil? É o Bolsonaro. Qual a maior ameaça na Venezuela? Maduro. Em cada lugar existe uma ameaça específica.

Então, a Nicarágua e a Venezuela não são mais democracias. Mas não existe uma ameaça de ditadura de esquerda em outros países da América Latina. Você não vê isso no Brasil, na Colômbia, no Chile.

Quanto à direita, existe uma tendência internacional, uma ameaça constante desses atores anticonstitucionais que não valorizam o pluralismo, o respeito e outros elementos centrais da democracia. Trump e Bolsonaro tentaram dar um golpe para se manter no poder — isso não é uma hipótese, é o que tentaram fazer.

A propósito, o tipo de populismo que vai se tornando fascismo é uma ameaça grande porque, com frequência, é altamente popular. É o caso do [presidente Javier] Milei hoje na Argentina.

BBC News Brasil – O senhor coloca Milei na mesma categoria que Bolsonaro e Trump?

Finchelstein – É ele que se coloca na mesma categoria (risos). Mas, sim, internacionalmente, as principais afiliações de Milei são Bolsonaro, Trump e talvez [Giorgia] Meloni, na Itália. Mas, neste momento, Milei é popular, ele tem tido sucesso, então, ele não tem a necessidade de tentar destruir a democracia como Bolsonaro tentou.

Estamos falando sobre um tipo de ideologia global antidemocrática, que é muito mais extrema do que o populismo. Mas eles estão em momentos diferentes. São pessoas profundamente anti-institucionais.

BBC News Brasil – Milei tentaria dar um golpe se perdesse a eleição ou uma futura reeleição?

Finchelstein – Quando Milei viu pesquisas que apontavam para uma derrota, ele começou a questionar as eleições, sem nenhuma prova de irregularidade. Mas ele venceu e, então, simplesmente parou de falar sobre isso. Já sabemos que esse é o modus operandi dos aspirantes a fascistas: eles se colocam como candidatos nas eleições e, se ganham, está tudo certo. Mas, se perdem, eles negam o resultado, espalhando mentiras.

BBC News Brasil – Existe entre a direita brasileira a ideia de que haveria o perigo de uma ditadura comunista no Brasil.

Finchelstein – Isso é claramente apenas propaganda política da direita, mentiras espalhadas por esse tipo de aspirante ao fascismo. Claro que podemos criticar os governos, mas você não vê no Chile, no Brasil ou na Colômbia a possibilidade acontecer o que está acontecendo na Venezuela ou em Cuba.

Então, quando Bolsonaro dizia que se Lula vencesse o Brasil viraria a Venezuela, isso era apenas propaganda. Você pode criticar ou avaliar qualquer aspecto de diferentes líderes sem espalhar esse tipo de mentira.

BBC News Brasil – O senhor diz que Trump e Bolsonaro falharam no que queriam e, por isso, são aspirantes a fascistas. Mas e em relação às pessoas que os apoiam? Existem grupos muito diferentes que apoiam Bolsonaro no Brasil. Ele foi eleito , ou seja, teve o apoio de mais da metade da população.

Finchelstein – Deve-se ter muito cuidado para não simplificar demais. Não é porque o líder é aspirante a fascista que as pessoas também são. As pessoas têm agência e querem coisas diferentes.

Então, claro, existe uma minoria de apoiadores radicais que são membros da seita, que consideram aquilo como uma religião, que seguem o líder cegamente. Mas isso é uma minoria.

A maioria — historicamente e também nos casos sobre os quais estamos falando — dos eleitores estão frustrados com um ramo específico da política. Eles também podem cair em simplificações feitas por essas pessoas de questões mais complexas.

Mas, na maioria das vezes, eles não colocam a ênfase em votar especificamente no candidato que ameaça a democracia. Às vezes, eles não estão informados sobre isso, ou não estão interessados, ou acreditam nas mentiras políticas.

Mas, em geral, eles têm em comum que estão extremamente frustrados com os outros candidatos a ponto que não enxergam os problemas no seu candidato.

Por exemplo, na Argentina, muitas pessoas estavam extremamente frustradas com os governos anteriores que combinaram corrupção com má gestão da economia, populismo, demagogia, etc.. Então, muitas pessoas vão com o “cara maluco”, ele é bizarro, mas não é o que já está lá. E elas não percebem — e, às vezes, vão perceber com o tempo — que, nesses casos, o remédio faz mais mal do que a doença.

Para entender a ascensão e queda de Bolsonaro, você precisa observar que nem sempre é sobre ele, mas, às vezes, é sobre as falhas dos outros políticos em consertar situações que afetam a vida das pessoas. Tem a ver com essa falha — ou ao menos percepção de falha. Porque problemas podem ser por situações externas, como guerras, crises econômicas.

BBC News Brasil – Falando ainda sobre a população, mas mudando um pouco de país. Tivemos situações violentas no Reino Unidos de manifestantes anti-imigração na semana passada nas quais não havia exatamente a figura de um único líder instigando. Como o senhor definiria um movimento como esse?

Finchelstein – Isso é muito interessante, porque houve eleições recentes no Reino Unido, e essas pessoas perderam. A direita perdeu. Então esse é um exemplo perfeito de quão antidemocráticos esses grupos são. De como existe uma mistura ali de fascismo, de extrema direita e de outros grupos que, às vezes, colocam as culpas de suas próprias falhas nos outros. O objetivo é destruir a política e criar uma resposta violenta para qualquer coisa que eles não gostam.