Crédito, Equipe de Jornalismo Visual/BBC

As manifestações que tomaram as ruas do Brasil em junho de 2013 – e se seguiram nos meses seguintes – não tiveram líderes claros nem alvos únicos.

Motivados inicialmente pelo aumento de R$ 0,20 na passagem de ônibus em São Paulo, os protestos rapidamente se ampliaram para demonstrar uma insatisfação generalizada contra os gastos para a Copa do Mundo de 2014, contra as denúncias de corrupção e para exigir mais investimentos em educação e saúde.

Mas algumas pessoas e grupos se destacaram – ou foram “eleitos” – como símbolo do momento de tumulto político que engolfou o país.

O Movimento Passe Livre, um grupo de esquerda com grande presença estudantil, ganhou atenção nacional por ter feito as chamadas para os primeiros protestos. No entanto logo se viu como apenas mais uma das vozes em um turbilhão de manifestações – que incluíam embriões de movimentos de direita que mais tarde marcaram a década.

Para os políticos, a consequência mais imediata foi a queda vertiginosa na popularidade dos governos: a da então presidente Dilma Rousseff (PT) foi de 65% para 30%, a do então governador de SP Geraldo Alckmin foi de 48% para 38% e a do então prefeito da capital paulista, Fernando Haddad

Enquanto isso, pessoas comuns tiveram suas vidas reviradas em meio ao tumulto político, com consequências duradouras que influenciaram o caminho que as levou para onde estão hoje — dez anos depois.

  • As manifestações ganharam corpo com a adesão de pessoas com diversas reclamações contra a classe política como um todo, mas a gestão de Dilma Rousseff foi especialmente afetada. Na época, a presidente tomou uma série de medidas em resposta e disse que os protestos mostravam a força da democracia.

    A presidente foi reeleita em 2014, mas protestos liderados por movimentos de direita culminaram no seu impeachment em 2016. Porém, o Congresso decidiu não retirar seus direitos políticos.

    Após o impeachment, ela voltou a morar em Porto Alegre e se aposentou como funcionária pública, vivendo de forma reservada até 2018, quando se candidatou ao Senado por Minas Gerais, sem sucesso.

    Em 2023, foi indicada pelo governo Lula para o comando do Novo Banco de Desenvolvimento, conhecido como o “banco dos Brics”, instituição internacional que busca promover o crescimento de países do bloco.

    Neste ano, no prefácio do livro Junho de 2013: A Rebelião Fantasma (Boitempo), ela escreveu que as manifestações tinham “narrativas fragmentadas e contraditórias” e que a insatisfação contra o sistema demonstrada naquele momento permitiria depois “a ascensão de uma extrema direita falsamente antissistema, cujo discurso conseguiu ganhar amplo lastro eleitoral”.

  • Produtora de cinema de classe média e integrante de movimentos sociais de esquerda, Elisa Quadros ficou conhecida como “Sininho” quando participou das manifestações de junho de 2013 no Rio de Janeiro e de manifestações e ocupações nos meses seguintes — em geral, contrárias às remoções pelo governo de Sergio Cabral (então no MDB, hoje sem partido) de moradores de terrenos que seriam usados para a construção de locais que seriam usados na Copa do Mundo de 2014.

    Junto com outros manifestantes, foi presa duas vezes pela polícia sob acusação de participar de atos violentos e retratada em alguns veículos de imprensa como “líder dos black blocks”, em referência aos manifestantes que realizaram depredações, algo que ela sempre negou.

    Foi condenada à prisão em 2018, mas responde ao processo em liberdade. O processo ainda corre na Justiça. Ela afastou-se de protestos, mas continua se manifestando nas redes sociais.

    Nas vezes em que falou com jornalistas nos anos seguintes, disse que sua vida foi revirada pelas acusações e pela forma como foi retratada.

    Hoje, aos 38 anos, ela vive com os três filhos que teve com Luiz Carlos Rendeiro Júnior, que era então seu namorado e ativista ao seu lado, em uma cidade na região serrana do Rio. Perdeu o marido no início de 2023 em uma morte tratada pela polícia como suicídio.

  • Fernando Haddad estava no início de sua gestão como prefeito de São Paulo quando se viu no centro dos protestos de 2013, que começaram na cidade como reação ao aumento das tarifas de ônibus.

    Inicialmente ele se recusou a segurar os preços das passagens, já que o subsídio necessário teria grande peso no orçamento da cidade, mas cedeu diante da mobilização. Sua gestão terminou em 2016, quando não conseguiu se reeleger e perdeu para João Doria (então no PSDB, hoje sem partido).

    Em 2018, concorreu à Presidência como candidato do PT no lugar de Lula e foi para o segundo turno, perdendo para Jair Bolsonaro (então no PSL, hoje PL). Em 2022, concorreu ao governo do Estado de São Paulo, mas foi derrotado no segundo turno por Tarcísio de Freitas (Republicanos).

    Homem de confiança de Lula, Haddad foi escolhido pelo presidente como ministro da Fazenda. Desde a nomeação, segundo ele próprio, tem trabalhado para conciliar as demandas do mercado com as expectativas das alas mais à esquerda do PT.

  • Há dez anos, Geraldo Alckmin era o governador de São Paulo, responsável pela atuação da Polícia Militar nos protestos que começaram na capital em junho.

    Ele foi criticado pela forma como a polícia coibiu violentamente o início dos protestos – manifestantes e jornalistas ficaram feridos. Após a mudança da opinião pública em favor dos manifestantes, o uso da força pela PM ficou mais moderado.

    Alckmin foi reeleito governador em 2014, mas fracassou na disputa pela Presidência nas eleições de 2018. Ficou em quarto lugar, com número de votos muito abaixo da média para candidatos do PSDB.

    Após perder o controle do partido para seu ex-afilhado político João Doria e ficar sem cargo eletivo, Alckmin voltou a atuar como médico e se tornou colaborador em um programa vespertino da TV Gazeta — o que o tornou alvo de piadas e memes.

    Em 2022, ele se aproximou de Lula e se filiou ao PSB para concorrer às eleições como vice-presidente na chapa do petista. Hoje, acumula os cargos de vice e de ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços.

  • Conhecido na época pelo apelido “Game Over”, o ativista Luiz Carlos Rendeiro Júnior se juntou aos protestos em junho de 2013 e, nos meses seguintes, participou de ocupações contra o governo de Sergio Cabral (então no MDB, hoje sem partido) no Rio de Janeiro e contra as remoções de moradores de áreas da cidade em preparação para a Copa do Mundo de 2014.

    Namorado e depois marido de Elisa Quadros, ele ficou conhecido ao ser fotografado se despedindo de Sininho com um abraço pela janela do ônibus em que ela era levada presa pela Polícia Militar.

    Ao lado de outros 22 manifestantes, chegou a ser preso e foi acusado pela polícia de participar de atos violentos, formação de quadrilha e corrupção de menores. Em 2018, foi condenado em primeira instância a sete anos de prisão, mas recorreu em liberdade.

    Teve três filhos com Elisa e vivia com a família na região serrana do Rio quando foi encontrado caído no chão de casa, em março de 2013. Sua esposa chamou os bombeiros, mas ele já estava morto quando a ajuda chegou. O caso foi tratado pela polícia como suicídio. Ele tinha 34 anos.

    Nas redes sociais, Elisa fez uma homenagem ao marido: “O amor da minha vida se foi. Deixando meu coração rasgado e um buraco de saudade. Três filhos lindos e muita história de luta e exemplo. Ele não aguentou esse mundo e o peso que sentimos”.

  • O Revoltados Online, criado pelo empresário paulista Marcello Reis, foi um dos muitos grupos de direita que se beneficiaram da insatisfação popular iniciada em junho de 2013 e que continuou nos anos seguintes.

    Muitos deles foram criados em 2014 ou posteriormente e ganharam repercussão nos protestos pelo impeachment em 2016. O Revoltados Online, no entanto, já estava presente em 2013 — Reis apareceu nos jornais e na televisão ao atacar manifestantes arrancando bandeiras de suas mãos e gritando “sem partido!”.

    O grupo cresceu, e Reis se aproximou de figuras como os então deputados Eduardo Cunha e Jair Bolsonaro, consolidando uma narrativa mais radical de direita. Mas a página do Revoltados Online, com 2 milhões de seguidores no Facebook, acabou bloqueada por compartilhar discurso de ódio e homofobia.

    Desavenças fizeram diversos membros deixarem o grupo — como Bia Kicis (PL-DF), hoje deputada federal. As redes tocadas por Reis perderam seguidores, influência e repercussão.

    Hoje, o empresário de 45 anos mantém seu ativismo no Twitter — onde tem 300 seguidores — e na plataforma Rumble, conhecida por atrair usuários de direita.

  • Conhecido hoje por seu ativismo sociopolítico e sua orientação editorial de esquerda, o grupo Mídia Ninja foi lançado oficialmente alguns meses antes do protestos de junho de 2013.

    Ganhou notoriedade e milhares de seguidores nas redes sociais ao cobrir as manifestações com transmissões ao vivo de múltiplos pontos dos protestos, com filmagens feitas por celular.

    Ativo em seu portal e nas redes sociais, o grupo se apresenta até hoje como uma alternativa aos veículos de imprensa tradicionais.

    Os membros que tiveram mais destaque na época foram o jornalista e cocriador Bruno Torturra e o produtor cultural Pablo Capilé, que representaram o grupo em uma entrevista no programa Roda Vida da TV Cultura.

    Torturra posteriormente deixou o grupo e, hoje, é editor-chefe do programa Greg News, da HBO. Capilé continua no Mídia Ninja.

  • Defensor da tarifa zero para o transporte público, o Movimento Passe Livre foi criado em 2005 e tem um histórico de protestos em defesa da causa. Mas o grupo atraiu mais ativistas no início de junho de 2013 em São Paulo com um aumento de R$ 0,20 das passagens de ônibus.

    Após uma mudança de tom na cobertura da imprensa e o aumento do apoio público, os protestos foram engrossados por manifestantes com outras pautas — ficou famoso o bordão “não é só pelos 20 centavos”. O movimento ganhou grande destaque à época, mas sem apontar nenhum líder, já que se define como apartidário, autônomo e horizontal (sem hierarquia de membros).

    O MPL teve sucesso em impedir os aumentos em diversos locais e em ampliar o debate sobre a tarifa zero, mas perdeu destaque ao longo do tempo. Enquanto movimentos e nomes de direita ganharam impulso com os protestos, o MPL viu sua pauta ser ofuscada por outras demandas.

    Além disso, diversos membros responderam a inquéritos por anos e foram constantemente convocados a depor – nenhuma denúncia envolvendo o MPL foi aceita pela Justiça.

    Formado em grande parte por estudantes, o MPL viu diversos ativistas presentes em 2013 deixarem o grupo após se formarem e encontrou dificuldade em atrair a mesma quantidade de membros. Hoje, o movimento continua existindo oficialmente e faz parte da Coalizão Mobilidade Triplo Zero, que reúne ativistas ligados a transporte público.

  • O catador de latinhas e morador de rua Rafael Braga foi preso em junho de 2013 no Centro do Rio de Janeiro por estar com uma garrafa de desinfetante ao sair da loja abandonada onde dormia.

    Negro e pobre, ele foi o primeiro condenado em ação envolvendo os protestos, mas disse que sequer estava se manifestando. Sua condenação por “porte de material incendiário” passou a ser um caso estudado por criminalistas como exemplo de seletividade da Justiça.

    Ficou um ano preso até passar para o regime semiaberto, mas foi detido novamente sob acusação de tráfico de drogas em uma prisão questionada por entidades de defesa dos direitos humanos, que fizeram campanha por sua libertação. Em 2017, ele foi condenado a 11 anos de prisão por tráfico de drogas por porte de 0,6g de maconha – flagrante que sua defesa diz ter sido forjado.

    Em setembro de 2017, o Supremo Tribunal de Justiça concedeu a Braga o direito à prisão domiciliar depois que o catador contraiu tuberculose na prisão. Na pandemia, suas condenações transitaram em julgado, ou seja, acabaram as possibilidades de recurso, e ele foi preso.

    Mas, em 2021, ganhou o direito à liberdade condicional para viver com a família no Rio de Janeiro. Ele tem 35 anos hoje. Sua defesa pretende entrar com pedido de revisão da condenação, segundo o advogado Carlos Martins.

  • O cinegrafista Santiago Andrade, de 50 anos, morreu após ser atingido na cabeça por um rojão enquanto trabalhava filmando os protestos no Rio de Janeiro em fevereiro de 2014.

    Ele era jornalista há 20 anos e cobria as manifestações para a TV Bandeirantes. Chegou a ser levado ao hospital, mas morreu quatro dias depois.

    Os dois homens acusados de soltar o rojão que atingiu o cinegrafista ainda não foram julgados — o tribunal do júri que está a cargo do crime está marcado para dezembro de 2023.

    A filha de Santiago, Vanessa Andrade, disse à imprensa neste ano que “o sentimento é de que enfim teremos justiça” após quase dez anos.

    O caso de Santiago é considerado o mais grave entre diversos jornalistas que ficaram feridos cobrindo protestos de junho de 2013 e os que vieram depois. O fotojornalista Sergio Silva, que ficou cego após ser atingido no olho por uma bala de borracha disparada pela PM, teve o pedido de indenização pelo Estado de São Paulo negado pela Justiça neste ano. Nenhum policial foi responsabilizado.

Arte da reportagem: Equipe de jornalismo visual da BBC News Brasil