- Author, Alessandra Corrêa
- Role, De Washington para a BBC News Brasil
Quando o caso de um americano que havia entrado em remissão do HIV foi anunciado, em julho de 2022, a notícia foi celebrada internacionalmente como mais um passo histórico na busca por uma cura para o vírus causador da Aids.
Esse paciente era uma das cinco pessoas no mundo a entrar em remissão total de HIV e leucemia mieloide aguda, graças a um transplante de células-tronco.
Aos 66 anos de idade e diagnosticado com Aids em 1988, era também o mais velho entre os cinco, e o que há mais tempo vivia com o vírus.
Na época do anúncio, no entanto, ele queria manter sua privacidade, e seu nome não foi divulgado.
Quase um ano depois, Paul Edmonds decidiu sair do anonimato e finalmente contar sua história. Em sua primeira entrevista a um veículo de imprensa da América Latina, ele conversou com a BBC News Brasil.
“Eu não estava pronto (para falar) naquele momento. Isso tudo era uma grande notícia também para mim, e eu precisava de tempo para pensar sobre o que queria fazer”, diz Edmonds à BBC News Brasil.
Agora, ele afirma que está preparado para oferecer seu relato. “Eu quero ser uma inspiração para as pessoas que têm HIV. E também honrar aqueles que não sobreviveram.”
O HIV, que é a sigla em inglês para o Vírus da Imunodeficiência Humana, ataca o sistema imunológico dos portadores. Em seu estágio mais avançado, o vírus pode levar ao desenvolvimento da Aids, que é a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, abrindo caminho para uma série de doenças oportunistas que se aproveitam das falhas na imunidade do paciente.
Na década de 1980, quando Edmonds foi diagnosticado, as opções de tratamento para o HIV eram limitadas, e um resultado positivo era encarado por muitos como uma sentença de morte.
No caso dele, o prognóstico era ainda pior, porque os resultados mostravam que, além de ser portador do vírus, ele já havia progredido para Aids.
Ao longo das últimas décadas, novas terapias tiveram sucesso, e hoje portadores do vírus conseguem levar uma vida longa e saudável e muitos nem chegam a desenvolver Aids. Mas ainda não existe uma cura, e as pessoas diagnosticadas com HIV têm de conviver com o vírus e tomar medicamentos pelo resto da vida.
O sucesso do caso de Edmonds, descrito por ele como “milagroso”, ocorreu depois de um segundo diagnóstico.
Em 2018, durante exames de rotina para controlar o HIV, ele descobriu que tinha leucemia mieloide aguda, um tipo de câncer que atinge a medula óssea e as células do sangue.
Os médicos disseram que Edmonds precisaria se submeter a um transplante de células-tronco, um procedimento arriscado, mas que oferecia uma oportunidade: eles poderiam buscar um doador que tivesse uma mutação genética rara, chamada de CCR5 Delta 32, que torna o organismo resistente ao HIV.
Edmonds recebeu o transplante em 2019, no centro de tratamento de câncer City of Hope (Cidade da Esperança), na Califórnia.
Dois anos depois, em 2021, ele parou completamente com a medicação para controlar o HIV, e até hoje está em remissão de longo prazo, sem HIV ou leucemia detectáveis em seu organismo.
Apesar de esse tipo de transplante ser raro para pacientes com HIV, o resultado de Edmonds e dos outros quatro pacientes submetidos ao mesmo procedimento com sucesso é considerado promissor por médicos e pesquisadores. Muitos esperam que o acompanhamento desses pacientes e o estudo desses casos possam levar a novos tratamentos e a uma possível cura.
“Um transplante de células-tronco é um procedimento complexo, com efeitos colaterais potenciais significativos”, diz à BBC News Brasil a médica Jana Dickter, especialista em doenças infecciosas e parte da equipe que trata de Edmonds no City of Hope.
“Portanto, não é uma opção adequada para a maioria das pessoas que vivem com HIV. Mas é uma opção para pessoas com HIV que desenvolvem um câncer no sangue e que podem se beneficiar de um transplante para tratar da doença”, ressalta Dickter.
Edmonds cresceu em Toccoa, uma cidade de menos de 10 mil habitantes no interior do Estado da Geórgia. Apesar de viverem em uma pequena comunidade religiosa e conservadora no sul dos Estados Unidos, seus pais o apoiaram quando ele revelou que era gay.
Em 1976, aos 21 anos de idade, ele se mudou para San Francisco, a cidade californiana que já se firmava como epicentro do movimento gay no país.
“No início, era simplesmente incrível. Era um momento muito especial. Homens gays de todos os lugares estavam vindo para San Francisco”, lembra Edmonds.
Mas, no início da década de 1980, muitos começaram a ficar doentes. “Era assustador, ninguém sabia o que estava acontecendo. Chamavam (a nova doença) de câncer gay. As pessoas estavam com medo umas das outras”, relata.
Muitos dos pacientes com HIV morriam poucos anos após descobrirem que eram portadores do vírus. Edmonds lembra que costumava ler os obituários do jornal local no bar que frequentava, e muitas vezes chorava ao ver o nome de amigos e conhecidos.
Edmonds conta que não tinha sintomas quando decidiu fazer o teste para HIV, em 1988, mas já suspeitava que pudesse ser portador do vírus. Ele recebeu o resultado das mãos de uma estudante de medicina, que fazia estágio na clínica.
“Ainda lembro de sua expressão, foi difícil também para ela me dar a notícia, eu podia ver no seu rosto”, afirma Edmonds, que na época tinha 33 anos de idade.
“Eu testei positivo (para HIV), e também recebi um diagnóstico de Aids, porque minha contagem de linfócitos T (CD4) estava abaixo de 200 (por milímetro cúbico de sangue), o que é considerado oficialmente Aids”, relata Edmonds. “Embora eu já suspeitasse que podia ser soropositivo, receber o resultado foi um choque.”
Edmonds achava que teria o mesmo destino de tantos amigos que haviam sucumbido à doença. Ele conta que, por algum tempo, começou a beber em excesso, mas eventualmente aceitou o diagnóstico, controlou a bebida e passou a seguir os tratamentos disponíveis na época.
“Eu trocava de medicamento cada vez que um remédio novo surgia. E, na época, todos eram muito ruins”, afirma, ressaltando que se sentia mal a maior parte do tempo, não por causa da doença, e sim devido aos efeitos colaterais dos medicamentos.
“Passei a usar cannabis medicinal para combater os efeitos colaterais, a náusea, a falta de apetite, evitar perda extrema de peso”, diz.
Em 1992, Edmonds conheceu seu marido, Arnold House, chamado carinhosamente de Arnie. Edmonds imediatamente revelou que era soropositivo e incentivou House a fazer um teste.
“E ele também testou positivo. Foi um choque, mas ele lidou bem com isso, e nós simplesmente seguimos em frente”, conta Edmonds, ao ressaltar que um sempre cuidou do outro durante tantos anos vivendo com HIV.
Edmonds fala com carinho do companheiro, com quem vive há 31 anos e com quem casou legalmente em 2014. “(Desde o início) nós tivemos essa atração instantânea, e isso permaneceu. Nós não nos separamos mais desde o dia em que nos conhecemos.”
Transplante e busca por um doador
Com o passar do tempo, novos e melhores tratamentos para o HIV foram surgindo, e o casal se adaptou à convivência com o vírus. “Você começa a se permitir olhar para um futuro, imaginar um futuro”, diz Edmonds.
Até que, em 2018, três décadas após seu diagnóstico, Edmonds descobriu que estava com síndrome mielodisplásica (SMD), termo que se refere a um grupo de doenças que afetam a medula óssea, um tecido gelatinoso localizado no interior dos ossos responsável pela fabricação de células sanguíneas. A SMD algumas vezes evolui para leucemia mieloide aguda, o que ocorreu no caso dele.
Ele afirma que não tinha sintomas, apenas um pouco de fadiga. Seus médicos indicaram que buscasse tratamento no City of Hope, e lá a equipe médica explicou os detalhes do procedimento, que seria sua chance de superar o câncer e, talvez, também o HIV.
A médica Jana Dickter esclarece que o transplante de células-tronco a que Edmonds foi submetido, também chamado de transplante de medula óssea, usa células da medula óssea de um doador para substituir o tecido doente no organismo do receptor.
Após tomada a decisão de ir adiante com o transplante, começou a busca por um doador compatível e que tivesse a rara mutação genética que confere resistência ao HIV, presente em apenas cerca de 1% a 2% da população, segundo os médicos do City of Hope.
Edmonds precisou passar por quimioterapia para se preparar para receber o transplante, um processo delicado no caso de um paciente como ele, que também tomava antirretrovirais para controlar o HIV. A quimioterapia pode afetar temporariamente o sistema imunológico.
Em fevereiro de 2019, aos 63 anos de idade, ele finalmente estava pronto para receber o transplante, que transcorreu com sucesso. Nos meses seguintes, permaneceu sendo monitorado de perto pelos médicos, e conta que recebeu a visita e o carinho de amigos de várias partes do país.
“Eu não tinha ideia se (o transplante) ia funcionar ou não. Me esforcei para não tirar conclusões precipitadas, para simplesmente seguir o tratamento e ver o que acontecia”, afirma Edmonds.
Ele continuou tomando medicamentos para prevenir complicações do transplante, além do tratamento antirretroviral para o HIV. Um ano depois do procedimento, os planos de suspender a terapia para HIV foram adiados pela pandemia de covid-19.
Foi somente em março de 2021, mais de dois anos após o procedimento, que Edmonds finalmente interrompeu a terapia antirretroviral. Desde então, ele continua livre da leucemia e do HIV, mas os médicos responsáveis pelo seu tratamento ainda não usam o termo “cura” para descrever o seu caso, considerado por enquanto uma remissão de longo prazo.
“Nós não usamos o termo cura muito frequentemente no mundo do HIV”, ressalta a médica Jana Dickter. “Mas posso dizer que ele parou com a terapia antirretroviral há mais de dois anos e (desde então) não encontramos nenhuma evidência de replicação do HIV em seu sistema.”
Segundo a especialista em doenças infecciosas, ainda é preciso mais tempo e mais dados para considerar Edmonds oficialmente “curado”. “Mas o que estamos vendo até agora é muito promissor”, salienta.
Em casos anteriores, a marca de cinco anos sem evidências de HIV costuma ser o padrão para considerar o paciente curado.
Tratamento raro, mas que oferece esperança
“Eu ainda acordo todas as manhãs e tenho de dizer a mim mesmo que é real. Eu vejo isso como milagroso, essa coisa incrível que aconteceu comigo”, diz Edmonds. “Simplesmente não sei como fui tão afortunado. Sou muito grato.”
Ele conta que ainda sofre com pequenos problemas decorrentes do transplante, como o surgimento esporádico de feridas na boca e a sensação de olho seco, para os quais continua recebendo tratamento no City of Hope.
“Poderia ser tão pior. Não posso reclamar disso, é tudo administrável”, afirma.
Segundo a médica Jana Dickter, até o momento, entre 15 pacientes com HIV no mundo que receberam transplante de doador com a mutação genética rara, oito morreram e cinco, incluindo Edmonds, entraram em remissão de longo prazo. Outros dois ainda estão recebendo terapia antirretroviral.
Antes de sair do anonimato, Edmonds era conhecido como o “Paciente da Cidade da Esperança”, em referência ao centro onde fez seu tratamento. Os outros quatro pacientes que entraram em remissão de longo prazo para o HIV e leucemia após o transplante ficaram conhecidos como os pacientes de Berlim (que recebeu o transplante em 2007), Londres, Nova York e Düsseldorf.
Esse tipo de transplante não está disponível para a maioria dos portadores de HIV. Devido aos riscos envolvidos e a dificuldade de encontrar doadores com a mutação genética rara, o tratamento deverá continuar restrito para alguns poucos pacientes que também enfrentam um câncer, como foi o caso de Edmonds.
Mas o sucesso de seu tratamento deve ajudar nas pesquisas sobre o vírus, e oferece esperança para outros pacientes. Edmonds continuará a ser monitorado para uma série de estudos.
“Em geral, quando pacientes recebem um transplante, mesmo sem HIV, são monitorados para qualquer recorrência da leucemia”, esclarece Dickter. “No caso dele, estamos monitorando conforme o protocolo padrão para recorrência de leucemia, mas também para garantir que não haja reativação de seu HIV.”
A médica ressalta que, à medida que a população de pessoas com HIV envelhece, aumenta o risco de desenvolver alguns tipos de câncer, entre eles os sanguíneos.
“E a possibilidade de curar não apenas o câncer, mas também simultaneamente entrar em remissão para o HIV, é animadora. Espero ver futuros pacientes com resultado semelhante”, afirma.
Aos 67 anos de idade, Edmonds diz que tem se dedicado a ajudar pessoas doentes e idosas, servindo como cuidador e oferecendo companhia. Também tem atuado na defesa da pesquisa da cura do HIV.
Ele participa do conselho consultivo comunitário de um programa dedicado à pesquisa sobre o vírus, e atua com outros pacientes que entraram em remissão, entre eles o de Londres e o de Düsseldorf, para apoiar a arrecadação de fundos para estudos sobre a cura do HIV.
Edmonds não sabe quem foi seu doador, que escolheu permanecer anônimo. “Eu enviei uma carta de agradecimento e disse que estava disposto a conhecê-lo, mas não há pressão, caberá a ele (decidir)”
“Quero destacar o quanto aprecio que alguém tenha se tornado um doador. E quero agradecer ao meu doador. Ele salvou a minha vida”, afirma.
Você precisa fazer login para comentar.