- Nathalia Passarinho – @npassarinho
- Da BBC News Brasil em Londres
“Mamãe, quero jogar futebol com eles”, pediu Fabrício, de 11 anos, à mãe, Mariana Caminha. Era um fim de semana de sol em Brasília.
Ela e outros adultos faziam churrasco na área externa de num condomínio fechado, e um grupo de crianças jogava futebol na quadra ao lado. Mariana não conhecia aqueles meninos, mas queria atender o desejo do filho.
Fabrício tem autismo, então, não participaria da partida no mesmo ritmo dos outros garotos. Sem saber como as crianças receberiam seu filho, ela diz que decidiu dar uma chance ao acaso e pedir que incluíssem o menino.
“Meu impulso na hora foi dar uma olhadinha para ver quem poderia ser o líder ali, a criança com maior influência no grupo. Localizei um menino maior, cheguei perto dele e disse: ‘Olha, você está vendo aquele menino ali? Ele quer jogar com vocês'”, disse Mariana, que trabalha em uma consultoria ambiental britânica.
“Ele é autista, então, não entende muito bem as regras. Se ele entrar na quadra, você dá uma forcinha para ele?”, pediu ela ao garoto. “O menino deu sinal de ok e não perguntou absolutamente nada. Eu saí e fiquei olhando, para dar ao Fabrício espaço para ter iniciativa.”
O filho de Mariana entrou feliz na quadra e se juntou aos outros meninos, começando a correr com o grupo. A mãe ficou observando receosa, mas contente com a iniciativa do filho, e decidiu filmar a cena.
O que se desenrolou em seguida emocionou Mariana e milhares de pessoas que assistiram depois ao vídeo, que viralizou nas redes sociais.
“A minha expectativa ali era muito baixa. A minha expectativa era só que não expulsassem ele, que deixassem ele jogar um pouquinho, sem mandar para fora da quadra”, disse à BBC News Brasil.
“Mas o que aconteceu foi muito maior do que eu estava esperando. Eles não só o incluíram, deixaram ele jogar, mas também mudaram a dinâmica do jogo para fazer com que o Fabrício se sentisse parte daquilo ali.”
As imagens registradas por Mariana mostram que, depois que Fabrício entrou, o jogo continuou igual por alguns segundos. Depois, um menino mais velho pegou a bola e passou para Fabrício, indicando discretamente aos outros que eles deveriam dar espaço para que o menino ficasse um tempo com a bola no pé.
Organicamente, sem precisar de qualquer outra comunicação, os meninos acompanharam Fabrício, sem roubar a bola. “Chuta para o gol!”, gritou Mariana ao filho, com a voz carregada de entusiasmo.
Fabrício, então, se concentrou, girou devagar em direção ao gol, enquanto os demais jogadores se movimentaram ao seu redor, sem disputar a bola. Ele mirou, chutou e fez o gol.
Imediatamente, os outros meninos comemoram. Um deles esticou as mãos num em um “toca aqui!”. E o jogo continuou.
“Meus olhos se encheram d’água. Foi a inclusão da forma mais genuína que eu tinha experimentado durante todos esses anos, desde o diagnóstico do Fabrício”, conta Mariana.
“Nós passamos por vários momentos bons e ruins no que se diz respeito à inclusão, mas ali eu acho que foi o momento mais lindo, porque não foi uma criança, foram várias crianças, crianças que não conheciam ele, que talvez nem tenham conhecimento em relação ao autismo.”
Mariana decidiu postar o vídeo nas redes sociais e logo começou a receber curtidas e comentários emocionados.
Depois, uma conta no Instagram sobre atividades infantis em Brasília repostou as imagens, e, em pouco tempo, o vídeo alcançou mais de 20 mil visualizações.
A mãe de Gustavo, um dos meninos que comemoraram o gol com Fabrício, viu o vídeo por acaso nessa conta e ficou emocionada com a atitude do filho.
“Você encheu meu coração de alegria. O menino de amarelo é o Gustavo, meu filho. Ele tem um amigão que também tem autismo, o Enzo. Eu amo a amizade deles”, escreveu.
Mariana respondeu elogiando: “Muito lindo seu filho. Fiquei encantada com ele. Parabéns pelo lindo ser humano que você está criando”.
À BBC News Brasil, a mãe de Gustavo, Ticiana Villas Boas, disse que o episódio demonstrou que o “preconceito vem dos adultos” e defendeu que escolas e famílias reforcem a inclusão.
“A criança não tem esse olho para vigiar. ‘Olha, aquele menino tem Síndrome de Down ou aquele menino é autista’. Isso acaba partindo muito da gente. Então, acho que essa parte da inclusão devia ser realmente mais trabalhada nas escolas, com as crianças, de modo que elas se tornem adultos diferentes. Porque, com os adultos, desfazer preconceitos é muito mais difícil”, disse.
“Eu acho que se a gente começa a trabalhar isso lá na infância, a gente começa a mudar as gerações que estão por aí.”
Ao chegar em casa, Fabrício demonstrou que aquele momento de inclusão significou muito para ele.
“Quando a gente voltou, meu pai estava aqui e perguntou ao Fabrício como tinha sido o churrasco de aniversário. E ele respondeu: ‘Eu joguei futebol! Joguei futebol com meus amigos’. Aquele foi o momento mais especial do dia para ele. Olha que memória bonita”, conta Mariana.
“A interação é muito importante para as crianças com autismo, e essas crianças têm que estar na escola, elas têm que aprender. Elas têm que conviver com crianças neurotípicas e com crianças com outros tipos de deficiência, porque é na diversidade que se faz a riqueza da sociedade”, defende.
E um dia de inclusão espontânea como aquele na partida de futebol vale muito na vida de uma família com criança autista, já que os desafios são muitos e começam com a dificuldade de um diagnóstico preciso, diz Mariana.
Troca-troca de médicos
No caso de Fabrício, o diagnóstico veio pouco depois dos 2 anos de idade. Pais de primeira viagem, Mariana e o marido não tinham ideia do que poderia ser um sinal de autismo.
Os dois moravam em Londres e, quando tiveram o bebê, não conviviam com pais de outras crianças pequenas para poder observar comportamentos típicos da idade.
“Obviamente, existiam alguns aspectos do comportamento do Fabrício que não eram muito esperados de uma criança naquela idade. Ele não batia palminha, não tinha um sorriso social, não fazia contato visual. Só que, para uma mãe de primeira viagem, isso não quer dizer muita coisa”, conta.
Quando se mudaram para Brasília, Fabrício passou a frequentar a creche, e a professora sugeriu que o levassem ao neurologista.
“Foi uma luta para a gente conseguir esse diagnóstico. Fomos a pelo cinco neuropediatras. Eles diziam que cada criança tem seu tempo, que isso era da personalidade dele. Até que fomos a São Paulo para uma consulta com um neurologista especialista em autismo que tinha 50 anos de experiência”, diz.
“Ele bateu o olho e, depois de um exame, já falou: olha, o seu filho está dentro do espectro autista, e é assim que você deve levar sua vida. Então, ele passou uma série de indicações de profissionais. Aí o mundo se abriu, porque nós não tínhamos ninguém diagnosticado como autista na família.”
Nos Estados Unidos, uma a cada 44 crianças de até 8 anos é diagnosticada com autismo, conforme o Centro para Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês).
No Brasil, não há esse levantamento, mas os dados dos Estados Unidos indicam como é alta a incidência do autismo. Para efeito de comparação, no caso da Síndrome de Down, a prevalência é de 1 a cada 700 bebês, segundo o CDC.
Mariana destaca a importância de difundir informações sobre o autismo e de garantir um diagnóstico precoce. Quanto mais cedo uma criança autista recebe terapias para auxiliar no seu desenvolvimento, melhor o prognóstico.
“A gente sabe que, quando se recebe o diagnóstico, existe uma corrida contra o tempo para garantir a estimulação precoce em uma fase crucial de desenvolvimento.”
Rotina de terapias
Quando ficaram sabendo que Fabrício era autista, Mariana e o marido mergulharam em pesquisas para entender o que podiam fazer pelo filho.
Atualmente, o menino segue uma rotina intensa de terapias, que incluem estimulação sensorial, fonoaudiólogo e simulação de ambiente escolar, com exercícios que imitam interações sociais.
“É uma rotina dura. Às segundas, quartas e sextas, ele fica integral na escola. Então ele vai para a escola, almoça lá e na parte da tarde tem um monte de atividades físicas, de artes e também exercícios. Terças e quintas são os dias de terapia”, diz.
“A estimulação sensorial é importante porque a gente sabe que ele percebe as coisas diferente. Às vezes, um som soa muito mais alto do que é. Às vezes, a roupa que ele usa pode incomodar. Então, existe um desequilíbrio sensorial que a terapia ajuda a controlar.”
Depois de ter Fabrício e antes de descobrir que o filho tinha autismo, Mariana engravidou novamente, de Santiago, atualmente com 8 anos. Ele não tem autismo e é um grande companheiro de Fabrício, conta a mãe dos meninos.
“O Santiago defende o irmão e explica para as crianças e adultos o que é o autismo. Ele sabe os comportamentos que deve ignorar para não reforçar, é um superterapeuta e muito amigo do Fabrício.”
Dúvidas sobre o futuro
Para Mariana, o mais difícil é imaginar o que pode acontecer no futuro. Ela se considera privilegiada por conseguir arcar com os custos de terapias para o filho, mas lamenta a falta de políticas públicas de saúde para atender aos milhões de pessoas no espectro autista que não têm condições econômicas para isso.
“O maior medo quando você tem um filho com deficiência é o que vai ser dele quando você não estiver mais aqui. Seria tão bom se houvesse algum tipo de assistência, de programa de saúde, mas isso não existe. Como lidar com isso? Cada família lida de uma maneira”, diz.
Por enquanto, Fabrício tem superado expectativas, com o apoio da família, das terapias e dos amigos. Frequenta a mesma escola do irmão, tem amigos e sabe ler.
“Você tem desde pessoas autistas que são extremamente funcionais, que passam em concurso público, se casam, até um adulto que usa fraldas com 45 anos. Por isso, falamos de um espectro autista”, explica.
“Onde o Fabrício está nesse espectro? Eu não sei. Cada momento do desenvolvimento é uma surpresa. Será que ele vai conseguir falar? Falou. Depois, será que ele vai ser alfabetizado? Ele foi”, conta.
“Agora, a gente está entrando em um outro momento, que é a adolescência. Daqui a pouco ele é pré-adolescente, e aí é outra história, porque vem hormônios e tudo mais. Cada época tem o seu desafio. É assim com toda criança, mas com uma criança com autismo isso é mais acentuado.”
Mariana diz que a maior recompensa em todo esse processo é ver que Fabrício é feliz. E as crianças que espontaneamente incluíram o menino no jogo de futebol naquela tarde de sol eternizaram uma memória de acolhimento e amizade.
“Momentos simples como esse da partida de futebol podem ter um significado enorme. Eles me fazem ver que as crianças são muito mais abertas, empáticas e dispostas a incluir do que a gente imagina. Isso é muito bonito.”
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