- Author, Lucy Sherriff
- Role, BBC Future
É um evento raro e ensurdecedor. Na última vez em que ele aconteceu, o presidente dos Estados Unidos era Thomas Jefferson (1743-1826).
Trilhões de cigarras periódicas devem surgir no meio-oeste e no sudeste dos Estados Unidos na primavera do hemisfério norte (quando será outono no Brasil), depois de passarem mais de uma década embaixo da terra.
Neste ano, duas ninhadas de cigarras voadoras irão emergir do solo ao mesmo tempo. Será a primeira vez em que isso acontece desde 1803.
As cigarras periódicas têm um ciclo de vida incrivelmente longo, diferentemente das suas irmãs não periódicas, que ficam adultas todo verão.
Depois da eclosão, as cigarras periódicas imaturas, ou ninfas, passam 13 ou 17 anos embaixo da terra. Elas se alimentam de raízes, até se debaterem pela terra em direção à superfície e se transformarem em cigarras adultas.
Existem atualmente nos Estados Unidos 12 ninhadas de cigarras de 17 anos e três ninhadas de cigarras de 13 anos.
As ninhadas são grupos de cigarras que emergem da terra nos mesmos anos. Elas são identificadas por números.
Este ano, a ninhada número 13 deve emergir no norte do Estado de Illinois, depois de 17 anos; e a ninhada número 19, com 13 anos, irá surgir em partes do sudeste dos Estados Unidos.
Os dois eventos devem ocorrer no final do mês de abril.
E, para quem estiver no lugar certo, existe uma pequena região onde as duas ninhadas podem surgir ao mesmo tempo.
Pesquisadores da Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos, indicam que a maior probabilidade de contato entre as duas ninhadas fica em pequenos trechos de bosque em volta da cidade de Springfield, no Estado de Illinois.
Evento ‘deliberadamente teatral’
“Este não é um evento comum”, segundo o especialista em cigarras e professor emérito de biologia Gene Kritsky, da Universidade Mount St. Joseph em Ohio, nos Estados Unidos.
O interesse do professor por esses insetos começou 50 anos atrás, quando aprendeu pela primeira vez sobre as cigarras periódicas.
Kritsky percebeu que seria possível usar dados históricos para criar mapas dos seus padrões de distribuição.
Ele se descreve como “historiador frustrado, que também é entomologista”.
Kritsky não é a única pessoa fascinada por esses insetos cantores. Sua paixão inspirou outros americanos a documentar as cigarras.
Meio milhão de vídeos e fotografias já foram carregados no aplicativo de ciência cidadã Cicada Safari (“Safari das Cigarras”, em tradução livre), lançado por Kritsky em 2019.
Algumas espécies de cigarras são conhecidas nos Estados Unidos por nomes populares curiosos. Traduzidos ao português, eles significam “trapaceira dos cactos”, “trituradora-tesoura”, “demônio mascarado” e “bebedora de uísque”.
As diversas espécies do gênero Magicicada (das cigarras periódicas) ganharam “seguidores em todo o mundo”, devido às suas emergências “deliberadamente teatrais” em imensas quantidades, segundo um estudo sobre a ecologia das cigarras periódicas.
Mas nem todas as pessoas gostam das cigarras.
Muitos americanos vestem roupas “anticigarras” e chegam a planejar viagens para fugir dos trilhões de insetos que irão surgir de uma só vez.
Os dias após à eclosão podem ser um tanto confusos, com os moradores varrendo as calçadas para retirar os corpos de insetos acumulados.
E a decomposição desses insetos cria um odor desagradável.
Mas as cigarras não mordem, não picam, nem transmitem doenças. E não podem ser controladas eficientemente com pesticidas.
Ruídos de outro planeta
Os machos das cigarras produzem seus conhecidos estalos vibrando um órgão perto da base das asas, chamado membrana timpânica.
Já as fêmeas produzem um som similar, mais silencioso, com suas asas.
Durante uma emergência em 1998, foram registradas cigarras da ninhada número 19 produzindo cantos de até 75 decibéis.
Este ruído é equivalente a ficar ao lado de um aspirador de pó ou secador de cabelos.
As cigarras emitem uma diversidade de sons dissonantes, que parecem vir de outro planeta. Eles incluem zunidos estridentes, estalos e zumbidos, que se combinam para produzir o coro que costumamos ouvir.
E algo de interessante parece acontecer na presença de espécies diferentes.
A ninhada número 19, também conhecida como a “Grande Ninhada do Sul”, é composta, na verdade, de diversas espécies diferentes de cigarras, incluindo a espécie Magicicada neotredecim.
Normalmente, espécies diferentes em uma mesma ninhada emergem em áreas distintas. Mas, às vezes, elas podem emergir juntas, nas chamadas “zonas de contato”.
Descobriu-se que machos da espécie Magicicada neotredecim reduzem sutilmente a frequência do seu canto quando encontram outra espécie da ninhada número 19, conhecida como Magicicada tredecim.
Para o olhar destreinado, as duas espécies são virtualmente impossíveis de se distinguir. Uma tem o abdômen principalmente laranja e a outra tem o abdômen preto e laranja.
A análise de DNA é a única forma de distinguir com certeza uma espécie da outra.
Banquete para os predadores
As ninhadas de cigarras são grupos complexos de diferentes espécies que emergem em várias partes do país ao mesmo tempo.
O motivo exato que levou a esta sincronização ainda é objeto de grandes debates científicos.
Alguns acreditam que este fenômeno pode se dever a “choques climáticos” – mudanças súbitas e extremas do clima, que podem fazer partes de uma ninhada eclodirem fora do seu cronograma habitual, criando novas ninhadas.
O sinal que indica que uma emergência de cigarras é iminente é o terreno repleto de buracos do tamanho da ponta de um dedo humano.
Pode haver diversas emergências duplas a cada período de 221 anos.
O evento deste ano é o quinto desde o ano 2000 – mas é a combinação das ninhadas que o torna um evento tão raro.
“A Ninhada do Norte de Illinois é considerada bastante densa”, explica o professor emérito Mike Raupp, do Departamento de Entomologia da Universidade de Maryland.
“E a Grande Ninhada do Sul é muito espalhada e atinge altas densidades em muitos locais.”
Por isso, Raupp acredita que, na área de sobreposição em Illinois, poderá haver uma quantidade imensa de cigarras.
Embora possa ser prejudicial para as árvores jovens, a deposição de ovos nos brotos novos das árvores pode ser benéfica para a ecologia da região.
Eles fornecem uma fonte de alimentos para os predadores – neste caso, em enormes quantidades.
“As aves e os pequenos mamíferos terão um banquete que irá causar aumento da reprodução e da sobrevivência da ninhada”, explica Raupp.
“Do ponto de vista evolutivo, pode ser muito interessante.”
Híbridos e novos comportamentos
Existem mais de 3.390 espécies de cigarras em todo o mundo, mas apenas sete das espécies norte-americanas são conhecidamente periódicas.
As demais emergem anualmente.
Embora elas sejam classificadas como distintas, muitas espécies de cigarras periódicas podem ser entrecruzar, produzindo híbridos.
Com isso, nos lugares onde as ninhadas irão se sobrepor este ano, três espécies de cigarras da ninhada número 13 terão a oportunidade de se entrecruzar com quatro espécies de cigarras da ninhada número 19, segundo Mike Raupp.
“Este processo irá produzir híbridos e só as cigarras e a Mãe Natureza sabem qual será o resultado”, ele conta.
Quando emergirem, as cigarras periódicas irão trazer grandes benefícios para o ambiente onde elas vivem.
As ninfas aeram o solo enquanto o perfuram para chegar à superfície, aumentando a infiltração de água e promovendo o crescimento das raízes das plantas.
E, quando elas morrem e se decompõem, elas enriquecem o solo com nutrientes.
Mas, como acontece com a maioria das outras criaturas, as cigarras estão mudando de comportamento.
Gene Kritsky afirma que elas estão emergindo mais cedo do que faziam um século atrás. “E tem aumentado o número de ninhadas emergindo quatro anos antes do tempo”, segundo ele.
A destruição das florestas também ameaça a população de cigarras.
Em 1954, o desmatamento para abrir espaço para a agricultura e a urbanização simplesmente extinguiu a ninhada número 11.
O que mais atrai entomologistas como Raupp e Kritsky é o mistério por trás dos insetos e o que leva a natureza a criar o espetáculo das cigarras.
“Pode haver mais barulho, mais medo para as pessoas que têm fobia de insetos, mas mais diversão para os amantes de insetos como eu”, comemora Raupp.
“E, sim, é um fantástico e interessante evento que não acontece em nenhum outro lugar do planeta.”
Depois deste mês de abril, as ninhadas números 12 e 19 só irão emergir juntas de novo em 2245. Fica a pergunta: qual será o mundo que elas irão encontrar?
Fonte: BBC
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