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Clelia Marchi (1912-2006) com seu lençol, em foto de 1992 (Foto Livi)

Em 1986, Clelia Marchi saiu de casa com a história da sua vida debaixo do braço.

Ela passou sua vida no vale do baixo Pó, no norte da Itália. Lá, ela havia nascido 74 anos antes e conheceu seu esposo Anteo quando tinha 14 anos de idade. Com ele, teve oito filhos, dos quais perdeu quatro.

Ela frequentou sozinha os dois primeiros anos da escola primária, mas apenas no inverno. No verão, ela trabalhava no campo, como continuaria a fazer com Anteo em uma plantação de milho.

Depois de passar por duas guerras mundiais e ter uma vida de miséria, dores e trabalho duro, quando a ameaça da pobreza já não era tão grande, as crianças já haviam crescido e a idade prometia a chegada de um pouco de serenidade, veio a tragédia: seu amado esposo morreu atropelado por um automóvel.

Sua ausência fez com que ela se sentisse “uma videira sem árvore”, como escreveria mais tarde. Escrever foi tudo o que aliviou sua alma quando ficou sozinha, na sua cama matrimonial, sem poder fechar os olhos.

“Eu me sinto vazia, encerrada, inútil. Passo os dias chorando. Nunca havia pensado que, depois de 50 anos de vida matrimonial, nós nos separaríamos desta forma; escrevo toda a minha tristeza à noite, pois durmo pouco, como um ser humano dolorido”, escreveu ela.

E escreveu como, às vezes, as pessoas choram – desenfreadamente.

Ela começou a preencher todos os papéis, folhetos e cartolinas que encontrou em casa com palavras e fotografias. Eles eram tecidos com lã colorida para formar livretos.

Ela usou 15 kg de papel, até que ficou sem ter mais onde escrever.

Foi aí que ela se lembrou da sua professora da escola, que havia contado sobre uma múmia vendada com um pedaço de linho com um texto em idioma etrusco. “Pensei que, se eles fizeram isso, eu também poderia fazer o mesmo”, contaria ela mais tarde.

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O Liber Linteus Zagrabiensis, do século 1° a.C., é o mais longo texto conhecido em idioma etrusco

Inspirada, Clelia Marchi sabia que tinha um tecido ideal para registrar as recordações da sua vida com Anteo – aquele tecido que sempre os acompanhou, toda vez que eles acordavam: seu lençol nupcial.

Ela explicaria que, já que não podia mais compartilhar o lençol com ele, ela o usaria para contar o seu passado.

Clelia Marchi retirou o lençol do armário onde estava guardado desde a morte do marido. E, nos mais de dois metros daquela peculiar página em branco, começou a descrever todas as suas recordações: “Querida pessoa, preserve este lençol onde está um pedacinho da minha vida; e do meu esposo; Clelia Marchi (72) escreveu a história das pessoas da sua terra, preenchendo um lençol com escritos, desde o trabalho na agricultura até os seus afetos.”

E, noite após noite, por dois anos, Clelia foi tecendo uma história de pobreza, dignidade e amor, linha por linha.

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Clelia Marchi em 1992 (Servizio Gente)

“As coisas terminam, mas não são esquecidas…

Esta semana, nossa família perdeu dois filhos…

Para sobreviver quando você tem quatro filhos, é preciso fazer bem as suas contas. Com 10 liras para alimentos, compramos 7 onças [200 g] de manteiga de porco, 7 onças de azeite, um limão, 7 onças de açúcar, algumas verduras…

Foi então que começou a última guerra e, novamente, eu estava grávida…

O valor não é algo que você pode comprar. Ou você tem, ou você não tem…”

Quando o lençol ficou todo coberto de recordações e reflexões, escritos parte em prosa, parte em poesia e parte em dialeto, ela o enfeitou. Costurou laços cor-de-rosa, uma imagem sagrada, uma do seu marido e outra dela própria. E deu um título: Gnanca na busia (“Nem sequer uma mentira”).

Clelia Marchi havia usado o lençol que ela compartilhava com Anteo para contar ao mundo a íntima verdade sobre o amor que eles viveram.

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As longas linhas do diário são numeradas para não perder o fio da história

Ela levou o lençol para o prefeito local. Maravilhado com a obra, ele achou que o melhor para sua preservação era levá-la para um lugar na Itália que tinha mais memórias do que habitantes – embora as memórias tivessem sido apagadas em certo momento, no século 20: Pieve Santo Stefano, na Toscana.

Lugar sem memória

Pieve Santo Stefano perdeu suas memórias na Segunda Guerra Mundial. A região foi ocupada pelo exército alemão até agosto de 1944, quando as forças aliadas começaram a se aproximar.

Os nazistas reuniram os moradores na praça principal, carregaram-nos em caminhões e os levaram para o norte. Em seguida, voltaram à cidade para transformar o que antes era uma bela localidade, repleta de edificações centenárias, em uma barricada para deter o avanço das forças aliadas.

Por muitos meses, o local ficou desabitado. Até que, pouco a pouco, os moradores deslocados foram retornando.

E, à medida que chegavam, eles percebiam que só haviam sobrado ruínas… e recordações.

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O centro histórico de Pieve Santo Stefano foi reduzido a escombros pelo exército alemão durante a Segunda Guerra Mundial (foto de 1944 por Lidio Livi – Arquivo Fotográfico Livi)

Mais de 90% de Pieve Santo Stefano precisaram ser reconstruídos. Ela se tornou uma cidade moderna de concreto, com pouco mais de três mil habitantes.

Décadas depois, o renomado jornalista italiano Saverio Tutino (1923-2011) – antigo membro da resistência italiana na Segunda Guerra Mundial – andava pela região carregando um sonho e procurando um lugar onde poderia realizá-lo.

Ele acreditava que era importante recolher histórias das pessoas comuns – aquelas que, normalmente, não passam para a História, evaporando como a água da chuva quando sai o Sol. Para isso, ele escolheu aquele lugar que, na época, era a menos atraente das cidades da região.

Tutino afirmou ao prefeito que Pieve era o local ideal, pois eles poderiam criar algo que devolvesse o que a cidade havia perdido.

E foi assim que, 40 anos depois do final da guerra, foi criado, na cidade sem memória e sem história, um local para guardar a memória e a história de todos.

A Cidade do Diário

Desde 1984, a organização italiana que hoje se chama Fundação Arquivo do Diário Nacional vem recolhendo e catalogando diários, memórias e cartas de pessoas de todo o país e de todas as épocas.

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Pieve Santo Stefano é conhecida atualmente como a Cidade do Diário (foto de Luigi Burroni)

O diário mais antigo data de 1591 – 25 frágeis páginas com o testemunho da esposa de um sapateiro veneziano, completo com as fofocas da cidade, incluindo um adultério e um assassinato.

Este é um dentre milhares: diários de fascistas arquivados ao lado de soldados da resistência; de condessas ao lado de camponeses; o diário de viagem de um adolescente ao lado das cartas de um jovem nas trincheiras… verdadeiros murmúrios no papel. Para Tutino, eles eram parte do seu ideal de democracia.

São vidas que, às vezes, chegam em diários encadernados com couro, folhas datilografadas ou pedaços de papel rabiscados apressadamente, que foram trazidos pelos seus protagonistas, herdeiros ou por quem os encontrasse nos mercados de pulgas ou esquecidos nos áticos.

Todas as histórias estão à disposição do público, com poucas exceções. Uma mulher de Foligno, na região italiana da Úmbria, insistiu para que seu diário fosse acessível a todos, exceto dois parentes desprezados, enquanto outro cronista pediu que seu diário permanecesse lacrado até 2072.

‘Comedores de histórias’

Todos estes segredos íntimos e verdades sem filtro que normalmente ficam guardados são lidos pelos 15 “comedores de histórias”, como são carinhosamente chamados os membros do Comitê de Leitura, devido à quantidade de recordações que eles já absorveram.

De avós e cientistas até historiadores e engenheiros, os “comedores” se reúnem depois de lerem os escritos para indicar os nomeados ao Prêmio Pieve – textos selecionados que possuem um tom de autenticidade inconfundível.

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Alguns dos milhares de diários do arquivo italiano incluem fotografias, desenhos ou recordações, como esta flor seca

Este prêmio fez de Claudio Foschini um dos cronistas mais conhecidos da Itália, mesmo na sua situação:

“Nasci ao meio-dia de 30 de julho de 1949 (…) Era o quarto filho de uma família maravilhosa. Você conseguia literalmente tocar o amor dominante.”

Quando suas memórias conquistaram o prêmio, o autor não conseguiu recebê-lo pessoalmente porque estava preso: era ladrão de bancos.

“Meu amigo tirou um saco grande para comprovar se tudo estava pronto. Quatro pares de luvas, três balaclavas, quatro pistolas e uma metralhadora. Peguei uma balaclava. Experimentei e ficou perfeita. Ao olhar no espelho, com uma pistola na mão, meu reflexo até a mim dava medo.”

Ele acreditou ter encontrado a redenção ao escrever enquanto estava na prisão. Mas, depois de libertado, ele planejou um último assalto para ter com o que começar a nova vida.

Claudio Foschini foi então morto a tiros por um segurança em frente a um armazém na periferia de Roma.

Sua vida foi resumida em poucas linhas nos jornais locais no dia seguinte, como apenas mais um delinquente que teve um final trágico. Mas sua história está no arquivo, escrita à mão em 11 livretos quadrados.

O museu pequeno

“Olho ao meu redor e vejo salas e corredores repletos de quilos e quilos de recordações, recuperadas em milhões de páginas, reunidas em milhares de diários, cartas e memórias, enfim, uma festa de recordações, um hino duradouro à memória […].

São a persistente tentativa de resistir ao esquecimento, em uma batalha desigual entre alguns poucos milhares de sobreviventes contra milhões de existências das quais nunca saberemos nada.”

O autor é Mario Perrotta no seu livro O País dos Diários. O livro inspirou a criação, em 2013, do Pequeno Museu do Diário, onde o arquivo italiano exibe algumas das obras mais destacadas do seu acervo.

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Criado em 2013, o Pequeno Museu do Diário reúne parte do acervo do arquivo italiano

Lá estão guardados, por exemplo, os pensamentos de Orlando Orlandi Posti, de 18 anos, sobre sua experiência e o amor pela sua namorada, rabiscados em 39 pedaços de papel durante suas últimas seis semanas de vida, quando foi aprisionado pelos nazistas.

Posti foi um dos 335 italianos que morreram em março de 1944 no massacre das Fossas Ardeatinas, em Roma, cometido em represália pelo assassinato de 33 policiais alemães nas mãos da resistência italiana. Mas, antes, conseguiu enviar de contrabando seus escritos, enrolados no colarinho das camisas que iam para lavar.

Outro ato de valentia foi registrado no diário íntimo de uma cidadã italiana chamada Luisa, que recebeu o título Diário da Resistência de uma Dona de Casa:

“21 de julho de 1994.

Começa de novo, às 11 da noite, depois de um jantar tranquilo e um filme. De repente, as mesmas acusações. Ele se aproxima de mim em direção à minha garganta, dizendo-me para me calar, agarra uma cadeira e aponta suas pernas para mim.

Agarrei uma faca de cortar frutas da mesa para mostrar que estava preparada para me defender, esperando que ele a abaixasse. Mas ele continua me insultando e se move em direção ao corredor.

Fechei a porta, achando que passaria a noite na cozinha, mas ele tratou de quebrá-la. Eu estava apavorada. Depois, uma espécie de anjo indicou a janela e pulei com a toalha. Tentei correr desesperadamente em direção ao campo, mas ele estava correndo rapidamente atrás de mim, eu nas minhas sapatilhas.

Consegui ver a mim mesma, perdida e sem poder me afastar daquele monstro. Gritei com toda a minha voz. De repente, um milagre. Ele desapareceu o mais rápido que pôde.

É uma experiência muito peculiar esperar a luz do dia na neve. Olhei em direção à minha casa e me senti feliz por estar no lado de fora, com os pés molhados, sabendo que poderia morrer de frio. Mas seria mais digno do que morrer em um momento de loucura com meu marido.”

É no Pequeno Museu do Diário que está guardado o lençol de Clelia Marchi.

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O lençol de Clelia Marchi ocupa lugar de destaque no Pequeno Museu do Diário

Quando o Arquivo o recebeu, reconheceu não só uma obra bela e única, mas um documento valioso como retrato da Itália rural durante um século diferente de todos os outros. E outorgou a ela um prêmio especial.

Cinco anos depois, o testamento de sua vida de penúria, abnegação e amor foi publicado na forma de livro, com o título Gnanca na Busia, e foi um sucesso de vendas.

Clelia morreu em casa no ano de 2006, com 93 anos de idade.

Mas, graças à escrita, que foi o bálsamo para sua solidão, fica sua história, que poderia ter facilmente se perdido para sempre, como tantas outras.