• John Nassoori
  • Da BBC Sport

Crédito, Família Carvalhaes/Valvênio Martins

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Os métodos de João Carvalhaes nunca haviam sido aplicados antes ao futebol.

Na Copa de 1958, um jogador brasileiro, com 17 anos de idade, surpreendeu o mundo com seu futebol.

Em quatro jogos, ele marcou seis gols – três deles, na semifinal. E dois na final, com o Brasil conquistando pela primeira vez o tão almejado título mundial.

Pelé chegou à Suécia para a Copa do Mundo como um novato e saiu como um ídolo imortal do esporte. Mas um brasileiro defendeu que ele não jogasse o torneio: o professor João Carvalhaes, psicólogo da equipe.

Em absoluto contraste com seus colegas de hoje em dia (cuja atuação costuma limitar-se a apoiar o desempenho e a saúde mental dos jogadores), Carvalhaes exercia influência concreta sobre a escalação da seleção. E os resultados de Pelé nos testes psicotécnicos aplicados por Carvalhaes geraram sua orientação um tanto duvidosa, que foi ignorada na ocasião.

Pelé comentou posteriormente os métodos do psicólogo, dizendo que “ou isso era algo bem à frente do seu tempo no futebol ou não passava de invencionice, talvez as duas coisas”.

Mas Carvalhaes sem dúvida tem o seu lugar na história dos pioneiros do esporte. Ele introduziu laboratórios de psicologia no futebol brasileiro quase 30 anos antes da adoção desse conceito na Europa.

O trauma do Brasil nas Copas

Na verdade, o Brasil dos anos 1950 queria toda a ajuda que pudesse conseguir. Afinal, as campanhas da seleção brasileira nas Copas de 1950 e 1954 haviam sido angustiantes.

A derrota na final de 1950 para o Uruguai no Maracanã abalou o país. E o torneio de 1954, na Suíça, terminou em vergonha para a seleção, reduzida a nove jogadores na derrota por 4 a 2 para a Hungria nas quartas-de-final – um jogo marcado pela violência que ficou conhecido como “a Batalha de Berna”.

Enquanto a seleção tentava superar o trauma emocional, um psicólogo pouco conhecido estava ingressando no futebol nacional. João Carvalhaes foi contratado pelo São Paulo em 1957, depois de trabalhar na escola de árbitros da Federação Paulista de Futebol (FPF).

O interesse do clube foi estimulado pelo laboratório de psicologia que ele havia criado na FPF. Estruturas similares só seriam vistas na Europa no final de 1980, com a “Sala do Pensamento” da equipe do Milan, na Itália.

Esse laboratório foi instalado na sede da Federação e realizava 10 testes para examinar funções cognitivas, como a visão estereoscópica (percepção da profundidade). Carvalhaes usava os testes para ajudar a ressaltar as técnicas que os alunos do curso de arbitragem precisariam desenvolver para poder apitar jogos profissionais.

Carvalhaes definiu padrões para cada variável examinada e os candidatos com notas abaixo de um limite específico eram considerados incapazes de apitar. No “teste de tempo de reação”, por exemplo, os candidatos que tivessem resposta de mais de 50 centésimos de segundo eram reprovados.

Além de psicólogo, Carvalhaes era jornalista e trabalhava como comentarista especializado em pugilismo, tendo ficado conhecido como João do Ringue. Mas, ao contrário do que poderia indicar seu pseudônimo, a conduta profissional de Carvalhaes era de reflexão, segundo seu antigo colega, o também psicólogo José Glauco Bardella.

“Você chegava no campo e via todo mundo naquela agitação e o Carvalhaes quieto num canto, com a mão no queixo ou com as duas mãos no bolso, só observando”, disse Bardella a um documentário sobre o trabalho de Carvalhaes produzido pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo em 2000.

Ele podia ficar só observando, mas era muito mais que um mero espectador. Quando o São Paulo foi campeão paulista em 1957, depois de quatro anos sem conseguir o título, Carvalhaes foi aclamado pela sua participação na escalação do time, que acabou sendo fundamental para a conquista são-paulina.

O diretor de futebol do clube, Manoel Raimundo Paes de Almeida, afirmou que a decisão de substituir o meio-campista titular Ademar pelo reserva Sarará – que brilhou no jogo final contra o Corinthians – foi tomada com base nas preocupações de Carvalhaes com o estado psicológico de Ademar.

Um ano depois, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD), que dirigia o futebol brasileiro na época, convocou o psicólogo. O então vice-presidente da entidade nacional, Paulo Machado de Carvalho, foi encarregado da organização para a Copa do Mundo da Suécia e convidou Carvalhaes a integrar a comissão técnica da seleção. A oferta era irrecusável.

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Pelé chora abraçado ao goleiro Gilmar durante a comemoração da vitória sobre a Suécia por 5 a 2, na final da Copa do Mundo de 1958.

O trabalho para a Copa

A preparação da seleção brasileira já havia começado e Carvalhaes apressou-se para implementar os métodos que havia empregado no São Paulo. Durante a concentração da seleção antes da Copa, em Poços de Caldas (MG), ele realizou o chamado teste Alfa do Exército, adaptado de um programa americano idealizado para determinar a capacidade intelectual dos soldados na Primeira Guerra Mundial.

A forma alfa do teste durava 50 minutos e determinava o vocabulário e a capacidade aritmética dos jogadores, a fim de atribuir uma “avaliação da inteligência”. Os considerados menos capazes faziam a forma beta, que incluía exercícios como preencher desenhos incompletos e esboçar trajetos em labirintos bidimensionais.

Os conceitos por trás desses testes podem parecer ultrapassados com relação à teoria psicológica contemporânea, mas, naquela época, eles forçavam os participantes a pensar, ainda mais em um esporte que havia presenciado pouca ou nenhuma intervenção baseada na psicologia.

Carvalhaes apresentou suas conclusões à comissão técnica da CBD. Os resultados acabaram vazando para a imprensa, para grande contrariedade do psicólogo. Em carta para Paulo Machado de Carvalho, Carvalhaes afirmou que os documentos haviam sido roubados da sua bagagem.

Esse vazamento gerou insinuações de que Garrincha, astro do time que teve maus resultados no teste, não conseguiria jogar a Copa do Mundo. Carvalhaes ficou furioso. O impacto negativo do público prejudicou seu trabalho nos bastidores.

Mas a tempestade durou pouco. Depois que Garrincha foi confirmado na seleção brasileira, as especulações da imprensa acabaram e Carvalhaes viajou para a Suécia com o restante da comissão técnica.

Ele continuou a trabalhar com os jogadores, usando testes de psicodiagnóstico miocinético (PMK) para analisar características individuais e definir seu trabalho de acordo com os resultados. Esses testes – nos quais os jogadores recebiam uma folha de papel em branco para desenhar o que quisessem – eram baseados na teoria de que movimentos musculares expressivos podem ajudar a revelar o temperamento de um indivíduo.

Carvalhaes estava novamente aplicando técnicas que nunca haviam sido empregadas nesse nível do jogo. E, outra vez, ele enfrentou problemas.

Crédito, Família Carvalhaes/Valvênio Martins

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Carvalhaes se aposentou em 1974 e morreu dois anos depois

Reações controversas

No livro Pelé – A Autobiografia, Pelé conta a seguinte passagem: “Como parte dos nossos preparativos, o psicólogo da equipe, o Dr. João Carvalhaes, tinha feito testes com todos os jogadores. Precisávamos fazer desenhos de pessoas e responder perguntas – o que, em tese, ajudaria o Dr. João a fazer avaliações sobre se devíamos ser escalados ou não. […] Quanto a mim, o psicólogo concluiu que eu não deveria ser escalado: ‘O Pelé é obviamente infantil. Falta a ele o espírito de luta necessário’.”

Pelé prossegue: “Também deu um parecer contra o Garrincha, que não era considerado responsável o suficiente. Felizmente, para mim e para o Garrincha, o [Vicente] Feola [técnico da seleção brasileira na Copa de 1958] sempre se deixava guiar mais por seus instintos do que pelos conselhos dos especialistas.”

“Ele se limitou a balançar a cabeça gravemente, dizendo: ‘Você pode estar certo. O problema é que você não entende nada de futebol. Se o joelho do Pelé está bom, ele joga!'”, concluiu o Rei.

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O trabalho de Carvalhaes tinha uma ‘clarividência que pode ser encontrada nas raízes da ciência esportiva atual’

O trabalho de Carvalhaes tinha uma “clarividência que pode ser encontrada nas raízes da ciência esportiva atual”.

Mas outros jogadores tinham impressão mais positiva. O goleiro Gilmar, que também foi entrevistado para o documentário de 2000 sobre o trabalho de Carvalhaes, afirmou que ele deu aos jogadores a chance de usar ideias “que melhorassem o nosso desempenho”. E acrescentou: “nós só viemos a saber depois [da Copa] que isso funcionava”.

O lateral Nilton Santos disse que a equipe aprendeu a “entrar em campo sorrindo” e reportagens da imprensa brasileira após a conquista da Copa do Mundo falam em um consenso sobre a importância do papel de Carvalhaes.

Mas, infelizmente, a CBD mostrou-se menos disposta a enaltecê-lo e essa postura teve um custo emocional para alguém reflexivo como Carvalhaes. “Ele ficou muito magoado porque Paulo Machado de Carvalho fez comentários inadequados sobre o trabalho dele e isso o magoou bastante”, segundo José Glauco Bardella.

Mas ele estava começando a chamar atenção. Bardella conta que Carvalhaes recebeu pedidos de entrevista de revistas da Espanha, França e Alemanha – e a americana Sports Illustrated também ressaltou sua colaboração para a seleção brasileira.

O reconhecimento internacional ajudou a diminuir a frustração de Carvalhaes. E talvez tenha estabelecido o caminho para que profissionais importantes do futuro, como Bruno Demichelis, renomado ex-cientista esportivo do Milan, fizessem avançar o uso da psicologia no futebol de elite.

O legado

Carvalhaes morreu em 1976, aos 58 anos de idade, apenas dois anos depois da sua aposentadoria. Ele havia voltado a trabalhar no São Paulo após a Copa do Mundo da Suécia, deixando seu cargo na seleção nacional para retomar o trabalho no clube que ajudou a projetar seu nome.

De volta à relativa proteção do futebol nacional, Carvalhaes conseguiu introduzir novas ideias, como sessões de aconselhamento individuais para os jogadores, em complemento aos testes cognitivos que o tornaram conhecido.

Ele trabalhou no São Paulo até 1974, exceto por um breve retorno ao pugilismo em 1963, quando ofereceu apoio psicológico aos lutadores brasileiros que competiram nos Jogos Pan-Americanos daquele ano, em São Paulo.

O americano Coleman Griffith (1893-1966) é reconhecido mundialmente como o primeiro psicólogo esportivo, mas seu trabalho foi mais restrito ao futebol americano. Carvalhaes implementou métodos nunca antes vistos no futebol profissional – e com grande sucesso.

Se ele ajudou a formar as bases da psicologia esportiva contemporânea, a CBD – talvez por força da disposição em considerar todas as opções possíveis para ganhar a Copa do Mundo – também ajudou. Se a entidade não tivesse corrido o risco de convocar um psicólogo que só havia trabalhado para o São Paulo uma única temporada antes de ser contratado para a seleção nacional, o trabalho de Carvalhaes provavelmente não teria sido tão reconhecido.

Mas, até hoje, oferecer psicólogos nos campos de treinamento – exceto nas categorias de base, já que muitos clubes ingleses, por exemplo, são obrigados a fornecer apoio psicológico a esses jogadores mais jovens – permanece longe de ser o padrão.

“A psicologia é aceita nos clubes de futebol em graus variados”, segundo o treinador e empresário Simon Clifford, que chefiou o departamento de ciência esportiva do clube inglês Southampton no início dos anos 2000.

“Alguns [clubes] terão psicólogos trabalhando atentamente com seus titulares, enquanto outros terão gerentes que assumem o papel de psicólogo principal e não querem que os jogadores consultem psicólogos profissionais diariamente, a menos que haja um problema”, segundo ele. “É como quando os clubes começaram a adotar o condicionamento físico e a musculação. Levou algum tempo para que os profissionais dessas áreas ganhassem a confiança das equipes principais. E, na psicologia, ainda estamos no começo.”

Clifford está confiante que “chegará um tempo” em que os psicólogos e as equipes de treinadores trabalharão juntos em harmonia, em parte devido à influência do estado mental dos jogadores sobre o seu desempenho.

Ele acredita que, ainda que parte do trabalho de Carvalhaes possa ser considerada “incipiente pelos padrões atuais”, também havia nele uma “clarividência que pode ser encontrada nas raízes da ciência esportiva atual”. E acrescenta: “o papel desempenhado pela psicologia no futebol de elite é enorme”.

“Como Bill Beswick [ex-psicólogo da seleção nacional inglesa] disse certa vez: ‘A mente é o atleta. O corpo é simplesmente o meio’.”

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