- Atahualpa Amerise
- BBC News Mundo
As relações entre o governo de Daniel Ortega e a cúpula da Igreja Católica na Nicarágua vivem um momento delicado.
O último capítulo foi a prisão, na sexta-feira passada (19/08), do bispo Rolando Álvarez, a última voz abertamente crítica ao governo do país centro-americano, que atualmente está em prisão domiciliar.
A Polícia Nacional da Nicarágua acusou em um comunicado o bispo de Matagalpa, de 55 anos, de “organizar grupos violentos, incitando-os a realizar atos de ódio contra a população, causando um clima de ansiedade e desordem, perturbando a paz e a harmonia da comunidade, com o objetivo de desestabilizar o Estado da Nicarágua e atacar as autoridades constitucionais”, acusações que o religioso nega.
Álvarez era conhecido por denunciar violações de direitos humanos por parte do governo Ortega, cuja guinada autoritária tem sido alvo de críticas de instituições e organizações internacionais nos últimos anos.
Outro bispo crítico do governo, Silvio Báez, se exilou em 2019 depois de receber várias ameaças de morte.
A BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, tentou obter a opinião do governo nicaraguense, mas não obteve resposta.
O que acontece na Nicarágua
Após um primeiro mandato presidencial em meados da década de 1980, Ortega retomou o poder em 2007 e, desde 2017, sua esposa, Rosario Murillo, o acompanha como vice-presidente.
As últimas eleições de novembro de 2021, que Ortega venceu com 75% dos votos, foram realizadas com sete candidatos da oposição presos e alegações de fraude por parte de organizações internacionais.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) documentou torturas e outras violações de direitos humanos cometidas pelas autoridades nicaraguenses nos últimos quatro anos, bem como o confinamento de mais de 190 presos políticos, alguns deles em condições desumanas.
Ortega, apoiado pelos governos de Cuba e Venezuela, descreveu essas acusações como “invenções” em uma campanha para “dar má fama à Nicarágua perante organizações internacionais”.
Ele também acusou os bispos do país de “tomar partido” e estarem comprometidos com os “golpistas”, além de terem promovido a criação de “seitas satânicas” .
A relação entre Ortega e a Igreja
Nesse contexto, a relação entre o governo e a alta hierarquia católica no país encontra-se em um ponto difícil.
“Ortega atingiu a Conferência Episcopal da Nicarágua em seus dois principais nomes: o bispo estrategista, Dom Báez, foi exilado. E o bispo que organiza, Álvarez, está na prisão”, disse o sociólogo e analista político nicaraguense Oscar René Vargas à BBC.
Além disso, no último um ano e meio, as autoridades expulsaram do país o núncio papal (representante no país da Santa Sé) e 18 freiras da ordem Missionárias da Caridade, fundada por Madre Teresa de Calcutá, prenderam sete padres e fecharam várias estações de rádio católicas.
A Igreja Católica recebeu quase 200 ataques entre abril de 2018 e maio de 2022 na Nicarágua, segundo um relatório da ONG Observatorio Pro Transparencia y Anticorrupción.
O cientista político Manuel Orozco, diretor do programa Migração, Remessas e Desenvolvimento do Diálogo Interamericano, acredita que Ortega “sempre foi um indivíduo anticlerical, como ficou demonstrado em sua perseguição à Igreja Católica nos anos 1980 durante a revolução sandinista”.
“Como qualquer líder autocrático, tudo que vai contra o culto de sua pessoa é uma ameaça. E a fé religiosa na Nicarágua prevalece sobre qualquer outro tipo de culto.”
Apesar de ter perdido o monopólio da fé contra os ascendentes grupos evangélicos, a Igreja Católica continua sendo a instituição mais influente neste país caracterizado pela acentuada devoção religiosa de seus 6,6 milhões de habitantes.
Assim, destaca o cientista político, na primeira década deste século, Ortega firmou uma “aliança tática” com as autoridades católicas do país, cuja influência sobre a sociedade nicaraguense o ajudaria – ou pelo menos não o impediria – de conquistar votos nas eleições de 2007 e as posteriores.
Os protestos de abril de 2018 na Nicarágua marcaram um ponto de virada nas relações entre o governo e a Igreja Católica.
Uma controversa reforma do sistema previdenciário levou a grandes protestos de rua, que o governo considerou parte de uma tentativa de golpe.
A repressão das forças de segurança e milícias relacionadas ao sandinismo deixou 200 mortos reconhecidos pelo governo, 328 contabilizados pela CIDH e mais de 650, segundo organizações civis.
Também houve cerca de 2.000 feridos e 1.600 pessoas presas, segundo a CIDH.
A Igreja Católica da Nicarágua apoiou os manifestantes, que se refugiaram na catedral da capital Manágua da resposta violenta das forças de segurança.
Sua autoridade máxima, o cardeal Leopoldo Brenes, surgiu como mediador do diálogo fracassado entre as partes e denunciou fortemente a perseguição de Ortega à Igreja, que o colocou na mira das autoridades.
O presidente endureceu sua retórica contra os eclesiásticos, a quem chamou em várias ocasiões de “golpistas” ou “terroristas”.
Três anos depois, porém, há quem acuse o cardeal de ter suavizado sua postura em relação ao governo. Ele deixou de condenar abertamente acontecimentos recentes como a prisão do bispo Álvarez na semana passada.
No início de agosto, Brenes exigiu que as autoridades “cessem todos os atos de violência contra a Igreja, os padres e os fiéis”, embora tenha observado: “Não somos inimigos do governo”.
“A Igreja está dividida sobre qual atitude tomar em relação ao regime, e o cardeal desempenha esse papel, o de manter a relação”, diz o analista Oscar René Vargas.
Vargas afirma que o topo da Igreja Católica na Nicarágua está dividido e parte dele opta por cuidar dos laços com o governo em um momento em que os evangélicos ganham espaços protegidos pelo presidente.
“A maioria das denominações protestantes, como no Brasil, é a favor do presidente Jair Bolsonaro, aqui apoiam Ortega. Para competir com essa realidade, vários bispos do país querem manter uma relação próxima com Ortega”, afirma.
Ele também observa que “a história da Igreja Católica na Nicarágua foi de proximidade com o poder “.
A Igreja manteve uma estreita relação com a família Somoza, que exerceu o poder autoritário na Nicarágua entre 1936 e 1979. Em geral cooperou com o sandinismo nas décadas seguintes, apesar de algumas divisões internas entre setores conservadores e esquerdistas mais afinados com a Teologia da Libertação.
O que diz o Papa
O Vaticano e o Papa Francisco mantiveram uma controversa atitude de reserva sobre as alegações de perseguição à Igreja Católica na Nicarágua.
Finalmente o pontífice se pronunciou neste domingo (21/08).
Ele pediu a Deus por intercessão de “la Purísima” – Imaculada Conceição de Maria, a padroeira da Nicarágua – e um “diálogo aberto e sincero” para “encontrar as bases de uma convivência respeitosa e pacífica”.
Suas declarações foram decepcionantes para quem denuncia a repressão.
“Ele não mencionou os ataques à Igreja ou a prisão do bispo Álvarez ou dos 11 padres presos. Parece que ele está se referindo a outro país e não ao nosso”, lamenta Vargas.
O cientista político Manuel Orozco também considera insuficiente a intervenção do Vaticano no conflito com o governo nicaraguense.
“O desânimo de muitos católicos na Nicarágua e na América Latina devido ao silêncio do Papa sobre Cuba e Nicarágua está lhe custando a perda de fiéis, o que é uma tática bastante errada em um momento em que a Igreja Católica tenta reconquistar seguidores em todo o mundo.”
Orozco afirma que a atitude contida do Vaticano e do cardeal Brenes colocou os cidadãos nicaraguenses “entre a cruz e a espada”.
“Por um lado reconhecem a injustiça contra um regime opressor e os maus tratos à Igreja, mas por outro são muito fiéis à hierarquia católica . Estão algemados por sua lealdade ao cardeal Brenes”, considera.
“A questão é quanto tempo durará essa tolerância diante das injustiças que existem na Nicarágua”, diz.
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