O papa emérito Bento 16, que morreu neste sábado (31/12) aos 95 anos, abalou a Igreja Católica em 2013 ao se tornar o primeiro pontífice a renunciar desde a Idade Média.
Mas além desse fato histórico, seu papado também foi marcado pelos escândalos associados a milhares de casos de pedofilia dentro da Igreja Católica.
Muitas delas remontam a décadas, mas foi durante seu pontificado, entre 2005 e 2013, que o Vaticano teve que enfrentar e assumir a responsabilidade pelas graves denúncias de abuso sexual que eclodiram em diferentes partes do planeta.
Os casos pareciam ter o mesmo modus operandi: histórias de padres que abusaram de menores e cujas denúncias foram enterradas pela Igreja com a ajuda de advogados, políticos e pessoas próximas ao poder.
Entre esses escândalos, um que fez parte do papado de Bento desde o primeiro dia foi o do padre mexicano Marcial Maciel, fundador da polêmica congregação dos Legionários de Cristo.
Maciel a havia criado na década de 1940 com o propósito declarado de aproximar o ministério da Igreja dos mais jovens, mas a congregação acabou sendo o espaço onde cerca de 175 menores foram abusados sexualmente ao longo de quatro décadas, segundo relatos de crimes que foram inclusive reconhecidos pelas próprias autoridades eclesiásticas.
Em 2005, quando Ratzinger se tornou Bento 16, a instituição estava presente em cerca de 10 países e cerca de 65.000 membros, especialmente na América Latina. Maciel era considerado um protegido de seu predecessor, o papa João Paulo 2º.
E uma das primeiras ações importantes do pontificado de Bento 16 foi ordenar a aposentadoria de Maciel das atividades sacerdotais, em 2006.
“Muitos defensores de Ratzinger dizem com razão que a pedofilia foi a marca registrada de seu pontificado”, diz Bernardo Barranco, sociólogo mexicano e especialista em questões da Igreja, autor do artigo “A pederastia e os pecados de Bento 16”.
Segundo Barranco, os defensores do papa emérito apontam que foi ele quem impôs a chamada “tolerância zero”: reforçou as sanções, modificou cânones e emitiu novas leis que penalizam os abusos no âmbito da Igreja.
Mas seus críticos não consideram que ele tenha feito o suficiente.
“Apesar de tudo, não foi grave. No caso dramático do mexicano Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, tendo plena evidência de seu comportamento desenfreado, apenas impôs aposentadoria, levando ‘uma vida de oração e penitência’, que claro que não cumpriu. Ali Bento 16 deveria ter procedido com os julgamentos canônicos”, acrescenta Barranco.
Maciel morreu em 2008 após anos de escândalos sobre acusações de pedofilia, além da paternidade de pelo menos 4 filhos com mulheres diferentes.
A verdade, segundo Barranco e outros especialistas em questões eclesiásticas, é que esse escândalo foi um dos mais graves que o Papa teve de enfrentar na América Latina e o que mais custou para ele seguir em frente.
‘Fez, fez e fez e não pôde ir mais longe’
Em 1941, Maciel era seminarista e decidiu fundar uma nova congregação no México chamada Missionários do Sagrado Coração e da Nossa Senhora das Dores, em tradução para o português.
Em 1965, ele decidiu renomeá-la como Legionários de Cristo.
Essa congregação se tornaria uma das mais poderosas da América Latina e Maciel uma figura importante dentro da Igreja Católica mexicana.
De fato, fez parte da comitiva que recebeu João Paulo 2º em suas visitas ao México em 1979 e 1993 (João Paulo 2º visitou o México cinco vezes).
Os Legionários de Cristo também estão presentes no Brasil, em cidades como Porto Alegre, Joinville, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília.
O primeiro contato oficial do futuro Bento 16 com Maciel e os Legionários de Cristo seria em 1997, quando o então cardeal Joseph Ratzinger era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.
Nesse ano, foram divulgadas as primeiras denúncias formais (os rumores de abusos vinham da década de 1950) contra Maciel e sua congregação, nas quais Ratzinger teria um papel importante, principalmente quando se tratava de definir as ações a serem tomadas por parte da Igreja nesses casos.
No entanto, nem Maciel nem a congregação sofreram sanções de qualquer tipo.
“Há muitas acusações, que se repetem de tempos em tempos, de que Bento 16, antes de se tornar papa, sabia bem dessas acusações, com abundantes provas, e não fez nada. E ele está mentindo quando diz que não sabia”, escreve Barranco.
Por sua vez, o sucessor de Ratzinger, o papa Francisco, defendeu em várias ocasiões a obra de Bento 16 contra os Legionários de Cristo e especialmente contra o padre Maciel.
“O Cardeal Ratzinger – aplausos para ele – é um homem que tinha toda a documentação. Sendo prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, tinha tudo nas mãos, fazia as investigações e fez, fez e fez e não pôde ir mais longe na execução”, disse Francisco em discurso em 2016.
Para o atual papa, a falta de leis para responder às denúncias de abusos que se multiplicavam naquele momento, além de uma “proteção” especial para Maciel, impediu Ratzinger de ir mais longe naquele momento.
Porque as primeiras ações contra o padre mexicano e sua congregação aconteceram nos primeiros dias de Ratzinger como novo papa.
Abusos contra 175 menores
Um fato que pode provar que Francisco está certo é que, em maio de 2006, apenas um ano depois de eleito, Bento 16 ordenou que Maciel se aposentasse do sacerdócio para levar uma vida de “oração e penitência”.
Mas essa não seria a única ação concreta.
Já em 2004, a Congregação para a Doutrina da Fé conseguiu desbloquear a investigação contra Maciel e por isso ele renunciou ao cargo de diretor dos Legionários de Cristo um ano depois.
Em 2010, dois anos após a morte do padre Maciel e como resultado das investigações realizadas, Bento 16 enviou uma delegação apostólica para assumir o controle da congregação e investigar as denúncias.
Por fim, em 2012 foi o próprio Vaticano que confirmou que Maciel e vários padres da congregação por ele fundada haviam cometido crimes graves de abuso sexual contra menores.
“Nos últimos anos, em vários países, os superiores maiores da Legião de Cristo receberam algumas denúncias de atos de imoralidade grave e ofensas mais graves… cometidas por alguns legionários”, disse um porta-voz da Congregação para a Doutrina da Fé, encarregado de conduzir a investigação.
Em dezembro de 2019, em um relatório publicado pelos próprios Legionários de Cristo, ficou conhecida a dimensão dos abusos denunciados: pelo menos 175 menores teriam sido agredidos sexualmente por membros da congregação.
Entre os abusos, 60 foram perpetrados pelo próprio padre Maciel.
“Pedimos desculpas às vítimas, seus familiares, à Igreja e à sociedade pelos graves danos causados por membros de nossa Congregação”, afirma o documento.
“Reconhecemos honesta e vergonhosamente a realidade dos crimes de abuso sexual de menores em nossa história, com o sincero desejo de contínua conversão pessoal e institucional”.
Casos de abusos perpetrados por padres também foram revelados no Brasil, mas não na mesma proporção do que em outros países, como Chile, México e França.
Um documentário da BBC, Sexo, Crimes e o Vaticano, de 2006, revelou a história do padre Tarcício Tadeu Sprícigo, condenado a 15 anos de prisão em 2005 após 10 anos de abusos.
Mais reclamações
Em fevereiro de 2013, Bento 16 surpreendeu o mundo ao anunciar sua renúncia ao papado, a primeira desde o século 15.
Atingido pelo escândalo dos “Vatileaks”, quando seu mordomo Paolo Gabriele vazou milhares de documentos secretos sobre o funcionamento do microestado, Bento 16 se viu “sem forças” para enfrentar os desafios que lhe foram apresentados pelo papado.
Em seguida, anunciou que se aposentaria para se dedicar à oração e à meditação no convento Mater Ecclesiae, no Vaticano, até o momento de sua morte.
No entanto, ele foi perseguido até agora por alegações de que sabia sobre os Legionários de Cristo muito antes de 1997 e pouco fez para detê-los.
No início deste ano, o cineasta alemão Christoph Röhl informou que dois padres chilenos haviam entregado ao então cardeal Ratzinger documentos que comprovavam a atividade criminosa da congregação e de seu fundador.
A essas denúncias somam-se as do acadêmico mexicano Juan Barba, que afirma ter conseguido em 1998 colher depoimentos de oito ex-membros da congregação de Maciel, nos quais foram feitas graves denúncias de abusos e má gestão.
“Fomos vítimas não apenas de Maciel, mas de Ratzinger e do sistema do Vaticano, que prefere que oito inocentes sofram do que milhares de católicos percam a fé”, disse Barba à jornalista mexicana Carmen Aristegui.
Porém, diante dessas acusações, a defesa sempre foi apontar que Bento 16 foi quem enfrentou os abusos de Maciel e seus Legionários de Cristo.
“Essas acusações simplesmente não são verdadeiras”, disse o padre Georg Gänswein, secretário pessoal do papa emérito, ao jornal alemão Die Zeit.
E muitos defensores apontam para o que o Vaticano indicou enfaticamente em 2010, quando as mesmas acusações foram feitas.
“É paradoxal – e ridículo para as pessoas informadas – atribuir ao cardeal Ratzinger a responsabilidade pela cobertura ou encobrimento de qualquer tipo”, disse o então porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi.
“Todas as pessoas informadas sabem que foi mérito do cardeal Ratzinger promover a investigação canônica sobre as acusações contra Marcial Maciel, até que sua culpa fosse estabelecida com certeza”, acrescentou.
Atualmente, a congregação continua a fornecer informações sobre casos de abuso.
Em 2021, eles divulgaram os nomes dos 33 padres que estariam envolvidos nos abusos, enquanto o papa Francisco indicou que a congregação ainda tem um “longo período” de renovação.
Você precisa fazer login para comentar.