- Paula Adamo Idoeta
- Da BBC News Brasil em Londres
Alguns dias depois do primeiro turno das eleições, o filho mais novo de Marcia (nome fictício) voltou da escola relatando um diálogo entre dois amiguinhos:
– Não sou mais teu amigo se você vota no Lula.
– Não, então eu não votei no Lula, eu votei no Ciro!
Detalhe importante: são crianças de pré-escola. Têm cinco anos de idade.
“Na escola do meu filho, tem duas crianças que ficam falando ‘Lula é ladrão’, e todas falam como se elas próprias votassem. Tem uma continuidade entre o (voto do) adulto e a criança. Mas começou algo bizarro, que são discussões do tipo ‘se você votou no Lula, não troco figurinha da Copa com você'”, conta Marcia, que mora em Florianópolis (SC) e é eleitora declarada de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Marcia ficou ainda mais incomodada quando a briga virou física: houve um dia em que o filho dela voltou chorando por ter recebido um puxão de cabelo após uma discussão sobre os candidatos à Presidência.
“Chegou ao ponto em que ele (o colega) falou: ‘vou bater em você porque você votou no Lula’. E bateu.”
A professora mediou o conflito, que acabou ali mesmo. Marcia não chegou a conversar com a família da outra criança.
“Nem tenho o contato do pai, porque ele parece ser muito bolsonarista. E o filho fica falando de Cristo, fala que menino não pode usar roupa tal. Eu nem quero que o meu filho ande com ele”, diz ela.
Na escola do filho mais velho de Marcia, de 8 anos, quem apanhou dos amigos foi uma “criança bolsonarista”, que era minoria na classe. Mesmo sem o episódio envolver diretamente seu filho, Marcia achou tudo “bem grave”.
Assim como nesses casos, em meio ao calor das eleições, têm pipocado pelo país relatos de discussões partidárias que levaram a brigas ou situações delicadas nas escolas. E envolvem até mesmo crianças pequenas, ainda incapazes de entender a complexidade do debate político.
Na capital catarinense, onde Marcia mora, 45,67% dos eleitores votaram em Bolsonaro e 42,43%, em Lula no primeiro turno.
A disputa partidária se reflete também no segundo turno para governador no Estado, entre Jorginho Mello, do PL de Jair Bolsonaro, e Décio Lima, do PT de Lula. E as divisões são sentidas no dia a dia da família.
“A escola virou um palco da disputa dos pais, dos valores dos pais, algo que é muito mais grave do que a eleição. E mais duradouro”, opina Marcia, cujo nome real será omitido para preservar a identidade das crianças.
Mais duradouro até porque, em parte do círculo social dela, a polarização se enraizou também entre as crianças, a depender de em quem o pai ou mãe de cada uma delas votou.
“Teve uma festinha de um amiguinho da escola (do filho mais velho, de 8 anos) em que os país que eram eleitores do Lula se juntaram numa mesa. Os que eram neutros ou bolsonaristas sentaram em outra. Quando eu vi, as crianças também tinham feito o mesmo: não estavam mais brincando todas juntas. Porque elas mesmas já sabem ‘quem votou em quem’, tanto os amigos do meu filho mais novo quanto o mais velho”, conta Marcia.
“Eles me dizem: ‘fulaninho vota no Bolsonaro’. E também falam: ‘não vou brincar com eles’. Então não é só que eles são violentados, como também falam (que não querem brincar com as crianças do lado adversário).”
‘Disputa de quem tem razão’
Na escola do filho mais velho de Marcia, onde ocorreu a agressão contra o menino filho de eleitores de Bolsonaro, a coordenação pediu aos pais que prestassem atenção à forma como temas adultos estão sendo discutidos na presença das crianças.
“Nesta sociedade polarizada, até mesmo as crianças pequenas ficam numa disputa de quem tem razão. Sendo que até o 5° ano, elas estão reproduzindo o que escutam – ainda não têm a capacidade de dosar ou refletir. E neste momento atual as famílias estão muito seguras do seu posicionamento (político)”, diz à BBC News Brasil uma das integrantes do corpo pedagógico da escola (que também não será identificada para preservar a identidade dos alunos).
A educadora agrega que o caso de agressão envolveu dois estudantes, depois de provocações em torno da política.
Mas, se tratando de crianças tão jovens, “não tem uma vítima e um vilão. Um ficou provocando o outro, e eles se irritaram. A professora então falou sobre a importância do respeito, e o que ficou na turma é: mesmo que discordemos, precisamos conviver”.
Ela não acha que a situação neste ano esteja mais grave por causa da polarização em si, mas sim por causa das redes sociais e aplicativos de mensagem. “As crianças estão trazendo (reproduzindo) as discussões entre os familiares no grupo de WhatsApp”, afirma.
“Por isso temos pedido aos familiares em geral que cuidem da forma como envolvem os filhos nessas discussões. Por vezes assuntos diversos do mundo adulto chegam já de forma conflituosa, desrespeitosa e carregadas de preconceito – o que não é do universo infantil.”
Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (Ceipe-FGV), diz que também tem escutado casos e questionamentos relacionados a como lidar com a política partidária por parte de diversos pais, professores e secretários de Educação do país.
“É lógico que essa questão tem aparecido mais nas escolas, e nem sempre de modo respeitoso, porque as crianças reproduzem o que veem”, diz à BBC News Brasil.
O natural, ela agrega, é que adultos tentem passar às crianças sua visão de mundo como se fosse a única. Costin cita o livro O Horror da Guerra, do historiador britânico Niall Ferguson, que relata como, depois da Primeira Guerra Mundial, alguns países europeus envolvidos no conflito passaram a ensinar às crianças o militarismo e o ódio à população dos países adversários, inclusive usando informações falsas para reforçar nas gerações futuras a visão negativa em relação aos vizinhos.
“Ou seja, nem as fake news são novidade. Mas se queremos avançar no processo civilizatório, precisamos dar senso crítico às crianças – ensiná-las tanto a buscar fontes confiáveis de informação como a adotar uma comunicação não agressiva. Porque um dos pilares da educação é aprender a viver juntos e conseguir dizer minha opinião sem desqualificar quem pensa diferente. Isso, aliás, é a base da democracia.”
A preocupação de Costin é que, mesmo que o momento atual de ódio passe, “fique na criança essa ideia de que ela deve odiar quem pensa diferente”.
Na casa de Marcia, em Florianópolis, isso é tema de reflexão. “Meu marido conversa com as crianças sobre direito democrático, sobre respeitar o coleguinha (independentemente da opinião política). Mas eu acho que o momento político é outro. Concordo que a gente deve realmente ensinar sobre aceitar as diferenças, mas isso se esta fosse uma eleição entre Lula e FHC, entre Lula e Simone Tebet, entre Lula e José Serra. A questão é o limite da democracia. Odeio quando dizem que estamos em uma polarização de extremos, porque não são dois extremos”, diz ela, em referência às ameaças à ruptura democrática feitas por Jair Bolsonaro.
E as diferentes perspectivas se refletem também nos dois filhos do casal. O mais novo – que levou o puxão de cabelo na escola – é mais predisposto a comprar brigas políticas. O mais velho é mais conciliador, evita conflitos e quer preservar suas amizades.
“Ele me pediu que eu não colocasse o adesivo do Lula no meu carro, porque viu que o carro do melhor amigo dele aqui da rua tem uma bandeira do Bolsonaro. E ele não quer perder o amiguinho”, conta Marcia.
Mas ela também se preocupa com o rumo que o debate político está tomando.
“Chegou a um ponto em que o que seria adesão a pautas políticas não está acontecendo: se fala moralmente do sujeito, e não de projeto político. Não tem debate de projeto político. Só se fala que o outro é ‘violento’, ‘mau’, ‘ladrão’. Para a maioria do eleitorado, tudo foi para o âmbito moral e ético”, avalia.
“A posição política virou hoje uma coisa identitária. Antes, era só uma posição política. Você discutia se concordava ou não com a meritocracia, se concordava ou não com privatizações. (…) Agora, é puramente moral, algo pautado pelo bolsonarismo. Parece que se trata da identidade do sujeito – não se trata mais de aderir a pautas políticas, mas sim a uma identidade.”
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