Aos dois anos, David Downes começou a desenhar. Levaria mais alguns anos até ele aprender a falar, e outros 30 até ser diagnosticado com autismo.
“Eu conseguia desenhar antes de me comunicar [verbalmente]. Olhando para trás, era óbvio que não havia tanta consciência naquela época”, afirma o pintor de paisagens, hoje com 51 anos, que mora na cidade de Manningtree, em Essex, no leste da Inglaterra.
Downes tem memória fotográfica, que ele atribui ao seu cérebro neurodivergente. Ele consegue se lembrar com detalhes vívidos dos lugares que visitou e pintá-los de cabeça.
“Tenho a sorte de ter essa capacidade de visualizar e também ficar obcecado pelas coisas”, diz ele.
“Quando era criança, comecei a desenhar igrejas, árvores, bandos de pássaros e cruzamentos na estrada porque eram as coisas que me fascinavam.”
Mas os traços autistas nem sempre o ajudaram ao longo da vida.
Criado em Brome, em Suffolk, na Inglaterra, Downes se sentia diferente dos amigos. Ele sofria bullying na escola e encontrava conforto desenhando em um diário ilustrado.
O diretor da escola não acreditava que ele fosse o autor dos desenhos. Por isso, seu talento artístico não era reconhecido.
Foi sua mãe, que faleceu recentemente, que o incentivou a ir para a escola de arte. Downes a descreve como sua inspiração.
Ele teve dificuldade para fazer as provas porque não conseguia reter informações. Por isso, não conseguiu as notas necessárias para entrar na Escola de Arte de Norwich, considerada a melhor da sua região, e acabou cursando outra escola em Ipswich, também na Inglaterra.
“Meu trabalho realmente teve altos e baixos”, relembra.
“Eu era muito ruim em copiar e conseguia desenhar da minha cabeça com muito mais facilidade do que se tivesse algo na minha frente.”
Downes prosseguiu com os estudos em outras instituições britânicas. Ele cursou ilustração na Universidade Anglia Ruskin, em Cambridge, e depois estudou na Universidade de Brighton, onde conseguiu um diploma de pós-graduação em ilustração.
“Socialmente, eu ainda enfrentava dificuldade para fazer amigos e tentar me encaixar”, ele conta.
“As pessoas realmente querem ser diferentes na escola de arte. Mas eu era tão diferente que era irritante. Sempre fiquei um pouco de fora. Ficava desesperado para conseguir uma namorada, mas nunca aconteceu.”
Downes ainda não tinha recebido o diagnóstico de autismo, mas suspeitava que estivesse no espectro. Ele decidiu documentar suas dificuldades em uma autobiografia visual, que usou para entrar no renomado Royal College of Art, em Londres. Para ele, conquistar a vaga foi como “ganhar a Copa do Mundo”.
Depois de formado, David Downes não tinha certeza de qual caminho seguir — como ilustrador ou artista plástico.
“Você sai do Royal College e simplesmente imagina que vai ter sucesso”, diz ele.
“Eu me sentia mais atuando como artista plástico, mas meu trabalho acabou sendo mais ilustrativo.”
Não demorou até que ele conseguisse seu primeiro contrato importante, que foi uma encomenda da BBC para registrar os pontos arquitetônicos mais importantes da corporação na virada do século.
Downes foi diagnosticado com autismo aos 32 anos — e um psicólogo o aconselhou a conseguir um emprego de meio período em uma loja de arte.
“Eu estava lutando para ter um negócio e ganhar a vida com minha arte”, relembra Downes.
“Eu precisava entender de alguma forma o que estava acontecendo.”
Sua vida profissional voltou a progredir e, em 2012, o famoso Hotel Savoy, em Londres, o contratou para criar uma obra ilustrando o desfile do Jubileu de Diamante da Rainha Elizabeth 2ª no Rio Tâmisa. A obra está exposta até hoje na entrada do hotel.
‘Ter uma família é o mais importante de tudo’
Downes entrou para a Sociedade Autista Nacional do Reino Unido, chegando à vice-presidência. Ele começou a dar palestras e pintar ao vivo regularmente, em eventos para arrecadação de fundos para a entidade.
Mas, paralelamente, Downes tinha dificuldades com relacionamentos. Ele não conseguia encontrar uma parceira, mesmo se jogando no universo de encontros pela internet. E sentia que seu sonho de ser pai estava ficando para trás.
Foi então que, com pouco mais de 40 anos, Downes começou a se consultar com um hipnoterapeuta. Ele pagou o profissional com desenhos.
“Ele me hipnotizava e dizia: ‘David, você é um artista muito bom, você é único, você é diferente. Você vai encontrar alguém que vai entender os seus problemas'”, relembra.
Downes conheceu sua companheira Rachel em um bar no bairro de Stoke Newington, em Londres. O casal morou na Califórnia por três anos, o que ele diz que abriu sua mente para diferentes tipos de trabalho.
“Foi um desafio viver lá e precisar quase começar de novo como artista, depois de ter ficado conhecido em Londres”, ele conta.
“Mas aquilo me empurrou para fora da minha zona de conforto.”
David e Rachel decidiram voltar para a Inglaterra e morar em Manningtree. E ela ficou grávida da filha do casal, Talia, hoje com dois anos.
Quando veio a covid-19, Downes se inspirou em documentar a pandemia. Ele conta que o processo o ajudou a lidar com o estresse causado pelo coronavírus — e seu trabalho passou a ser muito mais imaginário e surreal.
“Meus melhores trabalhos sempre foram autobiográficos ou descreviam os tempos em que vivemos”, ele observa.
Downes abriu recentemente uma galeria em Manningtree. Este sempre havia sido seu sonho, mas ele “nunca achou que se tornaria realidade”.
“Ter a oportunidade de exibir meu trabalho e conversar com as pessoas é incrível”, ele conta.
“Sinto que [a galeria] também me deu mais identidade como artista.”
Downes agora concentra sua atenção na crise do custo de vida. Ele quer criar obras documentando as adversidades em 2023.
“Antes de morrer, minha mãe me disse: ‘Seu pai e eu nunca achamos que você encontraria alguém e seria pai'”, recorda.
“Tenho orgulho de tudo o que consegui no mundo da arte, mas ter uma família é o mais importante de tudo.”
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