Crédito, Divulgação MPT

Legenda da foto, Vassoura-de-bruxa, maior praga da história da cacauicultura brasileira, derrubou renda e acesso à educação em municípios afetados

  • Author, Thais Carrança*
  • Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
  • Twitter, @tcarran

O cacau está em alta – em mais de um sentido.

A cotação do fruto no mercado internacional é recorde e acumula alta de 75% em um ano, em meio a problemas de oferta em Gana e na Costa do Marfim, países africanos que respondem por 60% da produção global.

No Brasil, o cacau está no horário nobre, como pano de fundo do enredo da novela Renascer, da Rede Globo, que em sua nova versão busca destacar práticas sustentáveis de cultivo.

O país ocupa hoje a sexta posição entre os maiores produtores de cacau do mundo, mas, entre 1961 e 1988, chegou a ser o segundo, atrás apenas da Costa do Marfim.

Perdemos essa vice-liderança por uma única razão: a vassoura-de-bruxa, praga causada pelo fungo Moniliophthora perniciosa, que afeta as árvores de cacau e esteve no centro da maior crise da história da cultura nacional do cacau.

Por conta da vassoura-de-bruxa, a produção brasileira encolheu quase 80% entre 1985 e 1999, de cerca de 449 mil toneladas para apenas 96 mil.

Como consequência, a microrregião de Ilhéus e Itabuna, no sudeste da Bahia, sofreu com a maior onda de desemprego da sua história.

Cerca de 250 mil trabalhadores rurais perderam seus postos de trabalho, segundo a Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), ligada ao Ministério da Agricultura e Pecuária.

Mas os efeitos da crise do cacau não se restringiram aos anos de auge da praga, mostra um estudo dos economistas Yuri Barreto, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e Rodrigo de Oliveira, do Instituto Mundial de Pesquisa em Economia do Desenvolvimento da Universidade das Nações Unidas (UNU-Wider, na sigla em inglês).

Em artigo publicado em maio de 2023 e atualizado com novos dados em março deste ano, os pesquisadores mostram como a vassoura-de-bruxa causou prejuízos duradouros naquela região da Bahia.

A praga derrubou a renda e o acesso à educação da população local e foi possivelmente a principal causa do aumento do trabalho infantil nos municípios afetados.

Segundo os autores, os resultados são particularmente relevantes num momento em que o mundo é afetado pelas mudanças climáticas, o que deve tornar cada vez mais frequentes eventos extremos com impactos na produção agrícola.

A importância do cacau no sul da Bahia

Nativo da Amazônia, o cacau chegou à Bahia em 1746, quando o francês Louis Frederic Warneaux, que vivia no Pará, enviou sementes ao fazendeiro português Antônio Dias Ribeiro, que as semeou onde hoje está localizado o município de Canavieiras.

As fazendas de cacau foram se multiplicando na região ao longo do século 19, e as exportações avançaram à medida que aumentava o consumo de chocolate, produzido a partir do cacau, na Europa e nos Estados Unidos.

Nas primeiras décadas do século 20, o cacau chegou a ser o principal produto de exportação baiano.

“O cacau começou a ser cada vez mais importante, tanto que se transformou em uma monocultura”, observa Lurdes Bertol Rocha, professora aposentada do Departamento de Ciências Agrárias e Ambientais da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc) e autora da tese de doutorado A região cacaueira da Bahia – Uma abordagem fenomenológica.

Um ano antes da chegada da vassoura-de-bruxa, a parcela do cacau na produção agrícola total dos municípios afetados no Estado era de em média 84%, segundo Barreto e Oliveira. A Bahia era responsável por 86% da produção brasileira.

“O cacau se tornou a base de tudo aqui na região, até 1989, quando chegou a vassoura-de-bruxa”, diz a pesquisadora.

A praga

Como qualquer mercadoria, a história do cacau é marcada por flutuações de preços e do volume de produção.

“O que é diferente na vassoura-de-bruxa, que nos interessou como objeto de estudo, é que há uma queda na produção, mas ela não cai e volta, como de costume”, observa Yuri Barreto, da UFPE.

“A produção cai e não volta mais, esse é o grande diferencial dessa crise.”

A vassoura-de-bruxa pode afetar o cacaueiro em diversas fases, desde a muda até a planta adulta, atacando tanto galhos, quanto flores, folhas e frutos.

Quando o fungo infecta os brotos da árvore, provoca um inchaço da parte afetada e uma proliferação de pequenos brotamentos que, quando secam, lembram uma vassoura, daí o nome da praga, segundo a Ceplac.

Nos frutos, a vassoura-de-bruxa resulta em apodrecimento da polpa, o que reduz a produtividade das lavouras de cacau.

Crédito, Scott Bauer, USDA Agricultural Research Service

Legenda da foto, Nos frutos, a vassoura-de-bruxa resulta em apodrecimento da polpa

Bioterrorismo

A doença sempre existiu na Amazônia, mas não se alastrou ali por dois motivos principais: as condições climáticas e o fato de que o cacau nunca foi uma monocultura na região, explicam os pesquisadores.

Já no sudeste da Bahia, não havia registros da praga até o repentino surto de 1989.

A descoberta da vassoura-de-bruxa aconteceu em maio daquele ano, no município de Uruçuca. Em outubro, foi a vez de Camacan reportar a presença do fungo.

À época, a principal explicação para a chegada da vassoura-de-bruxa no sul da Bahia foi bioterrorismo por competidores da região amazônica ou da Costa do Marfim.

“Apesar de nada ter sido provado sobre a responsabilidade ou as reais motivações, o consenso é de que o espalhamento do fungo foi criminoso e intencional”, destacam Barreto e Oliveira, no estudo From Fields to Futures: The Lasting Effects of Crop Diseases on Education and Earnings (Dos campos aos futuros: os efeitos duradouros de pragas agrícolas na educação e renda, em tradução livre).

Em 2006, o jornalista Reinaldo Azevedo – então um feroz crítico do primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) – escreveu na revista Veja um artigo de grande repercussão intitulado O bioterrorismo dos petistas.

O artigo foi publicado em julho daquele ano, poucos meses antes das eleições presidenciais de outubro, que dariam a reeleição a Lula.

Azevedo se baseou em uma investigação da Polícia Federal, na qual um ex-funcionário da Ceplac assumia o crime, e incriminava mais quatro pessoas ligadas ao PT e ao PDT.

A suposta ação criminosa também foi tema do documentário O nó: Ato humano deliberado, de 2012, baseado em depoimento deste mesmo ex-funcionário.

No entanto, nada foi provado, e a investigação foi arquivada. Mas essa versão dos fatos permanece viva no imaginário da região, observa Berreto.

“Até hoje, ninguém consegue cravar com certeza como surgiu a vassoura [no sudeste da Bahia]”, diz o pesquisador.

“Existem teorias, mas elas também podem ter sido usadas com fins políticos. Não existem provas do que causou [o surto da doença], mas o que se sabe pelas análises feitas é que o padrão da forma como ela se espalhou indica que foi intencional.”

Os impactos da vassoura-de-bruxa

Alguns fatores explicam porque a vassoura-de-bruxa teve um impacto tão grande no sudeste da Bahia.

O primeiro deles, segundo os pesquisadores – ambos baianos –, é que a produção do cacau na região à época era uma monocultura.

“A renda agrícola muito alta e a produção relativamente simples não incentivavam a diversificação”, observam.

Um segundo fator é que a cultura do cacau na região é feita por meio de um sistema produtivo chamado cabruca, que consiste na utilização da própria floresta para “fazer sombra” no cacaueiro, controlando a temperatura e a evaporação de água do solo.

Crédito, Rodrigo Oliveira

Legenda da foto, Na cabruca, a floresta é utilizada para ‘fazer sombra’ no cacaueiro, controlando a temperatura e a evaporação de água do solo

Então derrubar a floresta e plantar outra coisa não era uma opção fácil, e uma mudança estrutural era uma grande dificuldade.

Além disso, à época, pouco se sabia sobre a vassoura-de-bruxa, e as diversas tentativas da Ceplac de controlar a praga demoraram para surtir efeito.

“O fato é que a região nunca se recuperou completamente”, afirma Oliveira.

A professora Lurdes Rocha, da Uesc, observa que essa recuperação foi prejudicada porque “ninguém sabia o que fazer”.

“A Ceplac também não estava preparada, e alguns fazendeiros até se suicidaram, porque ninguém estava preparado – nem financeiramente, nem tecnicamente – para essa eventualidade.”

Relatos sobre essa situação de desespero são comuns até hoje na região.

“Minha família tinha várias fazendas cacaueiras entre Itajuípe e Ilhéus”, conta uma usuária em uma rede social, comentando em uma postagem sobre o Dia do Cacau, celebrado em 26 de março.

“Foi tudo devastado pela vassoura-de-bruxa. Houve suicídio, morte por desgosto, tudo perdido. Imóveis de um dia para o outro foram vendidos a preço irrisório, trabalhadores agrícolas [ficaram] pelas ruas passando fome, tudo muito triste.”

Efeitos de longo prazo

Para além desses efeitos devastadores imediatos, os economistas Yuri Barreto e Rodrigo Oliveira investigaram os impactos sociais de longo prazo.

Eles utilizam dados dos Censos demográficos de 2000 e 2010 para um conjunto de municípios nordestinos com características semelhantes.

Essa amostra foi dividida entre municípios afetados pela vassoura-de-bruxa (o grupo de tratamento) e aqueles não afetados pela doença (o grupo de controle).

Os pesquisadores então comparam indicadores educacionais e de renda nesses dois grupos ao longo do tempo.

E fazem uma série de testes para se assegurar de que os efeitos captados são de fato relacionados à praga e não a outros fatores, como, por exemplo, possíveis diferenças de características entre os municípios ou a migração populacional causada pela perda de produtividade das lavouras.

“O principal resultado que encontramos é que indivíduos que foram expostos durante a infância [aos efeitos da vassoura-de-bruxa] têm uma menor probabilidade – de cerca de 10% em relação à média – de concluir o ensino médio e cerca de 8% de redução da probabilidade de completar o ensino fundamental”, observa Barreto.

O estudo também aponta que a renda média nos municípios afetados caiu entre 25% e 38% de 1991 a 2000 devido à vassoura-de-bruxa.

“A literatura mostra que, se uma família é pobre o suficiente, a educação passa a ser um bem de luxo”, diz o pesquisador.

“Então, se há uma crise muito grande, a criança não vai para a escola, ela acaba tendo que trabalhar, seja na roça – que agora está menos produtiva, então precisa de mais pessoas –, seja fazendo algum bico ou outra coisa.”

Assim, eles avaliam que a praga pode ter sido o principal fator a elevar a parcela de crianças trabalhando nos municípios afetados em até 30%, em comparação com a média do grupo de controle.

A importância desses resultados

Para Yuri Barreto, da UFPE, estudar um choque agrícola de grandes proporções, como foi a vassoura-de-bruxa no sudeste da Bahia no fim dos anos 1980, é particularmente relevante em um mundo em mudança climática, onde eventos naturais extremos devem ser cada vez mais frequentes.

“O que mostramos é o custo futuro de não se preparar para esses desastres e como é importante ter uma rede de assistência social nesses casos”, afirma.

O pesquisador avalia que, se naquele momento as famílias contassem com mecanismos para amenizar a perda de renda, talvez aquelas crianças não precisassem ter saído da escola.

Lurdes Rocha, da Uesc, destaca que, apesar da crise, a região passa agora por uma nova fase de crescimento, impulsionada por iniciativas de produção sustentável e pelo alto preço atual do cacau.

A arroba do cacau (unidade equivalente a 15 kg) na Bahia passou de R$ 212 para R$ 650 entre abril do ano passado e igual mês de 2024, segundo cotações disponíveis no portal Agrolink.

Crédito, Rodrigo Oliveira

Legenda da foto, Cacauicultura no sul da Bahia passa por nova fase de crescimento, impulsionada por iniciativas de produção sustentável e pelo alto preço do cacau

Há cerca de dez anos, a região começou a se reinventar, com iniciativas dedicadas à produção de chocolates finos, em vez da simples venda de sementes de cacau para a grande produção.

Entre marcas com atuação na região, estão a Dengo e a local Mendoá.

Além disso, agricultores familiares também têm se dedicado à produção de chocolates de alta qualidade com suporte do Centro de Inovação do Cacau da Uesc.

Crédito, Rodrigo Oliveira

Legenda da foto, Chocolates e melaço de mel de cacau produzidos no sul da Bahia

Lurdes, que é gaúcha, mas mudou-se para Itabuna em 1978 e chegou a ter uma pequena fazenda de cacau com o marido, vê com entusiasmo essa nova etapa.

Mas ela reforça a relevância de análises de longo prazo como a de Barreto e Oliveira.

“É importante porque, fazendo uma análise histórica do que aconteceu, não repetimos o erro”, diz a professora.

“Por exemplo, já sabemos que monocultura não dá certo, que na hora que houver um problema com aquela cultura, toda a região sofre.”

*Com a colaboração de Camilla Costa, da equipe de Jornalismo Visual da BBC.