A jornada de Marine Le Pen está levando a direita radical da França a uma ponto próximo da Presidência do país.
Mesmo depois de assumir a liderança do partido Rassemblement National (Reagrupamento Nacional) de seu pai em 2011, ela passou anos tentando chegar ao ponto de equilíbrio considerado necessário para transformar uma força extremista em um grupo que acredita estar à beira do poder.
As propostas políticas de Le Pen sobre imigração e a ideia de priorizar casas e empregos para cidadãos franceses ainda são considerados projetos da direita radical, mas a mulher que lidera o renovado partido transmite uma imagem moderada e acessível de populismo.
“Sim, sou uma criadora de gatos profissional e uma agricultora”, disse ela à emissora France Inter em janeiro.
Le Pen tem seis gatos e eles aparecem em seus vídeos do TikTok e até em uma conta privada especial que ela mantém no Instagram.
Quando a cientista política Chloé Morin perguntou a um painel de eleitores na cidade de Lille no ano passado qual era a imagem que Le Pen transmitia, foram os gatos que se destacaram. Afinal, quem não confiaria em uma mulher fã de felinos?
Ela pode parecer mais moderada, mas as políticas que adota não são menos radicais em temas como imigração, nacionalidade e islamismo. Emmanuel Macron, atual presidente e adversário nas eleições de segundo turno, diz que o programa de governo dela é racista.
James Shields, professor de estudos franceses da Universidade de Warwick, no Reino Unido, entende que as referências racistas e antissemitas ficaram para trás, mas as velhas medidas de lei e ordem anti-imigrantes e autoritárias do antigo partido do pai de Le Pen permanecem praticamente inalteradas.
Às vésperas da eleição, marcadas para este domingo (24/4), Le Pen segue apenas alguns pontos atrás nas pesquisas, depois de um debate televisionado contra Macron.
O cenário atual é bem diferente do que ocorreu há cinco anos, quando ela estava despreparada, e parecia perturbada durante o debate antes da eleição, em que Macron conquistou dois terços dos votos.
Um drama familiar
Em 2022, Marine Le Pen já se saiu melhor do que o pai, Jean-Marie Le Pen, chegando ao segundo turno com uma plataforma anti-imigrantes e de lei e ordem. Em pleitos passados, ele foi derrotado porque 82% dos eleitores consideravam as políticas defendidas pelo então candidato como tóxicas.
Jean-Marie foi um homem que, desde 1987, falou repetidamente das câmaras de gás nazistas e do Holocausto como “um detalhe da história da Segunda Guerra Mundial” e que foi amplamente acusado de antissemitismo.
A campanha deste ano traz os slogans “Marine presidente” e “Para todos os franceses”. Não há uma dica do sobrenome Le Pen nesses anúncios. A limpeza da marca está quase completa.
Ela tinha oito anos quando percebeu pela primeira vez quem era seu pai, ao sobreviver a um atentado em 1976 que danificou gravemente o apartamento da família no centro de Paris.
Numa autobiografia, Le Pen lembra como ela e as duas irmãs mais velhas ficaram de joelhos, tremendo e de mãos dadas, quando ouviram a voz do pai gritando: “Meninas, meninas, vocês estão vivas?”.
Depois, os colegas de escola foram instruídos a não se aproximarem delas: “Um ‘cordão sanitário’ foi criado ao nosso redor: não se aproxime dos Le Pen”.
Então, quando ela tinha 16 anos, a mãe Pierette fugiu com o biógrafo de seu pai. Para uma adolescente, esse foi um momento traumático que a aproximou ainda mais da figura paterna.
“Durante um mês e meio vomitei todos os dias. Era incapaz de me alimentar”, escreveu na autobiografia de 2011.
Esses anos de formação deram o exterior duro pelo qual Le Pen é famosa. O sorriso que ela lança para os fotógrafos raramente dura mais que alguns segundos.
“Depois de tudo o que passou na juventude, ela construiu uma concha”, disse seu amigo Steeve Briois à BBC. Ele continua sendo um forte aliado, como prefeito de Hénin-Beaumont, no norte da França.
Advogada de imigrantes ilegais
Graduada em direito em uma das melhores faculdades de Paris no início dos anos 1990, Le Pen passou a atuar em favor de réus que não podiam pagar por um advogado. Isso às vezes envolveria imigrantes ilegais. Questionada sobre isso mais tarde, ela declarou que não via nenhuma contradição: “Eles são seres humanos, têm direitos, você não pode culpá-los pela política de imigração.”
“Admiro como ela manteve a calma e foi capaz de manter relacionamentos profissionais normais, apesar de estar sobrecarregada com a notoriedade de seu pai”, diz o advogado Basile Ader, de Paris.
Em 1998, a carreira de Le Pen não estava evoluindo. E o fato de ela ter sido boicotada por outros colegas por causa da política de seu pai não ajudou em nada.
Depois de seis anos, ela deixou a prática da advocacia para assumir o cargo mais alto no departamento jurídico do partido Reagrupamento Nacional.
Após a mudança profissional, apareceram queixas de nepotismo, mas, em 2004, ela foi eleita para o Parlamento Europeu e lá permaneceu por 13 anos.
Mesmo antes de assumir como líder do Reagrupamento Nacional, ficou claro que ela tinha dúvidas sobre algumas das ideias mais desagradáveis sobre a história nazista ditas pelo pai.
Quando, em 2005, Jean-Marie Le Pen declarou a uma revista que a ocupação alemã da França “não era tão desumana, mesmo que houvesse algumas manchas”, ela considerou deixar a vice-liderança do partido. O assessor dela, Bruno Bilde, acreditava que no fundo ela cogitava até abandonar a política.
O destino do pai foi selado de vez quando ele garantiu apenas 10% dos votos em 2007. Em quatro anos, Marine Le Pen estava no comando do partido.
Enquanto fazia campanha para ser eleita líder, o futuro rosto do Reagrupamento Nacional já estava provocando indignação. Ela disse aos apoiadores em Lyon, na França, que a visão de muçulmanos rezando na rua era semelhante à ocupação nazista. Primeiro vieram “mais e mais véus”, depois “mais e mais burcas”. Agora não havia tanques ou soldados “mas ainda é uma ocupação e pesa sobre as pessoas”, declarou à época.
“Direita radical com rosto humano” foi como o filósofo francês Bernard-Henri Lévy a descreveu. À época, ela acabou sendo inocentada de incitar o ódio.
Le Pen então procurou se livrar de alguns nomes da geração mais velha de apoiadores do pai, muitos dos quais compartilhavam uma visão simpática do regime francês que colaborou com os nazistas na Segunda Guerra Mundial.
Mas o financiamento de um partido de direita radical ainda era tóxico na França e ela foi à Rússia em busca de 11 milhões de euros em empréstimos no mesmo ano em que Vladimir Putin encenou uma apropriação de terras na Ucrânia. Ela até apoiou a anexação da Crimeia pelos russos.
A partir de então, Le Pen concentrou-se em criticar o que ela considera ameaças contra a vida francesa: “islamificação”, globalização, União Europeia e euro. Com essas bandeiras, ela ficou em terceiro lugar nas eleições presidenciais de 2012.
Em 2017, o Reagrupamento Nacional era dirigido por jovens profissionais habilidosos que administravam canais do YouTube e atraíam apoio em toda a França. O partido acumulou vitórias em eleições locais, regionais e na Europa, inclusive conquistando apoiadores judeus e muçulmanos.
Embora tenha sido derrotada por Emmanuel Macron no segundo turno presidencial, ela atraiu 7,7 milhões de votos.
Ela desintoxica a direita radical?
Cinco anos depois, Le Pen pode alegar ter tornado o partido ainda mais elegível, com uma marca mais suave do Reagrupamento Nacional e a oferta de uma alternativa realista a um presidente acusado de estar fora de contato com as pessoas comuns.
“Vou governar o país como uma mãe, sem extravagâncias e com bom senso”, promete Le Pen aos eleitores enquanto passeia pelo mercado. Ela também focou boa parte da campanha no aumento do custo de vida.
“O programa do Reagrupamento Nacional ainda está centrado no princípio fundamental da priorité nationale, ou a prioridade para os cidadãos franceses em empregos, habitação, benefícios sociais e assistência médica”, avalia James Shields.
Le Pen pode não defender mais o abandono da União Europeia, mas o programa dela colocaria a França em rota de colisão que terminaria em uma saída de fato, acredita o professor.
Para os muçulmanos franceses, a proposta de Le Pen de proibir o véu em público é mais preocupante.
Quando uma aposentada com um lenço na cabeça apelou na semana passada para que Le Pen deixasse os muçulmanos em paz, a candidata argumentou que, em alguns bairros, as mulheres se sentiam compelidas a usar o véu para não serem julgadas.
A mulher, chamada Fátima, explicou que só começou a usar o véu quando era mais velha, para enfatizar que era avó.
Le Pen é acusada por seu rival de fazer campanha apenas em áreas onde é popular. Porém, quando os manifestantes gritaram “fascista” e lhe disseram para sair, ela fez o possível para continuar sorrindo, alegando que, quanto mais feroz a resposta, maior sua chance de vencer a eleição.
Se ela ganhar, seu pai Jean-Marie certamente ficará orgulhoso. Mas ela continua a enfatizar as “mil” diferenças entre eles.
“Ele era o presidente de um movimento que surgiu originalmente como protesto e depois virou oposição”, explica.
“Organizei o trabalho das minhas equipes para que possamos entrar [no governo] e colocar nossas ideias em prática”.
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