- Author, Mariana Sanches e Marina Rossi
- Role, Enviada especial da BBC News Brasil a Nova York e da BBC News Brasil em São Paulo
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) cumpriu a tradição e abriu, mais uma vez, a série de discursos de chefes de Estado e de goveno na Assembleia Geral da ONU.
Vestindo uma gravata com as cores da bandeira do Brasil, Lula discursou por quase 20 minutos e aproveitou o púlpito para enviar alguns recados ao mundo, reafirmando o Brasil como um mediador de conflitos e revisitando falas anteriores, ao mencionar o combate à fome.
Christopher da Cunha Bueno Garman, diretor excetivo para as Américas da consultoria Eurasia Group, afirma que de maneira geral o presidente fez um discurso “disciplinado”, falando de forma apropriada sobre governança, sustentabilidade e fome. “São temas que têm eco no sul global como um todo.”
Lula também não foi capaz de esconder alguns constrangimentos. Explicamos, ponto a ponto, os recados e os pontos fracos da fala do presidente em Nova York.
Acima da lei
O presidente foi incisivo ao criticar, sem mencionar nomes, a postura da rede de Elon Musk, o X, no Brasil. Em meio ao embate entre o bilionário e o Supremo Tribunal Federal (STF), que suspendeu a rede social no Brasil no fim de agosto, Lula apelou pelo “direito de legislar, julgar disputas e fazer cumprir as regras dentro de seu território, incluindo o ambiente digital”.
“O futuro de nossa região passa, sobretudo, por construir um Estado sustentável, eficiente, inclusivo e que enfrenta todas as formas de discriminação. Que não se intimida ante indivíduos, corporações ou plataformas digitais que se julgam acima da lei”, afirmou o presidente.
O presidente não mencionou nenhum nome ou empresa, mas deixou claro que defende a regulamentação das redes, enquanto o X manobra para voltar a funcionar no Brasil. “A liberdade é a primeira vítima de um mundo sem regras”, afirmou o presidente.
Uma proposta de lei de regulação das redes sociais está atualmente parada na Câmara dos Deputados, cujo presidente, Arthur Lira, assistia ao petista do plenário da ONU.
O tema também será tratado por Lula em um evento co-patrocinado com a Espanha, sobre extremismo digital da direita radical e democracia.
“O futuro de nossa região passa, sobretudo, por construir um Estado sustentável, eficiente, inclusivo e que enfrenta todas as formas de discriminação. Que não se intimida ante indivíduos, corporações ou plataformas digitais que se julgam acima da lei”, disse Lula.
Para o brasilianista Brian Winter, editor da revista Americas Quartely, o fato de Lula ter dado tamanha importância ao assunto demonstra o quanto ele acredita que o bilionário possa ter afetado a reputação do Brasil internacionalmente, acusando o país de ferir “a liberdade de expressão” dos brasileiros.
Ainda segundo Winter, como os movimentos mais recentes de Musk foram recuos, Lula provavelmente vê a situação como uma vitória de seu governo.
Diplomatas brasileiros que conversaram reservadamente com a BBC News Brasil disseram que o caso seria mencionado em um compromisso com líderes da Espanha, Chile, Canadá e França, que também enfrentam ataques da direita radical, como um êxito para debelar milícias digitais.
Já para Garman, este foi o pronto mais frágil do discurso do presidente brasileiro.
“Me preocupa um pouco o tom nacionalista. Países como o Brasil precisam fazer parcerias com essas empresas, e esse foco de uma certa autossuficiência, nacionalismo, é infeliz”, afirmou o analista.
“É um governo que vê oportunidades mas peca quando enxerga mais riscos do que oportunidades e isso pode dificultar parcerias com empresas de tecnologia de ponta.”
O analista não acredita, porém, que esse discurso possa causar algum ruído no mercado ou alguma consequência por enquanto. Mas ele afirma que será necessária alguma flexibilidade nessa área.
“Ou os países fazem parcerias para incorporar mais rápido a tecnologia, ou vão perder.”
Gaza e Ucrânia
Lula chamou atenção para o conflito entre Israel e a Palestina, classificando o que está acontecendo em Gaza e na Cisjordânia como “uma das maiores crises humanitárias da história recente, e que agora se expande perigosamente para o Líbano.”
Em tom diplomático, o presidente afirmou que “o que começou como ação terrorista de fanáticos contra civis israelenses inocentes, tornou-se punição coletiva de todo o povo palestino.”
“O direito de defesa transformou-se no direito de vingança, que impede um acordo para a liberação de reféns e adia o cessar-fogo.”
O presidente, no entanto, evitou usar termos polêmicos como genocídio, Holocausto e crimes de guerra, que adotara anteriormente para qualificar a situação, gerando uma crise diplomática com Israel.
A delegação israelense não aplaudiu o discurso do brasileiro em nenhum momento.
Ainda sobre os conflitos internacionais, Lula afirmou que “o Brasil condenou de maneira firme a invasão do território ucraniano”, apontando que Rússia e Ucrânia devem abrir uma negociação diplomática para encerrar o conflito.
Por outro lado, o brasileiro se aproxima da China, lembrando que os dois países elaboraram seis pontos para que se instale um processo de diálogo e o fim das hostilidades na Ucrânia.
Reforma da ONU
O presidente trouxe, novamente, uma reivindicação histórica da diplomacia brasileira: a reforma da ONU e do Conselho de Segurança, no qual o país não tem um assento permanente.
“A exclusão da América Latina e da África de assentos permanentes no Conselho de Segurança é um eco inaceitável de práticas de dominação do passado colonial”, afirmou o presidente.
Ele também lembrou que nunca na história da instituição uma mulher ocupou o cargo de secretária-geral. “Estamos chegando ao final do primeiro quarto do século XXI com as Nações Unidas cada vez mais esvaziadas e paralisadas”, afirmou Lula.
O Conselho de Segurança da ONU é formado por 15 membros, sendo que cinco deles são permantes: China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia. Esses países são revestidos pelo poder de veto, o que significa que eles são capazes de, com seu voto, barrar uma decisão do conselho.
Já os demais membros são temporários, eleitos de dois em dois anos pela Assembleia Geral, e não têm o mesmo privilégio.
O poder de veto é justamente o que poderia travar uma possível reforma, de acordo com o professor de Relações Internacionais, Dawisson Belém Lopes.
Os constrangimentos
Enquanto o Brasil está há meses sufocado pelas queimadas, e o governo, criticado pela demora nas respostas, Lula tratou do tema logo no início do seu discurso, reconhecendo que falta ação.
“O meu governo não terceiriza responsabilidades nem abdica da sua soberania. Já fizemos muito, mas sabemos que é preciso fazer mais”, reconheceu.
Para Garman, o momento é constrangedor para um discurso em uma instância como a ONU, mas ainda assim, ele afirma que Lula “lidou de forma hábil, reconhecendo e assumindo responsabilidades pelas queimadas no Brasil”.
“É claro que é constrangedor estar em uma situação de queimadas no Brasil inteiro. Mas ao menos no discurso ele foi feliz na maneira de tratar.”
Lula citou ainda as enchentes no Rio Grande do Sul como um exemplo, junto aos incêndios, da necessidade de medidas mais urgentes e profundas dos líderes globais.
O que ele deseja é que os países ricos — e os maiores poluidores do mundo — se comprometam a remunerar aos emergentes pelos serviços de conservação florestal e pela redução de emissões de gases do efeito estufa.
Embora trate o tema como prioritário em sua agenda internacional, Lula e seu governo vivem a contradição entre o apelo dos ambientalistas e a necessidade de garantir a renda da exploração dos combustíveis fósseis: a Petrobras tem aumentado sua produção de barris de petróleo, que atingirá o ápice em 2030.
Além disso, o presidente recebeu em reunião fora da agenda em Nova York dirigentes da petroleira Shell, que tem interesse em explorar poços na margem equatorial brasileira. O encontro foi revelado pela BBC News Brasil.
O silêncio
Já sobre América Latina, Lula disse que a região vive uma segunda década perdida e voltou a condenar o embargo unilateral dos EUA à Cuba, classificando como “injustificado”, além de citar a grave situação do Haiti.
O tema gerou divisão entre os próprios diplomatas brasileiros: por um lado, alguns argumentavam que Lula deveria levantar o tema, até por querer liderar mediações para a solução. Por outro, auxiliares argumentavam que a plenária da ONU é polarizada demais e que qualquer citação ao assunto renderia críticas ao presidente.
Para Garman, “não falar sobre a Venezuela é um reconhecimento tácito que o brasil está numa posição muito difícil no assunto”.
Já Brian Winter vê habilidade no presidente brasileiro ao saber quando se calar, já que, em suas palavras, Lula está em meio a um “jogo delicado de denunciar eleições fraudulentas sem romper relações com Caracas”.
Fonte: BBC
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