O economista “libertário” Javier Milei chegou à Presidência da Argentina em dezembro ainda considerado um estranho à política. Ele havia recém ingressado na vida pública dois anos antes, como deputado nacional.
Famoso por fazer campanha com uma motosserra, o autodeclarado “anarcocapitalista” prometeu cortar drasticamente os gastos da “casta política” e, desde que assumiu o cargo, realizou o que ele mesmo definiu como “o maior ajuste da história” – equivalente a 13 pontos do Produto Interno Bruto (PIB).
Mas nestes quatro meses, mais de 3 milhões de argentinos caíram na pobreza, segundo estimativas da Universidade Di Tella.
A correspondente da BBC para a América Latina, Ione Wells, entrevistou Milei na Casa Rosada sobre os cortes orçamentários, suas relações com os Estados Unidos, Israel e China, seus planos em relação às Malvinas/Ilhas Falkland e seu apelido de “O Louco”.
BBC News – As pessoas o descrevem de muitas maneiras diferentes. Como o senhor se descreveria em três palavras?
Javier Milei – Um fanático amante da liberdade.
BBC News – Gostaria de começar esta entrevista falando primeiro da economia, à qual vocês deram prioridade. Vocês conseguiram baixar a inflação, mas prometeram que o ajuste seria pago pela “casta” política, não pelo povo. Conversei com uma aposentada que me disse, em meio a lágrimas, que isso, nas palavras dela, era mentira, pois são pessoas como ela que pagam com cortes nas aposentadorias e nos salários. O que o senhor diria a ela?
Milei – Bem, a verdade é que isso é falso, que a maior parcela do ajuste quem está pagando é a classe política.
Quando chegamos, a economia argentina tinha déficits gêmeos [resultado negativo nas contas públicas e nas contas externas] de 17 pontos do PIB. E a inflação estava rumo a 7.500% ao ano.
Na verdade, no mês de dezembro a inflação no atacado [aquela referente ao preço de matérias-primas e produtos vendidos pelo setor agrícola e a indústria], foi de 54%, que anualizada é de 17.000%. E já levamos a inflação no atacado de 54% para 5%.
Além disso, reduzimos a inflação ao consumidor. Isto é importante porque o imposto mais regressivo que atinge mais duramente as pessoas é o imposto inflacionário.
BBC News – Mas a maioria dos analistas concorda que uma das formas de alcançar o superávit fiscal foi através do corte nas pensões. Ele representa cerca de 35% dos cortes introduzidos.
Milei – Isso é falso. São críticas infundadas.
Devolvemos 13 pontos do PIB aos argentinos e quando terminar o ano estaremos devolvendo 15 pontos do PIB.
Com relação ao ajuste, no Tesouro herdamos um déficit de 5 pontos do PIB e exageramos com um ajuste equivalente a 7 pontos do PIB, o que também nos permitiu gerar um superávit.
Desse ajuste, um ponto é garantido pelo aumento dos impostos e há 4 pontos que têm a ver com a redução do gasto público. Apenas cerca de 0,4% do PIB impacta nas aposentadorias e pensões.
Isto é, 90% do ajuste recai sobre a casta política e apenas 10% do ajuste recai sobre as pensões.
BBC News – Mas especificamente o que você diria a essa aposentada e às pessoas que estão tendo dificuldades com os aumentos de preços neste momento? Eles talvez não se acalmem ao ouvir falar de cortes no PIB quando os preços do seu cotidiano aumentam todos os dias, enquanto as suas aposentadorias e salários não acompanham.
Milei – Bem, você pode olhar para isso em dólares, e de US$ 80, o rendimento subiu para US$ 200. Onde está o ajuste, então?
BBC News – Mas quero saber especificamente o que você diria às pessoas agora? Você pediria desculpas? Gostaria de agradecer às pessoas que estão tendo de pagar muito mais do que antes por causa do ajuste?
Milei – O que acontece é que, no cenário alternativo, elas estariam ganhando US$ 10 e hoje ganham US$ 200. O que é mais que o dobro do que ganharam no governo anterior com US$ 80.
Às vezes, os meios de comunicação mentem intencionalmente e as pessoas aceitam as mentiras que vêm da mídia.
Provavelmente o lugar do mundo onde o jornalismo está mais podre é na Argentina, onde grande parte dos jornalistas são, digamos, mentirosos e caluniadores em série.
Então estou explicando a lógica do ajuste. Você sempre pode encontrar um caso em que haverá reclamações.
BBC News – Mas será que pessoas como essa aposentada estão mentindo quando dizem que têm dificuldade para comprar alimentos básicos no supermercado?
Milei – Vejamos, a questão é esta: não se pode fazer uma avaliação macroeconômica baseada na situação particular de um agente.
Isso é chamado de falácia da parte pelo todo. Então, se você acredita que vai ter uma política econômica para um caso especial, onde também pode estar influenciado pelo tipo de informação que você acessa, a realidade é que essas coisas acontecem.
BBC News – Mas as pessoas nas ruas não são economistas. O que diria às pessoas que viram o preço do leite duplicar desde que chegou ao poder e que sentem que estão pagando pelo ajuste? Qual é a sua mensagem para eles? Quanto tempo elas devem esperar até que as coisas melhorem?
Milei – Bom, na verdade, no último mês, os salários começaram a vencer a inflação, porque subiram 14% e a inflação foi de 11%.
No próximo mês, a inflação será ainda mais baixa e eles vão continuar recompondo seus salários.
Além disso, as aposentadorias com a nova fórmula são ajustadas pela inflação passada. Então, na medida em que a inflação continuar caindo, os ajustes nas aposentadorias, por estarem atrasados, serão superiores à inflação, e isso implicará uma recomposição das aposentadorias.
Portanto, isso já está acontecendo.
[Há também um] desenho macroeconômico para apoiar os setores mais vulneráveis, porque não é só o caso das aposentadorias.
Também duplicamos o Abono Universal por Criança, duplicamos o cartão Alimentar, duplicamos o programa de assistência às grávidas, quintuplicamos o auxílio do programa para que as crianças possam continuar estudando.
Então, a realidade é que é um programa que tem um forte conteúdo de apoio social, que atende os mais vulneráveis e o ajuste mais forte recai sobre o Tesouro.
BBC News – Então, qual é a mensagem para o povo? Eles podem aguentar um pouco mais? Você poderia me dar um cronograma de quanto tempo as pessoas que estão passando por momentos difíceis terão que esperar?
Milei – Vejamos, a primeira coisa que você precisa entender é que não existem milagres na economia.
A coisa mais fácil, qual seria? Continuar como o governo anterior, imprimindo dinheiro. Bom, isso gera inflação e atinge os mais vulneráveis. Portanto, essa não é a receita. A receita é colocar a economia em ordem.
Se não fizéssemos o que fizemos, teríamos enfrentado uma crise que combina o pior do “Rodrigazo”, que foi a crise que tivemos em 1975, o pior da hiperinflação de 1989 e o pior do plano social de 2001– a mãe de todos os males.
Ou seja, se tivéssemos mantido políticas populistas, [estimo que] hoje teríamos uma inflação em torno de 15.000% e teríamos cerca de 95% de pobres e 60% de indigentes.
BBC News – Então parece que a mensagem para essas pessoas é simplesmente esperar um pouco mais.
Milei – Você não pode fazer mágica.
Tivemos que enfrentar um contexto de um país que já não cumpriu o acordo com o Fundo [Monetário Internacional]. Ou seja, um país que é um caloteiro em série, um país que teve duas hiperinflações sem guerra.
E nesse contexto não é possível gerar confiança instantaneamente. Isso significa que o investimento não reage instantaneamente.
Então você sofrerá as consequências de uma recessão no curto prazo. E foi isso que aconteceu do final do ano passado até agora.
O que os números estariam mostrando é que a Argentina atingiu o fundo do poço entre o mês de março e o mês de abril.
Na verdade, já temos setores que estão claramente em crescimento, como o setor de mineração, petróleo, gás e o setor agropecuário.
Muitos argumentam que a Argentina poderia estar emergindo na forma de um V. Mas não se pode fazer milagres.
BBC News – Gostaria de passar agora à política externa. O senhor prometeu aos argentinos um plano para que as Malvinas/Ilhas Falklands sejam argentinas. Como é esse roteiro especificamente?
Milei – Acreditamos que isto tem sempre de ser feito dentro de um marco de paz e como consequência de um processo de negociação de longo prazo, onde se levanta uma discussão adulta entre dois países que têm muito em comum e têm um elemento de discórdia.
Obviamente não é uma solução instantânea, mas uma solução que levará tempo.
Portanto, não vamos abdicar da nossa soberania e também não vamos ter uma situação de conflito com o Reino Unido.
O que procuramos é uma solução para estabelecer um diálogo para que, em algum momento, as Ilhas Malvinas voltem à Argentina.
BBC News – O que o faz pensar que o Reino Unido concordaria com isso? Porque eles deixaram muito claro que não querem negociar isso.
Milei – Bem, pode ser que hoje eles não queiram negociar e depois, mais tarde, queiram fazê-lo. Muitas dessas posições mudaram ao longo do tempo.
BBC News – Como o senhor vai convencê-los?
Milei – Vou tentar convencê-los de que este território é argentino e que, de acordo com as especificações que costumam ser utilizadas para defini-lo dessa forma, a Argentina tem direito e soberania sobre as ilhas.
BBC News – Mas o Reino Unido disse muito claramente que não está disposto a negociar esse ponto e usa o referendo realizado nas ilhas como prova de que não querem voltar a discutir esta questão. Como o senhor vai convencê-los? Quais ferramentas usaria?
Milei – Bem, isso não será discutido agora. Isso será discutido mais tarde.
BBC News – Que tipo de prazo o senhor ofereceria aos argentinos para isso?
Milei – Acredito que é uma negociação de longo prazo e que pode ser estabelecida da mesma forma que aconteceu com a China e Hong Kong.
Pode levar décadas
Sim, óbvio. Deve ser entendida como uma questão de Estado de longo prazo.
Não vamos abrir mão da nossa soberania, mas se não for o momento de discutir isso hoje, então será discutido em outra ocasião.
Acho que é uma posição muito mais séria e também temos muitos assuntos na agenda nos quais podemos trabalhar juntos e estamos dispostos a fazê-lo. Acho que é o jeito adulto de lidar com isso e sem dor.
BBC News – Você diria que não é uma prioridade para você agora?
Milei – Não estou dizendo que não seja uma prioridade. Estou dizendo que há um conjunto enorme de elementos em comum sobre os quais podemos trabalhar com o Reino Unido, sem ter que estar discutindo e brigando por uma questão que entendemos que a solução levará tempo, porque estamos indo pela via diplomática.
Em outras palavras, acreditamos em uma solução pacífica.
BBC News – Na sua opinião, a visita do ministro britânico David Cameron em fevereiro foi uma provocação?
Milei – Não, porque esse território está hoje nas mãos do Reino Unido. Ele tem todo o direito de fazer isso. Não tomo isso como uma provocação. Na verdade, tenho um diálogo de altíssima qualidade com David Cameron.
BBC News – O senhor ainda diria que admira Margaret Thatcher, que foi primeira-ministra durante a Guerra das Malvinas?
Milei – Mas aí temos que diferenciar. Houve uma guerra e perdemos. Isso não significa que não se possa reconhecer que quem estava do outro lado eram pessoas que faziam bem o seu trabalho.
E não admiro apenas Margaret Thatcher, admiro também Ronald Reagan nos Estados Unidos. E admiro profundamente Winston Churchill. E qual é o problema?
BBC News – Gostaria de passar a um tema diferente de política externa. O senhor se posiciona como um aliado muito próximo a Israel. O senhor concorda com alguns dos outros aliados próximos de Israel, como os EUA, que Israel deveria mostrar alguma moderação no conflito em Gaza?
Milei – Defendemos e apoiamos o direito à autodefesa do povo de Israel. E Israel realiza as suas operações de acordo com as regras internacionais.
Então, se existe um conjunto de regras internacionais para se movimentar nestes eventos e eles as respeitam, por que isso deveria ser questionado?
BBC News – O senhor ainda acha que Israel não cometeu nenhum excesso no conflito até agora?
Milei – Sim, obviamente, porque ainda não houve uma condenação formal.
No momento em que surgir qualquer excesso, haverá sérias condenações internacionais, e não opiniões.
BBC News – O senhor ainda planeja mudar sua embaixada para Jerusalém?
Milei – Planejamos transferir a embaixada argentina em Israel para Jerusalém Ocidental.
BBC News – O senhor teme que sua posição arrisque tornar a Argentina, que tem a maior comunidade judaica da região, um alvo para grupos terroristas, como aconteceu na década de 1990?
Milei – Isso é totalmente falso. Primeiro, porque a Argentina já sofreu dois ataques terroristas e a ligação com o Irã foi comprovada.
O segundo ponto é que existem outros países que manifestaram posições contrárias a Israel, posições neutras e também foram atacados, então essa não é uma condição sob a qual se expõe o país.
E, por outro lado, dada a nossa forma de ver o mundo, ter uma posição diferente seria covardia. E aqueles que são covardes são os que têm maior probabilidade de serem vítimas do terrorismo.
Porque, precisamente, o terrorismo tenta semear o terror e quanto mais covarde for a sua atitude, mais vítima você será dos ataques terroristas.
É fundamental que se tenha convicções. Que você decida estar do lado certo da vida, do lado certo do mundo.
Estamos do lado da liberdade, do lado dos EUA, do lado de Israel e do lado da Europa Ocidental.
BBC News – Vamos agora passar para outra parte do mundo. O senhor poderia me descrever em uma frase o que pensa de Xi Jinping?
Milei – Bem, não tenho afinidade com os sistemas comunistas. Acredito fortemente na liberdade.
Mas não o conheço pessoalmente para fazer um juízo de valor. Isso seria imprudente da minha parte.
O que posso dizer é que não tenho problemas com o fato de o setor privado argentino fazer negócios com setores chineses.
BBC News – O senhor ainda acredita, como disse na sua campanha, que os chineses são, nas suas palavras, “assassinos”?
Milei – Eu disse que o comunismo é um regime assassino. O comunismo assassinou 150 milhões de seres humanos. Quer dizer, tem sido a maior máquina assassina da história da humanidade.
Portanto, é muito difícil aderir a esse conjunto de ideias que tanto mal causou às pessoas porque, além disso, onde o comunismo foi aplicado foi um fracasso econômico, social e cultural.
Portanto, acredito na liberdade, não acredito em sistemas coletivistas, acredito na liberdade dos indivíduos, não no Estado que oprime os indivíduos.
BBC News – O senhor fala em termos duros sobre a China, mas não é verdade que não pode realmente mudar nada na sua relação com eles porque depende da China no comércio e investimento estrangeiro? O dinheiro chinês neste momento é uma tábua de salvação para a Argentina.
Milei – A única coisa que é uma tábua de salvação para a Argentina é fazer as coisas bem e estamos trabalhando ativamente nisso, independentemente do relacionamento com qualquer país.
Nós, como liberais, temos uma posição aberta com todos. Ora, o que podemos fazer em matéria comercial e financeira não tem necessariamente de ter uma contrapartida política.
BBC News – O senhor ainda usaria a palavra “assassinos” para descrever o governo chinês?
Milei – Vou continuar usando essa palavra para descrever o comunismo.
BBC News – Sua linguagem parece ter suavizado um pouco desde a campanha. Existe uma razão pela qual o senhor é menos crítico em relação ao governo chinês agora do que era então?
Milei – As coisas que continuo dizendo são sempre as coisas que eu disse. Sobre o comunismo eu sempre disse a mesma coisa.
Sou um liberal libertário, então você precisa entender que penso de forma diferente.
BBC News – Passando para os EUA, quem o senhor gostaria que ganhasse as eleições lá?
Milei – Olha, independentemente de quem ganhe, sou um aliado dos Estados Unidos, seja democrata ou republicano.
O que vou fazer é ter excelentes relações, sejam democratas ou republicanos, porque as minhas preferências não são o que importa. O relevante é em que lado do mundo eu decido estar.
BBC News – O senhor teria dito a Donald Trump, em uma conferência nos EUA, que esperava que ele vencesse. O que o senhor acha que vocês têm em comum?
Milei – O mais importante é que ele identifica com total clareza que o inimigo é o socialismo.
Milei – Isso não fazia parte das promessas de campanha. Embora eu tenha uma posição clara e pró-vida. Mas não foi uma promessa de campanha.
E não é algo que esteja hoje na agenda da Argentina.
BBC News – O senhor fez campanha com uma motosserra e modelou sua imagem com base em Elvis, nos Rolling Stones. E alguns o apelidaram de “O Louco”. O senhor tem medo de que sua reputação como “O Louco” faça com que algumas pessoas não o levem a sério? Ou acha que um pouco de loucura é o que o país precisa?
Milei – Veja, as pessoas supostamente sãs deste país, transformaram o país mais rico do mundo no 140º. Portanto, não me importo nem um pouco com os apelidos que os perdedores que afundaram este país possam me dar.
No fundo, todos aqueles que me adjetivaram e falaram essas coisas sobre mim hoje sofrem horrores, choram pelo reconhecimento internacional que tenho, porque quando vou para o exterior as pessoas ouvem o que eu digo e, acima de tudo, olham o que eu estou fazendo.
BBC News – Por último, presidente, quero fazer uma pergunta sobre o futuro. Muitos presidentes disseram que serão eles que reverterão os problemas econômicos da Argentina. O que faz o senhor pensar que pode ter sucesso onde tantos outros não tiveram?
Milei – Em primeiro lugar, se eu não acreditasse que conseguiria, não estaria sentado aqui. É preciso acreditar que isso pode acontecer.
Agora, a diferença em relação aos outros casos é que eu sei o que precisa ser feito, como precisa ser feito e tenho coragem de fazer.
Mas, acima de tudo, tenho a matéria-prima que outros não tiveram: disso estou convencido. Estou convencido de que podemos sair desta situação abraçando as ideias de liberdade.
E, dada a convicção que tenho, não me importa quantas pedras tenham no caminho, quantos obstáculos, quantas armadilhas me façam, não me importo, porque vou continuar em direção ao meu norte, que é a liberdade.
A grande diferença é a convicção. A chave é nunca desistir. Nunca desisti na minha vida. Não vou desistir agora.
Fonte: BBC
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