- Author, Joel Gunter
- Role, Da BBC News em Israel
Aviso: esta reportagem contém detalhes que alguns leitores podem achar perturbadores.
Por trás de portões altos com arame farpado de uma base militar no centro de Israel, longe dos olhos do público, mas ao lado de soldados, policiais e especialistas forenses, eles trabalham em uma tarefa quase impossível de imaginar do lado de fora: recolher os restos mortais das vítimas do ataque do Hamas que deixou 1,3 mil mortos.
Trabalhando até altas horas da noite, sob o brilho intenso dos holofotes, estava um grupo identificável por seus coletes amarelos brilhantes. Trata-se da Zaka, uma organização religiosa judaica que, desde o ataque, tem sido responsável por alguns dos trabalhos mais difíceis realizados em Israel.
A tarefa dos membros do Zaka é coletar todas as partes dos restos mortais das vítimas, incluindo sangue, para que elas possam ser enterradas de acordo com a lei religiosa judaica. A organização é chamada a atuar em eventos traumáticos, incluindo desastres naturais, suicídios e ataques extremistas.
Seus membros voluntários são quase todos judeus ultraortodoxos.
Quando o Hamas começou seu ataque violento no sul de Israel, na manhã do dia 7 de outubro, o voluntário Baroch Frankel, de 28 anos, desfrutava um sábado tranquilo em seu apartamento em Bnei Brak, uma cidade ortodoxa perto de Tel Aviv onde vivem muitos dos voluntários Zaka vivem.
No meio da manhã, ele ouviu pelo walkie-talkie do grupo que havia algum tipo de emergência em andamento.
Ele pegou seu kit de trabalho, contendo sacos para cadáveres, luvas cirúrgicas, protetores de sapato e pedaços de pano para absorver sangue. Entrou em seu carro e foi trabalhar.
A Zaka foi criada em 1995, mas tem raízes que remontam a 1989, quando seu fundador fazia parte de um grupo de voluntários religiosos que se reuniram para recuperar restos mortais das vítimas de um ataque extremista em Israel.
No costume judaico, os corpos devem ser recolhidos o máximo possível e todos os restos mortais disponíveis devem ser enterrados em conjunto. Os voluntários da Zaka garantem que isso seja feito de forma adequada à religião e, como diz o seu lema, com “verdadeira graça”.
Ainda estava escuro quando Frankel chegou ao local. Soldados israelenses trocavam tiros com o Hamas. Então ele ficou deitado na areia esperando até que fosse seguro.
Os voluntários da Zaka têm trabalhado desde então em todos os locais do ataque. Eles recuperam os corpos em turnos de duas horas, porque o trabalho é muito difícil e desgastante.
Lidar com os restos mortais de crianças foi o pior, disse Frankel. Quando ele foi para um kibutz atacado pelo Hamas, a polícia alertou que o cenário era difícil de ver – até mesmo para as equipes experientes em tragédias da Zaka.
Frankel encontrou crianças carbonizadas, corpos em pedaços por causa das explosões de granadas e famílias mortas a tiros dentro de suas casas. “Contei muitos bebês e pessoas carbonizadas”, diz ele. “Quando falo com você agora, vejo essas imagens novamente diante dos meus olhos.”
Por este trabalho, particularmente em momentos de violência, os voluntários Zaka são por vezes elogiados nas ruas de Israel quando passam com os seus coletes amarelos. Caminhando por seu bairro em Bnei Brak nesta semana, Frankel ignorou os elogios.
“Zaka é um serviço sagrado, e você não pede agradecimentos”, disse ele. “Os mortos não podem pagar de volta.”
Na noite de quarta-feira, os voluntários tinham acabado de terminar seu último trabalho de retirada de corpos no sul de Israel. Frankel estava dirigindo para o norte, até à base militar onde as vítimas estavam sendo analisadas pela perícia.
Dentro da base militar, havia cerca de 20 enormes unidades de armazenamento refrigerado, como contêineres, alinhadas para guardar os corpos.
Os rabinos e os voluntários Zaka trabalhavam para preservar a dignidade dos mortos, apesar da escala da operação e do estado de deterioração.
Eles tiveram o cuidado de fazer uma pausa para orações para cada uma das vítimas ali. Ortodoxos, os voluntários se reuniram a cada 15 minutos para fazer suas próprias orações enquanto o trabalho continuava.
Yacoub Zechariah, de 39 anos, vice-prefeito da cidade de Bnei Brak, estava em seu quinto turno consecutivo na base. “Fisicamente, são horas e horas sem dormir, carregando cadáveres. É um trabalho árduo”, disse ele. “Mas nós superamos isso.”
Zechariah, pai de cinco filhos, viu corpos de crianças com ferimentos e queimaduras terríveis, conta. Alguns foram decapitados, embora não estivesse claro como isso foi feito. Crianças foram mortas e tiveram suas mãos e pés amarrados com fios de telefone, diz.
Zechariah tirou cinco sacos para cadáveres de um caminhão. Cada um dos sacos tinha o mesmo nome marcado.
Ele retirou os cinco membros da mesma família do caminhão. Eram os pais e três crianças pequenas que foram assassinadas pelo Hamas dentro de casa, no kibutz de Kfar Azza.
“Ver uma família inteira morta é algo que quebra um ser humano”, disse Zechariah. “Tenho cinco filhos. Somos pessoas de fé e sabemos que tudo vem de Deus, mas isso é difícil de entender”.
Depois de verificar os rostos de cada membro família e encaminhá-los para o depósito, Zechariah caminhou um pouco e começou a chorar.
Poucas horas depois, às 5h, ele terminou seu expediente noturno e se sentou calmamente no carro para tomar café e fumar um cigarro. Depois dirigiu meia hora para casa, para sua família em Bnei Brak, dormiu duas horas e foi até a prefeitura para começar seu dia como vice-prefeito.
Do lado de fora dos portões da base, familiares de vítimas do Hamas estavam acampados em cadeiras à beira da estrada, apoiados por food trucks e doações de moradores da região.
Ortal Asulin dormia na calçada desde que soube, no sábado, que seu irmão, um ex-jogador de futebol chamado Lior Asulin, havia sido capturado no ataque do Hamas.
“Ninguém nos dá respostas, está uma grande bagunça”, disse ela, abalada. “Nós perguntamos a cada cinco minutos, todo mundo aqui nos conhece, nossos nomes, telefone, o nome do meu irmão e a foto dele. Ele era um jogador de futebol famoso, basta uma pessoa vê-lo lá dentro para saber quem é ele.”
Naquele momento, Frankel a ouviu e reconheceu o nome do ex-jogador. “Eu o vi”, disse Frankel. “Eu vi o rosto dele, tenho certeza.”
Ortal caiu na calçada, chorando. O resto da família correu para perto de Frankel enquanto ele tentava, em vão, entrar em contato com um colega que estava dentro do posto para confirmar que o corpo de Lior havia sido visto. A polícia disse não ter informações e que não deixaria a família entrar.
“Não é possível localizar o corpo no momento”, disse um sargento da polícia. “No final, eles vão removê-lo, estão fazendo tudo o que podem, mas precisam de algum tempo.”
Muitas conversas semelhantes ocorreram fora da base, disse o sargento da polícia, que não teve permissão para se identificar.
“Há muitas pessoas mortas lá dentro e precisamos ter 100% de certeza sobre as identidades delas antes de contarmos à família”, disse. “Já passaram cinco dias do ataque e isso afeta os corpos, entendeu? Não podemos cometer erros”.
Para o povo judeu, o atraso no enterro de um corpo pode acrescentar uma enorme dor à perda. Eles acreditam que uma pessoa deve ser enterrada o mais rápido possível para que sua alma possa subir ao céu. E até que os mortos sejam enterrados, a família não pode começar formalmente o luto. Tal como a alma da pessoa que morreu, eles estão no limbo.
Lior Asulin, o jogador de futebol, foi finalmente identificado e enterrado na quinta-feira.
Zaka também está envolvido nestas etapas finais do processo. Muitos dos corpos vão da base militar para um centro administrado da Zaka em Tel Aviv, onde na quinta-feira o voluntário Israel Hasid se preparava para recebê-los.
Ele esperava que o trabalho continuasse 24 horas por dia e durante todo o fim de semana, por isso pediu permissão especial a um rabino para trabalhar no sábado.
Os policiais são encarregados de fazer exames técnicos e de DNA, além de checar registros dentários, mas, caso contrário, Hasid e os outros voluntários da Zaka assumem a responsabilidade por toda a limpeza necessária antes do enterro.
Eles lavam os corpos com água retirada de um rio que corre na região, além de limpá-los com algodão. Eles cortam os cabelos e as unhas, se necessário.
“Nestas circunstâncias, devido à natureza deste ataque, em muitos casos o trabalho não pode ser perfeito”, disse Hasid. “Mas faremos tudo o que for possível.”
No final do processo, os voluntários Zaka embrulham cuidadosamente os restos mortais de cada pessoa em um lençol de linho branco e entregam tudo aos agentes funerários.
Segundo Hasid, isso é feito para que as almas dos mortos possam escapar e as suas famílias comecem a sofrer.
Colaboração de Idan Ben Ari.
Fonte: BBC
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