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Tecuichpo foi a filha primogênita de Montezuma 2°, o tlatoani que recebeu Hernán Cortés na imponente capital dos mexicas, Tecnochtitlán.

  • Author, Marcos González Díaz
  • Role, Correspondente da BBC News Mundo no México

Ela era herdeira do poderoso imperador mexica. Mas, com a chegada dos espanhóis, viu seu mundo desmoronar e correu o risco iminente de perder seus privilégios – e até o seu nome.

Ichcaxóchitl Tecuichpo, filha primogênita de Montezuma Xocoyotzin – o Imperador Montezuma 2º – e Tecalco, foi batizada como Isabel Montezuma quando os conquistadores espanhóis chefiados por Hernán Cortés (1485-1547) assumiram o poder no território hoje ocupado pelo México.

Na sua história apaixonante, os especialistas destacam exatamente a sua capacidade de adaptação, de forma astuta e inteligente, à nova realidade trazida pelos espanhóis para o continente americano.

“É uma figura que simboliza a transição entre esses dois mundos, que precisou buscar assistência e aprender para ocupar sua posição privilegiada no novo regime colonial”, segundo a historiadora mexicana Raquel Urroz.

Ou seja, ela soube não só adaptar-se ao modo de viver da nova sociedade, mas também tirar todo o proveito possível do novo sistema jurídico espanhol, proclamando-se a legítima herdeira de Montezuma para reivindicar seus privilégios e continuar aumentando seu patrimônio.

Nascida no início do século 16, a pequena Tecuichpo foi testemunha em primeira mão do esplendor de Tenochtitlán – a fascinante e espetacular capital mexica, precursora da atual Cidade do México e governada por seu pai Montezuma.

Como o conceito de realeza foi introduzido nas Américas pelos europeus, não é totalmente correta a crença popular de que a filha do governante maior dos mexicas, chamado de tlatoani, teria sido a última “princesa” do seu povo.

“Ela era uma espécie de princesa, mas acredito que o termo a ser utilizado é algo secundário”, explica Urroz, em entrevista à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC). “O principal é entender que o seu nível na pirâmide social era o mais alto que existia.”

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Tecuichpo conseguiu adaptar-se para sobreviver após a conquista espanhola do território que hoje forma o México.

Casamentos e mortes

Seu pai Montezuma foi quem recebeu Cortés no histórico encontro de 1519. Mas, quando o imperador foi capturado pelos espanhóis, a pequena Tecuichpo vivenciou a primeira das muitas tragédias que marcariam sua vida.

“Ver como os espanhóis humilharam seu pai e como seu povo o enfrenta e ele morre com as pedras atiradas pela sua própria gente… acredito que isso deva ter sido o mais difícil para uma menina como ela”, declara María Castañeda de la Paz, historiadora e pesquisadora espanhola, da Universidade Autônoma do México (UNAM).

Ao longo da vida, ela foi unida em matrimônio com diversos líderes da classe alta, tanto na fase pré-hispânica quanto na era colonial. Na época, a aliança matrimonial era a forma de estender e ampliar o poder das mulheres de elite como ela.

Ainda na fase mexica, ela foi casada com seu tio Cuitláhuac, que substituiu seu irmão Montezuma como tlatoani até morrer de varíola, doença trazida pelos espanhóis.

Pouco depois, ela se uniu a Cuauhtémoc, que seria o último governante de Tenochtitlán até a vitória espanhola em 1521. Ele foi assassinado anos depois.

Depois da conquista, Tecuichpo ficou a cargo de Hernán Cortés e foi batizada com o nome de Dona (título que reconhecia sua nobreza) Isabel, em homenagem à governante de Castela, na Espanha. Sua adaptação fez com que a filha de Montezuma conseguisse viver em paz, como parte do novo grupo no poder, na nova sociedade espanhola das Américas.

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Após a chegada dos espanhóis, Tecuichpo foi batizada com o nome de Isabel de Montezuma.

E as alianças matrimoniais continuaram colaborando para isso. Cortés chegou a marcar sua união com até três dos seus representantes espanhóis de confiança, depois que os dois primeiros morreram por diferentes razões.

Tanto Cortés quanto o rei espanhol Carlos 5º (1500-1558) respeitaram a linhagem da herdeira do imperador dos mexicas, outorgando a ela um dos títulos mais importantes da época. Este privilégio, aliado à sua ascendência de nobreza, colaborou para que muitos conquistadores quisessem se casar com ela.

Mas, em meio aos seus casamentos espanhóis, Isabel ficou grávida de Cortés, após uma relação considerada forçada e abusiva.

Este certamente é o motivo por que ela sempre rejeitou a filha, que recebeu o nome de Leonor, e por que algumas fontes garantem que ela não foi incluída no testamento da mãe.

“Quando fica sabendo que ela está grávida, Cortés casa Isabel com um dos seus amigos conquistadores, mas ele aceitou e reconheceu sua filha”, explica Castañeda de la Paz. “Com relação a Isabel, as fontes e testamentos variam, mas, em uma versão dos documentos, fica claro que ela deixou um dinheiro e benefícios. Elas não se desentenderam.”

Mas por que o conquistador espanhol decidiu não se casar com a herdeira de Montezuma, o que poderia ter facilitado a união entre dois mundos, com os representantes das duas culturas?

“A visão de Cortés era muito mais ampla”, explica Urroz. “Ele não queria ficar administrando terras com uma esposa. Ele era explorador e sua ambição era de continuar ampliando os domínios da Coroa espanhola.”

“Este poderia ter sido o melhor casamento que poderia ter se estabelecido no México, mas Cortés tinha uma agenda muito clara”, afirma Castañeda de la Paz. “Embora amasse o México, ele queria voltar para a Espanha. E conseguiu, pois o rei programou um casamento para ele com uma dama da Corte espanhola, que era o que ele desejava.”

Os documentos históricos afirmam que Isabel Montezuma foi uma mulher piedosa e generosa com os criados e com todas as pessoas que trabalhavam nas suas terras.

Seu testamento deixa claro que ela outorgou a liberdade a todos os “indígenas” que viviam sob sua tutela e encarregou-se de pagar suas dívidas e os salários dos seus trabalhadores.

“Esta forma de ser tão cristã, tão moral e dadivosa era a maneira de ter prestígio e integrar-se com sucesso ao novo regime colonial”, destaca Urroz. E essa generosidade, por sua vez, também serviu para que ela mantivesse o respeito do seu antigo povo mexica, agora dominado pelos espanhóis.

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Hernán Cortés e Montezuma 2º encontraram-se pela primeira vez em 1519.

‘Exemplo de resistência’

Mas, como ocorre com boa parte dos personagens históricos, a importância de Isabel Montezuma varia de acordo com o ângulo de observação de cada um.

Durante as celebrações que marcaram os 500 anos da queda de Tecnochtitlán em 2021, o atual governo mexicano destacou Isabel Montezuma em suas publicações como um exemplo que “representa um símbolo de resistência indígena”, que “sempre foi leal ao seu povo e à sua origem”.

Mas outras vozes se perguntam por que elogiar sua resistência se ela acabou se convertendo ao catolicismo, casando-se com espanhóis e tendo uma filha com o líder dos conquistadores.

“Esta é uma boa síntese das contradições”, afirma Urroz. “Ela soube conduzir formas muito cristãs, mas provavelmente carregava na intimidade o seu mundo, onde viveu na infância.”

“Eles chegaram e disseram ‘você aqui é batizada e é senhora à maneira espanhola’. O que você faz? Acredito que você aparenta algo para sobreviver em uma nova ordem social (…)”, acrescenta a historiadora. “Existe uma invasão, você trilha o caminho da sobrevivência e se adapta de forma inteligente.”

Considerando sua mesma origem e suas relações com Cortés, é inevitável relembrar também a figura de Malinche, outra personagem indígena mexicana que passou de herdeira de um pai poderoso para escrava e, depois, tradutora, conselheira e mãe de outro filho do conquistador.

Para Castañeda de la Paz, “a vida de ambas teria sido muito diferente se não tivessem chegado os espanhóis. Mas o que fizeram foi agir de acordo com seu tempo – elas tiveram filhos e estabeleceram alianças matrimoniais para consolidar posições políticas.”

“Mas nunca podemos considerá-las traidoras”, prossegue a historiadora. “Elas simplesmente seguiam o determinado pelos seus pais ou maridos, como aconteceu por muito tempo na história.”

O que ninguém coloca em dúvida sobre Tecuichpo, ou Isabel Montezuma, é sua capacidade de adaptação e sua astúcia para sobreviver. Ela simboliza, como poucos personagens históricos, a mistura entre dois mundos que se seguiu à conquista espanhola do atual território do México.