“Olhe para mim: eu pareço uma americana para você? Você sabe quantas vezes fui chamada na escola de bean-eater (expressão usada de forma pejorativa nos EUA para se referir a latino-americanos, sobretudo mexicanos, que pode ser traduzida literalmente como “comedor de feijão”)? Como eu vi minha mãe escravizar a si mesma para conseguir alguns documentos oficiais? E você me pergunta por que isso mexe tanto comigo?”
Na vigília em homenagem aos migrantes encontrados mortos na segunda-feira (27/06) em um caminhão abandonado em San Antonio, no Estado americano do Texas, e àqueles que morreram mais tarde nos hospitais da cidade — 53 pessoas no total, sendo 40 homens e 13 mulheres —, Wanda Pérez Torrescano não consegue esconder sua raiva.
“Estamos homenageando pessoas cujas famílias ainda não sabem que morreram, que ainda estão esperando aquele telefonema que diz: ‘Mãe, cheguei na fronteira, estou bem'”, afirma ela energicamente, como o microfone na mão, diante das dezenas de pessoas reunidas na quarta-feira (29/06) no Travis Park, no centro de San Antonio.
“E eu sei disso porque estive do outro lado do telefone.”
Nascida na Cidade do México e criada em San Antonio, ela não é a única que sente que a maior tragédia migratória de que se tem memória em solo americano é sua tragédia também.
De maneira igualmente solene, no dia anterior, Jessica, de Honduras, relembrou como ela mesma esteve no lugar dos migrantes que ficaram sem água ou ar-condicionado em um caminhão com temperatura de 40°C do lado de fora.
“Eu vim para cá com 14 anos, também em um caminhão, e perdi a consciência por causa do calor”, disse emocionada durante a vigília.
Questionada mais tarde se queria contar sua história para a BBC, ela respondeu:
“Isso continua despertando muitas emoções em mim. Ainda tenho muito o que processar e não me sinto pronta para dar detalhes”.
Enquanto tudo isso acontecia no centro histórico de San Antonio, outras pessoas homenageavam os mortos no local onde o caminhão foi encontrado: uma estrada empoeirada entre uma madeireira e uma linha de trem, em uma paisagem repleta de oficinas de peças de automóveis.
As duas primeiras cruzes — coloridas — foram colocadas na terça-feira por Angelita Olvera, filha de um boliviano, e Debra Ponce, que alerta que “é preciso ficar de olho no Texas, porque os direitos civis como conhecemos vão mudar”.
Desde então, aquele cantinho se encheu de flores e velas, como as colocadas por Gabriela, de Honduras, e suas duas filhas, e com cartazes pedindo respeito e solidariedade. O artista Roberto Márquez, que atravessou de Tijuana para os Estados Unidos há 40 anos, está pintando um mural que lembra Guernica, de Pablo Picasso.
Sim, a migração está sempre presente nesta cidade, localizada a apenas 250 km ao norte da fronteira com o México.
Cidade-chave para o tráfico de migrantes
Especialistas e organizações que a BBC consultou para esta reportagem — assim como autoridades que pediram para que seus nomes não fossem publicados — descrevem a cidade de 2,5 milhões de habitantes como um “centro de trânsito”, um local estratégico em que convergem várias rotas de migrantes, cercado por rodovias que cortam o país de norte a sul e de leste a oeste.
Edward Reyna, segurança da madeireira localizada a poucos metros de onde o caminhão foi deixado, já perdeu a conta das vezes que viu mexicanos e centro-americanos, entre pessoas de outras nacionalidades, saltarem do trem que passa por ali.
“Sabia que mais cedo ou mais tarde alguém se machucaria”, disse ele à BBC.
“Os cartéis que os trazem não se importam com nada.”
Os migrantes que ele encontra durante seus turnos de trabalho são aqueles que não foram interceptados pelas autoridades de imigração.
Em maio, o Serviço de Alfândega e Proteção de Fronteiras (CBP, na sigla em inglês) registrou quase 240 mil “flagrantes”, um terço a mais do que no mesmo mês do ano anterior.
Isso apesar de o governador do Texas, o republicano Greg Abbott, ter lançado a Operação Lone Star em março de 2021 e dois meses depois ter emitido uma “declaração de desastre” que permite a ele instalar a Guarda Nacional na fronteira.
Tudo isso para tentar impedir o aumento de travessias na fronteira, que ele atribui às políticas de imigração do presidente americano Joe Biden.
Mas os migrantes continuam a chegar e transitar pelo Estado, alguns escondidos em caminhões, que é uma forma bastante habitual de fazer as coisas nessa zona de fronteira e em outras, diz Guadalupe Correa-Cabrera à BBC.
Professora da Universidade George Mason, na Virgínia, Correra-Cabrera estuda há anos as rotas migratórias, incluindo a que vai de Nuevo Laredo, no México, a Laredo, nos Estados Unidos, passando pelo mais importante posto alfandegário terrestre de mercadorias do hemisfério.
Isso por si só torna impossível controlar todas as cargas que passam por aquela ponte todos os dias, explica a especialista.
“Não há números oficiais, mas estima-se que menos de 5% (das cargas) sejam examinadas.”
Ela esclarece, no entanto, que o tráfico de migrantes em caminhões não começa necessariamente no México. Com base em depoimentos que ela mesma compilou, Correra-Cabrera conta que, em alguns casos, os traficantes os pegam em caminhões já do lado do Texas.
Isso é o que os investigadores do Departamento de Segurança Nacional que lideram a investigação acreditam ter acontecido no caso do caminhão abandonado na segunda-feira, segundo afirmou o congressista Henry Cuellar à agência de notícias AP.
Aqueles que vão; aqueles que ficam
Independentemente de como chegam, seja qual for o meio de transporte, grande parte dos migrantes que chega a San Antonio está apenas de passagem, confirmam as autoridades de imigração. Eles costumam pernoitar em alojamentos fornecidos por diferentes organizações que lhes dão suporte, no aeroporto ou na rodoviária.
Mas há aqueles que ficam, como Lemi, um cubano que chegou há quatro anos e trabalha como taxista na cidade. Seu plano é, em algum momento do ano que vem, ir com a esposa e o filho de 11 meses para a Flórida.
Ou seu compatriota José, que depois de passar por grandes dificuldades na selva de Darién, entre a Colômbia e o Panamá, no Equador e em outros países por onde passou, cruzou para os EUA e se entregou à imigração em maio.
Assim que foi solto, pegou um ônibus — no qual me contou sua história — com destino a San Antonio.
Outro que ficou na cidade, pelo menos por enquanto, é Carlos, um migrante venezuelano de 34 anos que também atravessou vários países para chegar até lá.
Quando chegou à fronteira sul do México, decidiu que a melhor maneira de ir para o norte era de motocicleta.
“Em Monclova (cidade mexicana na fronteira com os EUA), sofri um acidente, me operaram e agora tenho uma placa aqui”, diz ele, apontando para a coxa esquerda.
Enquanto recupera a força na perna para poder trabalhar, ele está na Pousada Guadalupe, dirigida pelo padre Phil Ley.
Natural de Indiana, ele montou o primeiro abrigo para migrantes em San Antonio há 16 anos.
“Comecei a receber pessoas enviadas de hospitais, porque estavam feridas ou eram diabéticas e precisavam de diálise. Até que um advogado (especializado em imigração) me pediu permissão para abrigar um cliente que tinha acabado de completar 18 anos e não podia mais ficar no Centro de Imigração e Controle Alfandegário (ICE, na sigla em inglês) para menores) para menores”, conta ele à BBC.
“Foi assim que a notícia se espalhou entre outros advogados”, diz ele, e seu abrigo acabou sendo especialmente para jovens migrantes. Na quarta-feira, havia 21 deles lá.
“Amanhã chega outro, e no sábado mais um”, afirma.
Questionado sobre o que aconteceu com o caminhão abandonado com migrantes dentro, ele diz que é uma desgraça que “o entristece e o enfurece ao mesmo tempo”.
São os mesmos sentimentos que Wanda Pérez compartilhou com os presentes na vigília de quarta-feira, pessoas que sentem a tragédia como sua, os mesmos sentimentos de todos que conversaram com a BBC para esta reportagem e descreveram o evento como um “assassinato em massa”.
“Tragédias como esta tornam o problema visível, ao mesmo tempo que nos fazem pensar em quão sofisticadas são estas redes, quantas pessoas e quanto dinheiro está envolvido, e quão pouco sabemos sobre tudo isso”, conclui a pesquisadora Correra-Cabrera.
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