- Almudena de Cabo
- Da BBC News Mundo
Um plano do governo britânico para lutar contra o Exército nazista com uma arma biológica terminou com uma pequena ilha do noroeste da Escócia contaminada por antraz e fechada ao público por quase cinco décadas. O alcance total da operação é, até hoje, um mistério.
A desabitada ilha de Gruinard, que passou a ser conhecida como “ilha do antraz” ou “ilha da morte”, foi declarada segura em 1990, mas a vida nesse santuário de aves, a menos de uma milha da costa escocesa, nunca voltou ao normal.
Tudo começou no fim de 1941, em plena Segunda Guerra Mundial. Naquele ano, ante a ameaça de uma possível invasão alemã e o medo de que os nazistas pudessem ter desenvolvido uma bomba biológica, o premiê britânico Winston Churchill (1874-1965) ordenou aos cientistas de uma instalação inglesa confidencial chamada Porton Down que pensassem em alguma arma para lançar contra os alemães.
Após alguns meses de pesquisa, a equipe dessa instalação militar encontrou uma forma de usar uma cepa virulenta do bacillus anthacis — também conhecido como antraz — contra os alemães.
Era o nascimento da Operação Vegetariana.
Segundo Paul Fildes, na época diretor de biologia do laboratório secreto do Ministério da Defesa britânico, se o Reino Unido lançasse sobre a Alemanha ração e forragem contaminados por antraz, o abastecimento de carne e produtos lácteos seria gravemente afetado, e provavelmente haveria um grande surto entre a população humana e uma onda de pânico.
Entusiasmadas com a ideia, em 1942 as autoridades militares britânicas tentavam testar o plano com urgência, mas onde? Como? Era necessário encontrar um lugar remoto de testes, que fosse desabitado e isolado, mas acessível.
A remota ilha de Gruinard, na metade do caminho entre Gairloch e Ullapool, e de apenas 2km², foi rapidamente avaliada pelo Ministério da Defesa em 1942.
Finalmente, as autoridades decidiram comprar por 500 libras a ilha de seus proprietários, Molly Dunphie e seu marido, o coronel Peter Dunphie, um confidente próximo de Churchill naqueles tempos de guerra. Assim que a bela e desabitada ilha se converteu em testemunha da tentativa de desenvolvimento de uma arma de destruição em massa.
O experimento
O que realmente aconteceu na ilha foi fonte de mistério e rumores até que um vídeo do Ministério da Defesa deixou de ser sigiloso e mostrou mais detalhes do experimento.
“Eles queriam testar a viabilidade do antraz como arma e testar seus efeitos”, explica à BBC News Mundo (serviço de notícias em espanhol da BBC) o historiador escocês Rory Scothorne.
Os cientistas de Porton Down guardaram as bombas de antraz e seguiram ao norte. Ao chegar lá, transportaram à ilha 80 ovelhas, que foram colocadas em caixas individuais, enfileiradas, para receber uma nuvem tóxica de antraz.
A cepa escolhida era tão virulenta que todas as ovelhas morreram em 3 dias.
“Vi uma nuvem que corria por cima da terra e se aproximava dos animais, em fila… era antraz”, disse uma testemunha ocular do evento em uma entrevista feita 20 anos depois pela BBC e compiladas agora para o documentário “The Mystery of Anthrax Island” (“O Mistério da Ilha do Antraz”) de John MacLaverty, para a BBC Scotland, divisão da BBC na Escócia.
“No experimento, viram que o antraz era muito eficiente contra ovelhas, então (o experimento) foi classificado de bem-sucedido. No entanto, depois do teste, decidiram que o antraz não seria uma arma eficiente contra a população humana”, diz Scothorne. O motivo era sombrio: “Embora potencialmente pudesse ser vista como uma arma econômica, por afetar a terra e a agricultura, havia armas biológicas mais eficientes para serem usadas contra pessoas.”
O antraz é uma bactéria letal, especialmente se inalada, e resulta em morte em quase todos os casos, mesmo com tratamento médico.”A bactéria forma esporas. Se elas estiverem no ar e você as respirar, elas entrarão em seu sistema respiratório, chegarão ao pulmão e as pequenas sementes formarão as bactérias, que começarão a crescer e causarão a morte. É bastante letal”, explica a microbiologista Clare Taylor ao documentário da BBC.
Além disso, o antraz pode permanecer no solo por anos. “As esporas podem durar 40 a 50 anos, mas, sob algumas condições, podem seguir sendo viáveis mesmo depois de 200 anos”, prossegue Taylor.
Consequências
Os cientistas não calcularam, em 1942, o alcance de expor os animais ao antraz em uma ilha tão próxima à costa escocesa. Depois de vários testes, eles comprovaram que a maior parte do solo da ilha estava contaminado — e a contaminação havia chegado às zonas costeiras da Escócia.
Seis meses depois do experimento, entre 30 e 50 ovelhas, sete vacas, dois cavalos e três gatos morreram. Algo que o governo tentou ocultar.
“Eles [o governo britânico] enviaram agentes ao norte para analisar tudo e pagaram indenizações aos fazendeiros, mas também tinham uma história de fachada para acobertar o ocorrido: disseram que as compensações vinham do governo grego, como se o antraz tivesse vindo de um barco grego que passou por ali e infectou a região, em vez de dizer que foi um experimento do governo britânico”, diz Scothorne. “Dessa maneira, evadiam a responsabilidade pelo ocorrido.”
Em 1944, o acesso à ilha foi completamente proibido, uma vez que era propriedade do governo. Só 24 anos depois do experimento que cartazes passaram a advertir para a presença do antraz.
A ilha de Gruinard, recoberta por uma cepa altamente contagiosa, se tornou um dos lugares mais perigosos da Terra e foi colocado sob rígida quarentena.
Gerações de escoceses das Highlands (terras altas) cresceram sob a sombra da ilha proibida, relata o documentário.
Ninguém sabia exatamente o que havia acontecido ali, mas todos sabiam que o local havia sido usado pelo Ministério da Defesa para algum experimento misterioso e que não deveriam se aproximar da “ilha da morte”.
Tudo permaneceu oculto à opinião pública durante décadas.
A história vem a público
“As pessoas sabiam que a ilha estava contaminada, mas não se falava disso na imprensa. Houve um momento em que o governo se dispôs a descontaminar a ilha. Foi em 1971 e uma investigação chegou à conclusão de que era caro demais para se descontaminar a ilha, e não havia pressão suficiente para que isso fosse feito”, explica Scothorne.
Tudo mudou em 1981, quando um grupo clandestino chamado Dark Harvest Commandos enviou punhados de solo contaminado recolhido em Gruinard às instalações de Porton Down. O grupo assumiu a responsabilidade em uma carta enviada aos jornais, afirmando que tinha 136 kg de terra prontos para serem enviados a outros alvos.
Os cientistas analisaram a terra e confirmaram que ela vinha da ilha escocesa e estava contaminada por antraz.
A demanda do grupo era simples: eles queriam a limpeza de Gruinard.
“Eles queriam expor o governo britânico por ter infectado terra firme escocesa”, detalha Scothorne. “Expuseram um dos maiores segredos da história do século 20. Expuseram que o governo havia testado armas químicas em terra escocesa de um modo que poderia ter prejudicado pessoas.”
Para reforçar a seriedade de suas intenções, o grupo enviou um segundo pacote, desta vez ao congresso do Partido Conservador na cidade de Blackpool, ao norte de Liverpool. Isso desencadeou pânico nacional, e a história chegou à imprensa internacional. No entanto, esse segundo pacote não tinha terra contaminada, segundo análises.
“A perseguição policial do grupo nunca levou a prisões, mas pouco depois dos incidentes o governo enviou cientistas à ilha para examinar a possibilidade de fazer com que Gruinard voltasse a ser apta a ser habitada por animais e seres humanos”, explica o historiador.
Descontaminação
Cientistas do governo e funcionários do Ministério da Defesa haviam visitado a ilha periodicamente para analisar o solo entre 1943 e 1981, sempre com o mesmo resultado. Ainda havia uma quantidade letal de antraz na terra.
Uma análise do Ministério em meados dos anos 1970 concluiu que qualquer operação de limpeza custaria dezenas de milhões de libras e que seria menos custoso manter a ilha sob quarentena. No entanto, depois da ação do Dark Harvest, descobriu-se que os avanços tecnológicos tonariam possível limpar a ilha a um preço menor, de 500 mil libras, e o plano avançou.
A terra de Gruinard foi tratada com uma solução de água salgada e o composto químico formaldeído. Amostras do solo foram analisadas em Porton Down, até que em 24 de abril de 1990 a ilha foi declarada pelo Ministério da Defesa como livre de antraz.
No entanto, veio a surpresa quando o comando do Dark Harvest acusou, em seu comunicado final, que a terra analisada não procedia da ilha, mas sim da costa em frente à ilha.
“Até hoje não sabemos se a terra proveio da ilha ou da costa. Os cientistas que a analisaram disseram que ela coincidia com a da ilha, mas também pode ter sido de terra da costa”, diz Scothorne. “Podemos acreditar ou não no Dark Harvest. (…) Não sabemos até hoje quem eram os membros do Dark Harvest, e o governo nunca analisou a terra da costa, apesar que o próprio governo soubesse que era possível que a costa escocesa estivesse contaminada.”
Em um memorando interno de dezembro de 1981, que teve o sigilo retirado em 1996, o então diretor de Porton Down, Rex Watson, escreveu: “Ao menos em uma ocasião um teste (de 1942) foi realizado quando a direção do vento estava no limite do seguro, então é possível que uma ou mais nuvens de antraz tenham chegado a terra da costa”.
No entanto, outro documento do Ministério da Defesa de maio de 1982 deixa claro que “seria absurdamente caro analisar toda a área que poderia estar infectada”.
A história da ilha, hoje estéril, é para muitos um lembrete permanente de todos os estragos que uma guerra química e biológica pode causar.
Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!
Você precisa fazer login para comentar.