- João Fellet – @joaofellet
- Da BBC News Brasil em São Paulo
“Onde todos estão retrocedendo, nós estamos avançando, porque o objetivo é ganhar almas, é salvar vidas, é levar à vida eterna.”
Com essas palavras, Eduardo Bravo, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), definiu a estratégia da igreja fundada por Edir Macedo na guerra da Ucrânia.
A fala foi dita em 21 de fevereiro, um dia após o início do conflito, num programa televisivo da Universal que teve a participação de dois jovens missionários da igreja que haviam acabado de desembarcar na Ucrânia.
Desde então, enquanto milhões de pessoas fugiam dos ataques russos, a denominação brasileira inaugurou seu oitavo templo na Ucrânia e mobilizou suas unidades em outras nações europeias para receber refugiados ucranianos.
Outras igrejas brasileiras também têm se engajado na crise ucraniana, oferecendo abrigo e alimentos a refugiados ou até mesmo custeando seu transporte até o Brasil.
Para alguns grupos missionários, a crise humanitária na Europa oferece uma oportunidade para a evangelização, e a Ucrânia é um país estratégico para a expansão evangélica no continente.
Por outro lado, a perspectiva de uma vitória da Rússia no conflito gera temores entre grupos protestantes (leia mais abaixo).
‘Plantação de igrejas’
A ação de grupos evangélicos na crise ucraniana é atribuída, em parte, à importância do país na difusão da fé evangélica no Leste Europeu e na Ásia Central.
A Association of Baptists for World Evangelism (ABWE), uma das principais organizações missionárias do mundo, e que atua no Brasil, diz em seu site que a independência da Ucrânia em relação à União Soviética, em 1991, ampliou a liberdade religiosa no país e permitiu a “plantação de igrejas (evangélicas)”.
Como consequência, diz a organização, a “Ucrânia se tornou uma base para o envio de missionários para a Eurásia e Ásia Central, incluindo países como a Rússia, o Cazaquistão e o Uzbequistão, onde há pouca ou nenhuma liberdade religiosa”.
Uma das vantagens de usar a Ucrânia como base para o envio de missionários tem a ver com a língua russa, amplamente falada na região. Igrejas que formem sacerdotes ucranianos podem depois enviá-los a países vizinhos.
Outro fator que atrai missionários para a região é a presença de “povos não alcançados”, como esses grupos se referem a comunidades não cristianizadas. É o caso dos tártaros-crimeanos, minoria étnica de religião muçulmana que habita a Crimeia, região na fronteira entre Rússia e Ucrânia, hoje ocupada por forças russas.
Outro chamariz é a grande população local. Só a Ucrânia tem 44 milhões de habitantes. A Rússia, 146 milhões.
‘Grande mar de almas’
Em texto publicado em 2018, o bispo da Universal Eder Figueiredo se refere à Europa Oriental como “um grande mar de almas”.
A denominação brasileira está na Ucrânia desde 2006 e tem 17 pastores no país.
Em 24 de abril, a igreja inaugurou um templo em Lviv, cidade no oeste da Ucrânia que tem recebido grande número de refugiados.
Há outros sete templos da Iurd no país, onde a ampla maioria da população é cristã ortodoxa.
Segundo uma reportagem da TV Universal, a abertura da unidade em Lviv atraiu “centenas de pessoas”. “Na contramão do terror, o trabalho da Universal não parou”, disse a emissora.
Naquele mesmo dia, segundo a TV Universal, “muitos ucranianos tomaram a decisão de se batizar nas águas” num culto da Iurd na capital do país, Kiev.
Fuga para a Polônia
Mas a intensificação da operação da Universal na Ucrânia tem ocorrido em meio a grandes dificuldades.
Em 28 de fevereiro, o pastor Tiago Casagrande, que chefia a operação da Universal na Ucrânia, disse ter passado quatro noites sem dormir enquanto fugia de Kiev para a Polônia.
Na época, temia-se que a Rússia pudesse atacar a capital ucraniana a qualquer instante.
Ao lado de sua esposa, Ana Cláudia Casagrande, o pastor relatou os percalços da viagem ao bispo da Universal Renato Cardoso.
Durante a conversa, publicada no canal de Cardoso no YouTube, Casagrande chorou copiosamente e chegou a abandonar a transmissão por alguns instantes.
Nesse momento, a esposa do pastor assumiu a palavra e disse ao bispo que o casal pretendia voltar à Ucrânia o quanto antes.
“A gente sabe que vai ser uma oportunidade ainda maior para levar a palavra, para ganhar mais almas”, afirmou.
Após a fuga, o casal passou a trabalhar na entrega de donativos da Universal a refugiados ucranianos na Polônia. O país é o principal destino das cerca de 14 milhões de pessoas que deixaram a Ucrânia desde o início da guerra.
Em nota à BBC, a Universal disse que já destinou a refugiados ucranianos 205 toneladas de donativos, entre alimentos, roupas e produtos de higiene.
A igreja tem mobilizado suas estruturas em outros países europeus para atender os refugiados. Na Moldávia, por exemplo, um texto no site da Universal diz que as atividades do Sábado de Aleluia reuniram 500 pessoas, das quais 130 eram refugiadas ucranianas.
A igreja afirma que naquele dia 40 pessoas “se uniram à fé”, ou seja, foram convertidas.
Feitiçaria e bruxaria
Uma das estratégias da Universal na Ucrânia tem sido adaptar o discurso que ela usa no Brasil contra crenças afrobrasileiras.
Em 2013, a igreja lançou na Ucrânia uma tradução do livro “Orixás, caboclos e guias – deuses ou demônios?”, de Edir Macedo, o fundador da Universal.
Um vídeo divulgado pela Iurd naquela época diz que “macumbaria, feitiçaria, bruxaria… essas superstições têm feito parte da cultura ucraniana”.
Em setembro de 2021, o próprio Edir Macedo esteve na Ucrânia e pregou aos fiéis locais, num sinal da importância do país para a estratégia global da igreja.
Na ocasião, o fundador da Universal disse orar a Deus “por este país, como temos orado para todos países, para que haja paz, prosperidade e sobretudo liberdade para que o povo possa conhecer Sua palavra”.
Ucranianos em Portugal
Outras igrejas e grupos missionários brasileiros também têm atuado junto a refugiados ucranianos.
Numa live em 29 de abril no canal Aliança Missões na Europa, no YouTube, missionários citaram o caso da igreja brasileira Sara Nossa Terra em Portugal.
O pastor brasileiro Marcelo Araújo, membro da denominação, disse na ocasião ter viajado até a fronteira com a Ucrânia para buscar refugiados e levá-los a Portugal. “Muitos ucranianos em Portugal estão sendo evangelizados”, disse o pastor.
“A maioria deles são ortodoxos e eles estão mais abertos, ouvindo a palavra, cantando louvores em português, desejando estar nos cultos”, afirmou Araújo.
O pastor diz que a igreja até contratou um ucraniano para traduzir as cerimônias religiosas.
“Não sei se conseguimos retornar (à Ucrânia) para trazer mais refugiados, mas queremos”, disse o brasileiro.
Há ainda o caso de uma organização evangélica que tem custeado a vinda de refugiados ucranianos para o Brasil, a Global Kingdom Partnership Network (GKPN), fundada pelo pastor brasileiro Elias Dantas.
Em 20 de março, um grupo de 29 refugiados que chegou ao Brasil por intermédio da GKPN foi recebido em um culto na Primeira Igreja Batista de Curitiba (PIB).
A organização já disse a jornalistas ter planos de patrocinar a vinda e estadia de 300 refugiados ucranianos no Brasil.
‘Mercado religioso global’
Para Marcos de Araújo Silva, doutor em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pesquisador do CRIA (Centro em Rede de Investigação em Antropologia, em Portugal), a ação das igrejas brasileiras na Ucrânia ou entre refugiados ucranianos se explica pela importância da Europa no “mercado religioso global”.
Silva é autor de vários artigos acadêmicos sobre a ação da Universal e de outras igrejas evangélicas brasileiras na Europa.
O pesquisador diz à BBC que, por se tratar de um continente rico, ainda que desigual, a Europa oferece “vantagens econômicas para quem promove trabalhos missionários”.
Uma dessas vantagens, segundo Silva, é a possibilidade de atrair fiéis com maior poder aquisitivo. Outra, a de absorver imigrantes e refugiados, que compõem parcela cada vez maior da população europeia e tendem a ser mais abertos a novas religiões.
Para o pesquisador, o trabalho de caridade dessas entidades junto a refugiados é uma forma de atraí-los para as igrejas.
“A partir do momento que essas pessoas são acolhidas, elas passam a perceber que uma igreja como a Iurd pode oferecer maiores possibilidades para ela: de conseguir emprego, aconselhamento jurídico, psicológico e emocional”, afirma.
“Num primeiro momento, esse apoio vai vir de forma gratuita”, diz o pesquisador, “mas as pessoas percebem que, se não se converterem e abraçarem a doutrina, vão ficar de fora dessa rede de apoio e proteção”.
A conversão é facilitada, segundo ele, pela fragilidade emocional dos refugiados.
“O impacto psicológico, os traumas, a desumanização que um conflito violento provoca nas pessoas gera maior abertura à possibilidade de conversão e de contato com novas denominações religiosas”, afirma.
O trabalho caritativo também tem a função, segundo o pesquisador, de melhorar a imagem de igrejas evangélicas brasileiras entre os europeus.
‘Oportunidade de missões’
Alguns grupos missionários dizem abertamente que a crise de refugiados na Europa é uma oportunidade para a evangelização.
Em artigo publicado em 2017 no site do Movimento de Lausanne, que busca conectar missionários mundo afora, o teólogo indiano Sam George questiona: “Será que Deus está renovando a Europa através dos refugiados?”
George descreve uma viagem recente à Grécia e à Alemanha, onde diz ter presenciado centenas de conversões de pessoas que fugiram da guerra na Síria.
“Somente Deus poderia ter transformado uma situação tão desesperadora em tamanha oportunidade de missões”, afirma.
Já o comando da Igreja Católica, maior entidade cristã do mundo, tem buscado traçar uma linha entre sua assistência a refugiados e a incorporação de novos fiéis.
Em discurso no Dia Mundial de Imigrantes e Refugiados, em 2016, o papa Francisco disse que “não é correto convencer alguém sobre sua fé” e que o “proselitismo é o veneno mais forte no caminho do ecumenismo”.
Questionada pela BBC sobre sua ação junto a refugiados ucranianos, a Universal disse em nota que “não trabalha para aumentar o número de seguidores, membros, fiéis”.
“Ela (Universal) prega o Evangelho da Salvação, obedecendo à Bíblia Sagrada, com o objetivo de salvar almas para o Reino dos Céus. O propósito não é aumentar o número de templos. Muito menos buscar crescimento em determinado país em tempo de guerra”, afirmou a entidade.
A Universal disse ainda que, “apenas em 2021, os 17 programas sociais mantidos pela Igreja beneficiaram 12,6 milhões de pessoas no Brasil e em mais 115 países, tais como detentos, refugiados, viciados, pessoas em situação de rua, jovens abrigados, idosos, menores em instituições socioeducativas e adultos analfabetos”.
E se a Rússia ganhar?
Para algumas correntes missionárias, o papel da Ucrânia na expansão do cristianismo evangélico pela Europa seria ameaçado se o país liderado por Vladimir Putin vencer o conflito.
Em entrevista ao jornal Gazeta do Povo em abril, o ucraniano Anatoliy Shmilikhovskyy, pastor da Igreja Batista Central em Lviv, diz que uma vitória russa faria a Ucrânia mergulhar no “mundo russo”, o que provocaria uma “limitação das atividades missionárias e evangelísticas”.
A legislação na Rússia trata todas as religiões como iguais e proíbe a interferência do governo no setor. Na prática, no entanto, missionários afirmam que as regras rígidas para o registro de igrejas na Rússia dificultam a liberdade religiosa.
Há ainda igrejas que foram banidas da Rússia por serem tratadas como “seitas” pelo governo.
Em debate recente no canal Aliança Missões na Europa, pastores brasileiros citaram o caso das Testemunhas de Jeová, grupo religioso que desde 2017 é considerado ilegal na Rússia.
Missionários disseram ainda que o governo russo acompanha de perto as atividades das igrejas evangélicas que operam no país. Leialdo Pulz, pastor brasileiro que atua na Rússia, disse na transmissão que “existem pessoas dentro das igrejas que estão lá (nos) observando, são espiões”.
Alguns missionários usam ainda argumentos religiosos para se contrapor à Rússia no conflito.
Em vídeo no canal de música gospel brasileira WillSong, que tem 776 mil seguidores no YouTube, o pastor ucraniano Anatoliy Shmilikhovskyy afirma que Putin “é cercado por pessoas demoníacas”.
“Ao redor dele, há pessoas xamãs, como chamamos aqui, e eles gostam muito de números”, diz o pastor, citando o fato de que a Rússia iniciou a guerra da Geórgia em 08/08/08 e a da Ucrânia, em 22/02/22.
Neutralidade na guerra
Porém, diferentemente de outras igrejas evangélicas, e ainda que seja a maior denominação brasileira na Ucrânia, a Universal não assumiu nenhum lado no conflito com a Rússia.
O antropólogo Marcos de Araújo Silva, que já pesquisou a ação da Universal na Rússia, cita dois possíveis motivos para a atitude. O primeiro seria o receio de prejudicar as operações da Iurd na Rússia, onde a igreja tem uma licença do governo russo para atuar e gerencia quatro templos.
O segundo seria uma afinidade da Universal com a Rússia num dos campos onde a guerra tem sido travada: o dos costumes.
Nessa frente, diz Silva, a posição da Igreja Ortodoxa Russa, que defende a invasão da Ucrânia, tem grande peso. O patriarca Kirill, representante máximo da igreja, disse que a guerra ajudaria a combater o avanço na Ucrânia de bandeiras que ele considera anti-religiosas, como os direitos LGBTQIA .
Como a Universal também contesta essas bandeiras, e para não arriscar sua posição na Rússia, a neutralidade se mostrou a melhor opção para a igreja brasileira, diz o pesquisador.
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