- Paula Adamo Idoeta
- Da BBC News Brasil em Londres
Em 29 de agosto, já em campanha pela reeleição, o presidente Jair Bolsonaro (PL) dedicou a manhã a receber no Palácio do Alvorada famílias defensoras da educação domiciliar, que entoaram hinos religiosos e fizeram uma oração por um segundo mandato. Repetiu essa agenda com outro grupo semelhante de pais, em 8 de setembro.
No programa de governo de uma eventual reeleição, um dos pontos defendidos é “a premissa de que os pais são os principais atores na educação das crianças, e não o Estado”.
Essa modalidade de ensino, apesar de ter ganho proeminência inédita no atual governo, abarca por enquanto estimadas 35 mil famílias no país — uma quantidade ínfima perto dos cerca de 38 milhões de alunos matriculados na rede pública de ensino básico.
O que explica, então, essa relevância? E como o homeschooling é percebido pelo público em geral — seja ele apoiador ou não do atual governo?
‘Menos Estado, mais família’
Pesquisadores observam que temas em discussão no ensino domiciliar se encaixaram com as bandeiras levantadas pelo governo — e dialogam até mesmo com um público mais amplo que o estritamente bolsonarista.
“O principal argumento da defesa desse modelo de ensino por Bolsonaro e pelo bolsonarismo é essa noção de que o ator que tem que decidir em primeiro plano sobre educação é a família, e não o Estado”, aponta Fernando Romani Sales, que analisou o âmbito jurídico do homeschooling em sua tese de mestrado e hoje é pesquisador do Laut (Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo).
Ele cita, nesse sentido, “a lógica neoliberal trazida ao plano social”, de reduzir a presença do Estado na vida das pessoas.
“Talvez seja uma pauta que abrace diferentes eleitorados. Tem um público-alvo religioso que enxerga nisso uma forma concreta de traduzir anseios religiosos através do ensino, porque vai ter menos controle do Estado — mais de supervisão e fiscalização do que prestação direta do ensino. Mas tem um outro lado que dialoga muito com esses anseios que é essa ideia de combater ou evitar a suposta doutrinação da esquerda no ensino”, pondera.
Ao mesmo tempo, existem limites para o quanto essa pauta de fato engaja o eleitorado — inclusive o religioso e conservador —, aponta Jacqueline Moraes Teixeira, professora do Departamento de Sociologia da UnB (Universidade de Brasília) e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e do Iser (Instituto de Estudos da Religião).
Ela cita duas pesquisas: a primeira delas, Mulheres evangélicas, política e cotidiano, conduzida pelo Iser. Muitas mulheres entrevistadas de fato manifestaram, segundo Teixeira, temor de que o Estado — no papel da escola — pudesse interferir nos valores defendidos pelas famílias, como suas crenças religiosas. Mas, mesmo assim, a educação domiciliar não foi vista como uma política pública viável para a maioria.
“Para grande parte das mulheres que a gente entrevistou, o homeschooling aparece apenas como uma espécie de liberdade individual, de decidir sobre os filhos. (Mas) quando a gente pergunta de fato sobre a aplicabilidade, todo mundo já entende que é uma realidade para poucos”, afirma Teixeira à BBC News Brasil.
A segunda pesquisa, Educação, Valores e Direitos, foi conduzida pelo Datafolha em março deste ano, a pedido das organizações educacionais Cenpec e Ação Educativa.
Nela, 78% dos entrevistados opinaram que os pais não devem ter o direito de tirar seus filhos da escola e ensiná-los em casa. Nove em cada dez pessoas afirmaram que as crianças devem ter o direito de frequentar a escola mesmo que os pais não queiram.
Para a maioria da população, em particular de baixa renda, avalia Teixeira, o maior anseio ainda é por uma escola mais presente e melhor.
“Há a percepção de que a família é importante e que a mulher (porque muitos lares são chefiados por mulheres) precisa ter o poder de decisão por cima do Estado, mas também de que esse Estado precisa atuar mais. Há uma sensação não de presença ostensiva do Estado, como o homeschooling coloca, mas uma sensação de que esse Estado não existe, é completamente ausente.”
Além disso, diz Teixeira, entre a população mais pobre, “a escola é um espaço de ascensão social”. “Para essas famílias, é importante nutrir a crença de que a participação dos filhos na escola vai garantir que eles tenham acesso a uma condição socioeconômica melhor. Aí a gente percebe que o homeschooling tem muitas limitações quando a gente está pensando no engajamento de voto desse público que corresponde à maior parte da população, que não se enxerga como sendo de direita nem de esquerda.”
Para defensores do ensino domiciliar, não se trata de massificar a prática, mas sim de dar às famílias o que consideram ser o direito de escolher uma melhor forma de educar os filhos.
“Entendam que defendemos o direito das famílias a essa modalidade de ensino, não a obrigatoriedade. E estão asseguradas a convivência comunitária (das crianças) e a fiscalização por parte do Estado. Outros países têm experiências muito boas a esse respeito”, escreveu no Twitter a ex-ministra da Mulher e Direitos Humanos e hoje candidata ao Senado pelo Distrito Federal, Damares Alves.
Ela foi uma das principais defensoras da pauta no atual governo e ajudou a difundi-la entre o público evangélico.
Por sua vez, a Aned (Associação Nacional de Educação Domiciliar) diz que é preciso tirar a discussão em torno do homeschooling “do campo ideológico e político”.
“Não é uma questão de direita ou de esquerda, de cristão ou não cristão, é uma questão das famílias”, diz à BBC News Brasil Ricardo Dias, presidente da Aned.
Nesse sentido, diz ele, a associação ao governo Bolsonaro se deu mais por uma oportunidade de ver a modalidade ser regulamentada do que por afinidade ideológica.
“São 28 anos que esse assunto é discutido (no Legislativo), 15 projetos de lei e uma PEC (proposta de emenda à Constituição). E existe uma ala da esquerda que coloca na cabeça das pessoas que isso é ‘coisa de direita’. De repente aparece um candidato (Bolsonaro) que abraçou isso quando ainda era deputado. Como vamos recusar esse apoio? Pensa na esperança das famílias de ensino domiciliar (…) ao ter o apoio do Planalto. Não podemos recusar apoio nenhum. Se a (ex-presidente) Dilma tivesse apoiado também teríamos aceitado”, afirma Dias.
Porém, Dias acredita que, “se um governo de esquerda assumir” no ano que vem, a pauta voltará a encontrar resistência.
O PT e outros partidos de oposição votaram contra o projeto de lei aprovado na Câmara em maio — um dos motivos argumentados é a obrigação constitucional do Estado de prover educação.
O projeto, aprovado por 264 votos a 144, criou regras para o homeschooling da educação infantil até o ensino médio. O texto prevê que ao menos um dos pais responsáveis pelo ensino precisa ter concluído o ensino superior, que sejam apresentados relatórios trimestrais das atividades pedagógicas e que as crianças passem por avaliações periódicas.
Por enquanto, na ausência da aprovação também no Senado, o homeschooling ainda é considerado uma prática ilegal no Brasil.
‘Educação personalizada’
E é um debate cheio de nuances.
O pesquisador Fernando Romani Sales lembra que, no caso que chegou à alçada do STF, o casal de Canela (RS) que pedia para educar sua filha em casa citava entre seus argumentos que se opunha à Teoria da Evolução de Darwin ser ensinada à menina — uma vez que a família acreditava na teoria religiosa do criacionismo.
“Entra na discussão sobre o que é Ciência — parece que se torna mais uma questão de preferência pessoal do que do consenso científico (que embasa o evolucionismo). Não é só uma questão de opinião, mas é colocado dessa forma, o que torna a coisa um pouco ardilosa”, avalia ele.
Ricardo Dias, da Aned, diz que a motivação religiosa é minoritária entre as famílias acompanhadas pela associação.
“Quando fizemos uma pesquisa com nossos associados, em 2017, um terço das famílias educadoras de todo o Brasil disse que o motivo principal é que queriam dar aos filhos uma educação personalizada”, afirma.
A Aned defende que essa educação personalizada permite “explorar o potencial, dons e talentos de cada criança e adolescente”, com teoricamente mais eficácia em relação ao ensino tradicional, e “proporciona amadurecimento, desenvolve disciplina de estudos e gosto pelo aprendizado”.
“A preocupação religiosa existe, mas não foi a principal — foi mencionada por 10% das famílias na época”, prossegue Dias.
“E no pós-pandemia, o quadro mudou bastante, pela nossa impressão. Temos sido procurados por pais que dizem que, ao terem que estudar com os filhos (durante o fechamento das escolas), descobriram que pagavam uma fortuna por um projeto pedagógico ruim. E houve também o inverso: de crianças que aprenderam mais rápido estudando em casa, com atenção individualizada. E os pais perceberam: ‘caramba, eu consigo ir além de apenas ajudar meu filho a fazer lição de casa’.”
Quanto à proeminência que um assunto tão minoritário ganhou no debate nacional, Dias rebate: “Faz sentido essa mentalidade para quem ama a escola. Mas então parem de emperrar uma pauta (a do homeschooling) que já deveria ter passado há muito tempo e de nos tratar como se fôssemos uma ameaça”.
Mas, do outro lado, há argumentos jurídicos, pedagógicos e sociais.
“O direito à educação escolar é um direito da criança. (…) Mesmo como uma exceção para aqueles que assim o desejarem, (a educação domiciliar) é uma violação aos direitos da infância”, afirma Romualdo Oliveira, diretor de pesquisa e avaliação do Cenpec.
“O segundo ponto é que a escola propicia uma socialização com uma pluralidade que a família não tem condições de propiciar. Isso é muito importante num mundo cada dia mais diverso e plural. Eu não vou conviver só com pessoas que têm a mesma religião que eu, da mesma classe social, dos mesmos valores, os mesmos comportamentos”, diz.
“É uma necessidade da contemporaneidade que eu aprenda a aceitar as diferentes opções. Isso é uma socialização que só a escola propicia. As alternativas de socialização que os homeschoolers propiciam são entre iguais, e nesse sentido não é a necessária para se viver em uma sociedade como a nossa. Privar a criança disso é um grande problema.”
Sobre o argumento de suposta “doutrinação” no ambiente escolar muitas vezes citado pelo bolsonarismo, Oliveira acha “fantasioso”.
“É só você conviver com o magistério pra ver que não há homogeneidade ideológica (entre professores). É uma suposição que não tem nenhuma base na realidade”, ele diz.
Oliveira cita também a preocupação com o fato de que o homeschooling, ao ser regulamentado, passe a disputar recursos estatais — seja para políticas de fiscalização, seja para possíveis subsídios às famílias educadoras — que estão cada vez mais escassos no Ministério da Educação.
Por sua vez, Ricardo Dias, da Aned, diz que “nenhuma das famílias pediu nenhum tipo de recurso” e que “quanto menos o Estado interferir, melhor”. Sobre a socialização, ele argumenta que seus dois filhos, educados em casa, “hoje estão na universidade, felizes e sociáveis”.
Romualdo Oliveira cita também um quarto ponto: “A tarefa de educar é para profissionais. O professor estudou, se formou no conteúdo específico da disciplina, ele estudou a didática, e por mais escolarizados que os pais sejam, não vão ter condições de suprir esse tipo de especialização. É um processo de rebaixamento do ensino oferecido aos estudantes”.
“A proeminência que isso (o homeschooling) adquiriu no debate educacional tem muito a ver com o estímulo que o Bolsonaro dá a essa temática pelo seu acordo com determinados grupos evangélicos e pela ausência de outras propostas educacionais deste governo”, opina.
Oliveira defende ainda que, ao menos no que diz respeito à educação pública, “a população é bem menos conservadora do que os conservadores querem nos fazer crer”.
Ele cita o fato de que, também na pesquisa encomendada ao Datafolha, 70% dos entrevistados opinaram que a escola está mais preparada que os pais para explicar temas como puberdade e sexualidade.
Segundo a pesquisadora Jacqueline Teixeira, apesar de haver medo entre as famílias de que a escola propicie uma iniciação sexual precoce das crianças, “ao mesmo tempo se defende que a escola precisa ter esse papel em alertar, proteger e coibir a violência sexual dentro dos núcleos familiares. (…) Tem um reconhecimento de que a escola é um agente de proteção.”
Já a ex-ministra Damares Alves questionou esses argumentos. Em diferentes entrevistas, afirmou que ela própria foi “barbaramente abusada no âmbito da escola”, que a educação domiciliar seria uma “opção para a melhoria do ensino” e que a socialização das crianças pode ocorrer em outros ambientes que não o escolar.
Enquanto o assunto tramita no Senado, Ricardo Dias, da Aned, diz explicar a todas as famílias que o procuram que podem, potencialmente, ser processadas por abandono intelectual dos filhos se não os matricularem em uma escola formal.
“Mas já acompanhei mais de 200 famílias processadas. Nem um pai até hoje perdeu a guarda ou foi preso por abandono intelectual por homeschooling. O pior cenário é ser processado e condenado a matricular o filho na escola. Veja a ironia disso, ser condenado à escola.”
Fernando Romani Sales, por sua vez, destaca que o debate, por mais que tenha crescido no atual governo, não se limita a ele — uma vez que os agentes envolvidos nessa discussão, assim como o próprio movimento conservador, não são algo monolítico.
“Não significa que (a pauta) esteja atrelada só a este governo. E o conservadorismo de modo geral é um campo com muitos atores e forças políticas, e generalizações são um pouco perigosas. São sujeitos e forças se relacionando com o movimento conservador, inclusive que podem se alinhar a ele menos por ideologia e mais por conjuntura política”, diz.
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