- Author, Lucy Williamson*
- Role, Correspondente da BBC no Oriente Médio, de Jerusalém
Atenção: esta reportagem contém descrições chocantes de violência sexual e estupros, que podem ser perturbadoras para alguns leitores.
Diversas pessoas envolvidas na coleta e identificação dos corpos das pessoas mortas durante o ataque declararam à BBC terem visto múltiplos sinais de violência sexual, incluindo pelves quebradas, hematomas e cortes. As vítimas variavam de crianças e adolescentes até idosas.
A polícia de Israel mostrou aos jornalistas o testemunho em vídeo de uma pessoa presente no festival de música Universo Paralello – Supernova. O vídeo detalha o estupro coletivo, mutilação e execução de uma das vítimas.
Vídeos de mulheres nuas ensanguentadas, filmados pelo Hamas no dia do ataque, e fotografias de corpos tiradas posteriormente indicam que mulheres foram atacadas sexualmente.
Acredita-se que poucas vítimas tenham sobrevivido para contar suas histórias. E seus últimos momentos estão sendo reunidos pelos sobreviventes, coletores de corpos e funcionários de necrotérios, aliados às imagens dos locais atacados.
A polícia mostrou aos jornalistas em reunião privada um único e horrível testemunho em vídeo, de uma mulher que estava no festival Supernova durante o ataque.
Ela descreve ter visto combatentes do Hamas mutilando e estuprando uma mulher em grupo, até que o último deles atirou na cabeça dela, enquanto continuava a estuprá-la.
No vídeo, a mulher identificada como Testemunha S imita os combatentes que pegam a vítima e a passam de um para o outro.
“Ela estava viva”, diz a testemunha. “Ela estava sangrando nas costas.”
Ela detalha como os homens cortaram partes do corpo da vítima durante o ataque. “Eles fatiaram o seu seio e o atiraram na rua”, ela conta. “Estavam brincando com ele.”
A testemunha prossegue e detalha que a vítima foi passada para outro homem de uniforme.
“Ele a penetrou e atirou na cabeça dela antes de terminar”, ela conta. “Ele nem mesmo pegou suas calças; ele atira e ejacula.”
Falamos com um homem do local do festival, que disse ter ouvido os “ruídos e gritos das pessoas sendo assassinadas, estupradas e decapitadas.”
Perguntamos como ele podia ter certeza – sem ver a cena – de que os gritos que ele ouvia indicavam violência sexual e não de outros tipos. Ele respondeu que acreditava, ao ouvir naquele momento, que os gritos só podiam ser causados por estupro.
Em uma declaração feita através de uma organização de apoio, ele descreve o ocorrido como “desumano”.
“Algumas mulheres foram estupradas antes de serem mortas, algumas foram estupradas enquanto eram feridas e outras já estavam mortas quando os terroristas estupraram seus corpos sem vida”, diz a declaração. “Eu quis desesperadamente ajudar, mas não havia nada que eu pudesse fazer.”
A polícia afirma que recebeu “numerosos” relatos de testemunhas de violência sexual, mas não forneceria maiores esclarecimentos sobre sua quantidade. Quando falamos com a polícia, eles ainda não haviam entrevistado as vítimas sobreviventes.
A Ministra do Empoderamento Feminino de Israel, May Golan, declarou à BBC que algumas vítimas de estupro ou violência sexual haviam sobrevivido aos ataques. No momento, todas estão recebendo tratamento psiquiátrico.
“Mas são muito, muito poucas. A maioria foi brutalmente assassinada”, afirma ela. “Elas não conseguem falar – nem comigo, nem com nenhuma pessoa do governo [nem] da imprensa.”
Os vídeos filmados pelo Hamas incluem imagens de uma mulher algemada e levada como refém, com cortes nos seus braços e uma grande mancha de sangue na parte de trás das calças.
Em outras imagens, mulheres carregadas pelos combatentes parecem estar nuas ou seminuas.
Diversas fotografias dos locais após o ataque mostram os corpos de mulheres nuas da cintura para baixo ou com sua roupa de baixo rasgada para um lado, as pernas afastadas e sinais de trauma nas pernas e nos genitais.
“Aparentemente, o Hamas aprendeu com o ISIS [o grupo Estado Islâmico] no Iraque e com os casos na Bósnia como transformar os corpos das mulheres em armas”, afirma a especialista legal Cochav Elkayam-Levy, do Instituto Davis de Relações Internacionais da Universidade Hebraica de Jerusalém, em Israel.
“Apenas conhecer os detalhes que eles sabiam sobre o que fazer com as mulheres me dá arrepios: cortar seus órgãos, mutilar seus genitais, estuprá-las. É horrível saber disso.”
“Falei com pelo menos três meninas que estão agora hospitalizadas com situações psiquiátricas muito difíceis devido aos estupros que elas presenciaram”, declarou a ministra Golan à BBC. “Elas fingiram estar mortas, assistiram e ouviram tudo. E não conseguem lidar com aquilo.”
O chefe de polícia de Israel, Yaacov Shabtai, afirmou que muitos sobreviventes dos ataques têm dificuldade para falar. Ele acredita que alguns deles nunca irão testemunhar sobre o que viram ou sofreram.
“Dezoito homens e mulheres jovens foram internados em hospitais psiquiátricos por não conseguirem ter uma vida normal”, afirma ele.
Há relatos de sobreviventes com tendências suicidas. Uma pessoa que trabalha com as equipes para cuidar de sobreviventes disse à BBC que alguns deles já se mataram.
Grande parte das evidências veio de voluntários coletores de corpos que trabalharam após os ataques e das pessoas que cuidaram dos corpos após sua chegada à base militar de Shura, em Israel, para identificação.
Um dos coletores de corpos, voluntário da organização religiosa Zaka, descreveu sinais de tortura e mutilação nos corpos. Ele descreve uma mulher grávida que teve o útero rasgado e aberto antes de ser morta. O feto foi esfaqueado dentro do corpo da mulher.
A BBC não conseguiu verificar este relato de forma independente e a imprensa israelense tem questionado alguns testemunhos de voluntários que trabalham nos rescaldos traumáticos dos ataques do Hamas.
Outro voluntário, Nachman Dyksztejna, testemunhou por escrito ter visto os corpos de duas mulheres no kibbutz Be’eri com suas mãos e pernas amarradas a uma cama.
“Uma delas foi aterrorizada sexualmente com uma faca inserida na vagina e teve todos os seus órgãos internos removidos”, afirma sua declaração.
Ele conta que, no local onde foi realizado o festival de música, pequenos abrigos estavam “cheios com pilhas de mulheres. Suas roupas foram rasgadas na parte de cima, mas, embaixo, elas estavam completamente nuas. Pilhas e pilhas de mulheres. […] Quando você olhava suas cabeças mais de perto, você via um único tiro, direto no cérebro de cada uma.”
Voluntários recolheram centenas de corpos dos locais dos ataques.
Os pesquisadores admitem que, nos primeiros dias caóticos após os ataques, ainda com algumas regiões em combate ativo, as oportunidades para documentar cuidadosamente as cenas de crime ou coletar evidências forenses eram limitadas ou foram perdidas.
“Nos cinco primeiros dias, ainda tínhamos terroristas em território israelense”, afirma May Golan. “E havia centenas, centenas de corpos em toda parte. Eles foram queimados, eles estavam sem os órgãos, eles foram completamente esquartejados.”
“Foi um evento com elevado número de vítimas”, declarou aos jornalistas o porta-voz da polícia israelense Dean Elsdunne, em coletiva de imprensa.
“A primeira providência foi trabalhar na identificação das vítimas, não necessariamente na investigação da cena do crime. As pessoas esperavam para saber o que havia acontecido com seus entes queridos.”
Foram os funcionários da base militar de Shura, onde os corpos chegaram para identificação, que forneceram aos investigadores algumas das evidências mais importantes. Estas evidências surgiram em um campo improvisado de tendas e contêineres marítimos refrigerados instalado na base para identificar os corpos.
Durante a nossa visita, carrinhos de hospital, com suas armações de ferro cobertas com macas de cor cáqui, estavam perfeitamente alinhados em frente aos contêineres que abrigavam os mortos. As lonas de plástico branco sobre eles ficavam translúcidas frente aos holofotes.
Ouvia-se o barulho dos jatos de combate no ar, abafando o canto das cigarras no local. Israel continuava a bombardear a Faixa de Gaza.
Equipes da base disseram à BBC que haviam observado claras evidências de estupro e violência sexual nos corpos que chegavam, incluindo pelves quebradas por longos períodos de abuso violento.
“Vemos mulheres de todas as idades”, conta uma das reservistas da equipe forense, a capitã Maayan. “Vemos vítimas de estupro. Vemos mulheres que passaram por violação. Temos patologistas e vemos os hematomas, aprendemos sobre os cortes e rasgos e sabemos que elas foram abusadas sexualmente.”
Pergunto qual a proporção dos corpos que passaram por ela com esses sinais. “Muitos” foi a resposta. “Grande quantidade de mulheres e meninas de todas as idades.”
Definir o número de vítimas é difícil, em parte, devido ao estado dos corpos.
“Certamente, são muitos”, afirmou outra soldada em serviço que pediu que usássemos apenas seu primeiro nome, Avigayil.
“É difícil saber”, segundo ela. “Cuidei de muitos corpos queimados e não tenho ideia do que as pessoas enfrentaram antes daquilo. E corpos com a parte de baixo faltando – também não sei se foram estupradas. Mas as mulheres que foram claramente estupradas? Existem muitas. Demais.”
“Às vezes, chega apenas uma parte muito pequena do corpo”, conta Elkayam-Levy. “Pode ser um dedo, um pé ou uma mão que eles estão tentando identificar. Pessoas foram queimadas até virarem cinza. Não sobrou nada. […] Quero dizer que nunca saberemos quantos foram os casos.”
Em conversas privadas, algumas pessoas falam em “dezenas” de vítimas, mas rapidamente alertam que as evidências ainda estão sendo coletadas e reunidas.
A comissão civil chefiada por Elkayam-Levy para reunir testemunhos sobre crimes sexuais pede o reconhecimento internacional de que o que aconteceu no dia 7 de outubro foi abuso sistemático, o que constitui crime contra a humanidade.
“Observamos padrões definidos”, segundo ela. “Por isso, não foi um incidente, não foi aleatório. Eles vieram com uma ordem clara. Foi […] estupro como genocídio.”
Avigayil concorda que há similaridades entre a violência observada nos corpos que chegaram à base de Shura. “Existem padrões, com grupos de mulheres do mesmo local sendo tratadas de forma similar”, segundo ela.
“Pode haver um conjunto de mulheres que foram estupradas de uma forma e vemos similaridades nos corpos; e, depois, um conjunto diferente de mulheres que não foram estupradas, mas receberam diversos tiros, exatamente no mesmo padrão”, prossegue Avigayil. “Por isso, aparentemente, grupos diferentes de terroristas praticavam formas diferentes de crueldade.”
“Foi um evento sistemático e premeditado”, disse o chefe de polícia Yaacov Shabtai aos jornalistas.
David Katz, da unidade de crimes cibernéticos de Israel envolvida na investigação, declarou aos jornalistas que é cedo demais para provar que a violência sexual foi planejada como parte do ataque, mas que os dados extraídos dos telefones celulares dos combatentes do Hamas sugerem que “tudo era sistemático”.
“Seria imprudente afirmar que já podemos provar isso […] mas tudo o que foi feito ali foi sistemático”, afirma ele. “Nada aconteceu por coincidência. O estupro foi sistemático.”
O governo de Israel indica documentos que, segundo os israelenses, foram encontrados com combatentes do Hamas. Eles aparentemente apoiam a ideia de que a violência sexual foi planejada.
O governo também publicou gravações de interrogatórios de alguns combatentes capturados, nos quais eles parecem afirmar que as mulheres foram atacadas com este propósito.
Na semana passada, a ONU Mulheres publicou uma declaração afirmando que “condena categoricamente os ataques brutais do Hamas” e que está “perplexa com os inúmeros relatos de atrocidades baseadas em gênero e violência sexual durante os ataques”.
Elkayam-Levy afirmou antes da declaração que as organizações internacionais pelos direitos das mulheres haviam demorado demais para responder ao seu pedido de ajuda. Para ela, “esta é a atrocidade mais documentada da história da humanidade”.
“Israel em 7 de outubro não é o mesmo país que acordou na manhã seguinte”, diz o chefe de polícia Yaacov Shabtai.
Em meio ao horror do que aconteceu às mulheres durante os ataques, a capitã Maayan, da unidade de identificação de Shura, afirma que os momentos mais difíceis são quando ela observa “a máscara nos seus cílios ou os brincos que elas colocaram naquela manhã”.
Pergunto sua reação, como mulher.
“Terror”, ela responde. “Aquilo nos aterroriza.”
* Com colaboração de Scarlett Barter.
Fonte: BBC
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