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O teólogo espanhol José María Tojeira é o porta-voz dos jesuítas na crise estabelecida pelo governo da Nicarágua contra a ordem religiosa

  • Author, Gerardo Lissardy
  • Role, BBC News Mundo

O sacerdote José María Tojeira sabe bem o que é trabalhar como jesuíta em condições extremas na América Central.

Em uma madrugada de 1989, o religioso ouviu, a cerca de 40 metros de distância, os disparos de militares que massacraram seis padres jesuítas e duas mulheres na Universidade Centro-Americana (UCA) de El Salvador.

Na época, Tojeira era o superior provincial dos jesuítas na América Central. E, desde então, ele pede justiça por aquela matança.

Em 2020, um coronel aposentado foi condenado por aquela noite a 133 anos de prisão na Espanha. O julgamento sobre os autores intelectuais dos assassinatos continua em aberto.

Mas, agora, o sacerdote tem outra missão difícil nas mãos. Ele foi designado porta-voz oficial da Companhia de Jesus para a crise enfrentada pela ordem – a mesma do papa Francisco – na Nicarágua.

O governo do presidente nicaraguense Daniel Ortega cancelou uma das pessoas jurídicas da ordem e confiscou vários dos seus bens, incluindo a UCA da capital do país, Manágua.

Tojeira observa semelhanças entre a forma de ação do governo de Ortega e o governo salvadorenho em 1989, embora sejam governos de sinais ideológicos opostos e os contextos históricos sejam diferentes.

“O modo violento” e “a mentira é um ponto de convergência impressionante”, compara Tojeira, em entrevista à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.

Você confere abaixo um resumo da conversa telefônica com o teólogo e ex-reitor da UCA de El Salvador, nascido na Espanha, José María Tojeira.

BBC News Mundo – Quais são as consequências da decisão do governo nicaraguense de cancelar a ordem dos jesuítas no país e confiscar seus bens?

José María Tojeira – Eles não cancelaram totalmente a ordem.

Na verdade, eles cancelaram uma das diversas pessoas jurídicas da nossa ordem, que era proprietária de dois imóveis: um onde moravam os jesuítas que trabalhavam na UCA e uma casa para bolsistas que não tinham onde ficar.

Essa pessoa jurídica também era usada para transferir dinheiro da cúria provincial da Nicarágua para atender jesuítas idosos na enfermaria. Já precisamos retirar alguns doentes da Nicarágua porque não conseguimos oferecer ali a atenção adequada.

Isso é parte dos ataques sistemáticos à Igreja e aos setores da Igreja que se expressaram de forma crítica sobre o governo sandinista.

BBC – Então, isso não significa o fechamento das operações da Companhia de Jesus e, com as outras pessoas jurídicas, os jesuítas podem continuar operando, por exemplo, os colégios jesuítas da Nicarágua?

Tojeira – Exatamente. Temos dois colégios na Nicarágua: Centroamérica e Loyola. Cada um tem sua própria pessoa jurídica. Por isso, os jesuítas continuam trabalhando ali.

O mesmo acontece com a cadeia de escolas primárias e secundárias populares Fe y Alegría, geralmente construídas em bairros da periferia e zonas rurais empobrecidas. Ela tem cerca de 20 escolas e institutos que continuam funcionando normalmente.

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O governo do presidente nicaraguense Daniel Ortega confiscou bens da Companhia de Jesus no país

BBC – Até que ponto os jesuítas estão dispostos a permanecer na Nicarágua neste contexto?

Tojeira – Nossa decisão é de permanecer na Nicarágua, a menos que nos expulsem. Até agora, não houve ordem de expulsão.

Acreditamos que temos uma forte demanda popular por apoio, evangelização, educação e ajuda no que pudermos fazer. E vamos prosseguir.

BBC – O argumento do Ministério de Governo de Daniel Ortega para cancelar a pessoa jurídica no dia 23 de agosto foi que a Companhia de Jesus da Nicarágua não informou seus balanços dos últimos três anos. Qual é sua resposta?

Tojeira – Inicialmente, isso sempre nos faz rir um pouco, porque era algo que nós já prevíamos.

Todos os anos, nós apresentamos dentro do prazo as informações que precisamos apresentar. Mas, no caso desta pessoa jurídica, eles se negaram sistematicamente a receber as informações.

E, quando pedíamos confirmação de que eles não queriam recebê-las ou o motivo da recusa, eles respondiam: “não vamos receber, ponto final”. Agora, eles saem dizendo que as informações não estavam em dia. É lógico, se eles não receberem, é impossível.

Acredito que houve uma decisão tomada antecipadamente de manter nossas instituições em dúvida e vulnerabilidade.

BBC – Quais medidas os jesuítas pretendem tomar frente aos confiscos do governo nicaraguense?

Tojeira – Estamos estudando a possibilidade de prestar algum tipo de queixa junto a instituições internacionais, como a ONU na parte de Direitos Humanos ou a OEA, na América Latina.

Para nós, foi uma medida arbitrária e irregular. Por isso, estamos estudando com os advogados a possibilidade de apresentar uma queixa internacional, pedindo a devolução do que foi confiscado.

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Tojeira (ao lado do Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos, na foto de 2017) liderou o pedido de justiça pelo massacre de jesuítas de 1989 em El Salvador

BBC – Vocês acreditam que uma queixa como esta pode ter sucesso?

Tojeira – Os Estados muito autoritários, de forma geral, não dão importância à ONU, nem à OEA. Mas acreditamos que seja importante termos uma opinião fundamentada e independente sobre a forma do procedimento de confisco.

Não pode haver uma violação de direitos ou ofensa a uma instituição com base em uma acusação falsa sem que nada aconteça.

As instituições internacionais ajudam, pelo menos, a sacramentar a verdade. E, mais tarde, já que esta ditadura não será eterna, podem ser apresentadas ações sobre algo que tenha fundamento legal.

BBC – O que significou o confisco da Universidade Centroamericana da Nicarágua para os jesuítas?

Tojeira – Vínhamos trabalhando nessa universidade há mais de 60 anos. Ela significava muito esforço dos jesuítas, dos laicos e de pessoas interessadas em melhorar a cultura.

Os grandes poetas contemporâneos da Nicarágua nasceram vinculados à UCA, dentro da grande tradição poética que existe no país, desde Rubén Darío [1867-1916].

É uma universidade que produziu conhecimento e criou cultura, muito aberta à responsabilidade social. Retirá-la assim, de repente, parece profundamente injusto. Para nós, é doloroso, principalmente porque acreditamos que estão fazendo mal para a Nicarágua.

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A Universidade Centro-Americana (UCA) era um espaço de defesa da liberdade na Nicarágua até ter sido confiscada pelo governo de Daniel Ortega

BBC – Nos últimos anos, principalmente a partir da crise de 2018, a UCA havia ocupado um lugar de destaque na Nicarágua em meio aos protestos, em defesa da liberdade de expressão. O governo de Ortega a acusou de “terrorismo”. Vocês esperavam uma medida deste tipo?

Tojeira – Sempre pensamos nesta possibilidade porque não foi a primeira universidade que eles confiscaram. Eles já haviam confiscado da Igreja uma universidade agrária que havia em Estelí [noroeste do país].

A perseguição contra a Igreja era evidente. Ainda não havia chegado até nós porque a UCA tinha um simbolismo forte dentro do país, devido ao seu prestígio.

Pensávamos que isso servia um pouco de proteção, mas que, a qualquer momento, [o confisco] poderia ocorrer.

BBC – Os jesuítas tiveram vínculos históricos com os sandinistas. Quando esta relação começou a deteriorar-se e por quê?

Tojeira – Começamos com alguns vínculos relativamente importantes porque colaboramos muito na reforma agrária feita pelo regime sandinista na Nicarágua e na campanha de alfabetização.

Mas os problemas começaram na segunda etapa da Frente Sandinista, quando ela voltou a tomar o poder e, sobretudo, quando decidiu reeleger-se, já que a reeleição imediata de um mandato atrás do outro era proibida pela Constituição.

Quando eles mudaram este ponto da Constituição, houve críticas da Universidade e começam a surgir más relações, que continuaram na segunda reeleição e, especialmente, a partir de 2018, devido à violenta repressão das manifestações populares.

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O assassinato dos padres jesuítas na UCA de El Salvador durante a guerra civil do país deixou feridas profundas

BBC – O sr. foi reitor da UCA de El Salvador. Lá, o sr. presenciou, em 1989, o assassinato de oito pessoas, incluindo seis padres jesuítas. Existe algum ponto de convergência entre o que ocorria naquele momento em El Salvador e o que acontece agora na Nicarágua?

Tojeira – O ponto de convergência é o autoritarismo e o estilo incapaz de estabelecer diálogos e procurar soluções pacíficas.

No caso salvadorenho, havia uma guerra civil. Mas a reação é sempre de eliminar a voz do dissidente, do que quer a paz, o diálogo e uma solução negociada do conflito.

Na Nicarágua, quando houve as grandes manifestações de 2018, a UCA era partidária do diálogo e de garantir uma saída pacífica do regime porque a população estava cansada – que houvesse eleições livres, o que não aconteceu.

Estas posições de diálogo e busca de soluções pacíficas para os conflitos irritavam profundamente os setores militares em El Salvador, que dirigiam a guerra, e os setores governamentais na Nicarágua, que também são os que dirigem a repressão.

Este é o ponto de convergência, embora os contextos históricos sejam distintos.

BBC – O sr. vê similaridade entre a forma de ação do governo de El Salvador naquele momento e a do governo de Daniel Ortega na Nicarágua?

Tojeira – Claro que sim, o modo violento. Um tipo diferente de violência, mas o modo violento e também a forma de deturpar a verdade.

Uma das coisas que conseguimos com muito esforço foi o reconhecimento de que o exército salvadorenho matou os jesuítas. A versão do governo era que a FMLN [Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional] havia cometido os assassinatos.

Acredito que os sandinistas também mentem: eles dizem que não tínhamos em dia os dados da pessoa jurídica e acusam a UCA de terrorismo. Mas o que a Universidade fez, na verdade, foi, em um dado momento, proteger as pessoas que estavam recebendo tiros das forças militares e policiais, além de insistir na questão do diálogo e na solução pacífica dos conflitos.

A mentira é um ponto de convergência impressionante nestes dois episódios.

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O papa Francisco pertence à ordem dos jesuítas e já comparou o governo de Ortega com ‘ditaduras comunistas ou hitlerianas’

BBC – A Companhia de Jesus é a ordem a que pertence o papa Francisco. Vocês acreditam que o governo de Ortega também toma estas ações apontando para ele?

Tojeira – A relação entre o governo de Ortega e o pontífice não é boa.

Podemos ver isso em declarações das duas partes – o sr. Ortega chamando o Papa de ditador e o Papa dizendo que existe algo na mente de Ortega um pouquinho parecido com os nazistas.

Por outro lado, a perseguição à Igreja é evidente. Ortega expulsou o núncio apostólico e ameaçou romper relações diplomáticas com o Vaticano. Este senhor não consegue deixar de responder a qualquer crítica que lhe façam, por mais bem intencionada que seja.

O Papa estava preocupado, com toda razão, com a prisão totalmente arbitrária do bispo Rolando Álvarez. É uma prova evidente da perseguição à Igreja e é normal que o Papa se manifeste.

As respostas de Ortega foram desrespeitosas e levaram o Papa a tirar conclusões bastante lógicas: que algo funciona mal no cérebro deste ditador centro-americano.

BBC – Então o sr. acredita que estas medidas tomadas nas últimas semanas pelo governo de Ortega contra a Companhia de Jesus também são uma resposta ao Papa?

Tojeira – Custa-me acreditar nisso enquanto não houver uma manifestação evidente. O que, sim, acredito é que existe perseguição contra a Igreja na Nicarágua, que inclui a Companhia de Jesus.

Acho que essas pessoas, do governo da Nicarágua, têm um ódio generalizado da Igreja como força social e de pensamento que eles não conseguem controlar. E querem controlá-la de qualquer forma, sejam os bispos, a Companhia de Jesus ou qualquer sacerdote que tenha pensamento dissidente.

Acredito que seja um ódio generalizado à Igreja, não tanto algo direto contra o Papa. Acredito que eles também odeiem o Papa, porque ele defendeu a Igreja.

BBC – Por que o sr. acredita que, apesar de tudo, as relações diplomáticas entre a Nicarágua e o Vaticano seguem mantidas?

Tojeira – Acredito que romper relações sempre causa desprestígio para o país que toma a decisão. Por isso, não quiseram rompê-las, mas estão totalmente suspensas.

De fato, para tentar interceder pelo monsenhor Álvarez, o Papa precisa recorrer ao apoio de Lula ou de algum outro governo que tenha algum prestígio ou força moral sobre a ditadura nicaraguense.

BBC – Vocês acham que receberam o respaldo necessário do papa Francisco e do Vaticano, de forma geral, frente às medidas do governo da Nicarágua?

Tojeira – Acredito que sim.

Claro, para mim, relembra um pouco o que Stalin respondia, segundo se conta, quando diziam a ele que não se metesse com a Igreja: “onde estão os tanques e aviões do Vaticano?”

O Vaticano tem força moral, mas não tem mais do que isso. E, neste sentido, acredito que o Papa esteja fazendo todo o possível.

Realmente, nossa força é fraca, pois a moralidade não é a força mais forte no mundo em que vivemos.

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Ortega e sua esposa – a vice-presidente da Nicarágua, Rosario Murillo – ‘não têm o mesmo respaldo dos militares’, segundo José María Tojeira

BBC- Vocês veem algum sinal de que o governo de Ortega fique debilitado de algum lado? Ou, pelo contrário, estes são sinais de que ele assume controle ainda maior da Nicarágua?

Tojeira – O controle é cada vez mais forte. O que acontece é que, nas relações sociais, quanto mais forte o controle, mais fácil é haver algum tipo de eclosão.

Por isso, sim, acreditamos que um controle tão grande pode gerar eclosões internas, não tanto populares, mas dentro do próprio sistema.

Existem pessoas na Nicarágua que, embora ocupem cargos no governo, percebem que este não é o caminho. Existe um mal-estar.

Todos os comandantes do exército e da polícia precisam pedir permissão para poderem sair do país. É um controle ao qual eles não estavam acostumados, que foi crescendo demais.

Por outro lado, Ortega não é igual à sua esposa. Atualmente, eles trabalham muito unidos, mas não têm o mesmo respaldo dos militares.

Ortega tem 78 anos e este é outro fator que eu diria que irá forçar uma reorganização do poder interno em relativamente pouco tempo. Como vão fazer é outra questão.

Então, acredito que existem algumas fissuras que irão fazer com que esta concentração tão grande do poder estoure de alguma forma. Tomara que seja uma eclosão pacífica e possa ser encontrada uma saída pacífica da situação atual.