- Paula Rosas
- BBC News Mundo
Em 28 de outubro de 1922, os “camisas negras” de Benito Mussolini marcharam sobre Roma, abrindo o caminho para o regime fascista na Itália.
Um século depois, pela primeira vez depois da Segunda Guerra Mundial, o partido mais votado na Itália tem suas raízes fincadas no fascismo e recuperou o lema que popularizou o “Duce”, como Mussolini era conhecido: “Deus, pátria e família”.
Giorgia Meloni, a grande vencedora das eleições italianas de domingo (25/09), conseguiu levar seu partido Irmãos da Itália das margens para o centro político em apenas uma década – e, inexoravelmente, ao Palácio Chigi, sede do Executivo italiano. Afinal, espera-se que o presidente da Itália, Sergio Mattarella, encarregue Meloni de formar um governo nas próximas semanas.
Como ocorreu esse processo?
Após a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha levou a cabo um processo de “desnazificação” e um doloroso ajuste de contas com seu passado. Mas a Itália decidiu olhar para o outro lado.
Naquela época, o Partido Comunista italiano era o maior de toda a Europa ocidental. E os aliados, já mergulhados na dinâmica da Guerra Fria, tinham um objetivo principal: impedir que os comunistas chegassem ao poder.
O medo que o combate aos antigos fascistas pudesse gerar instabilidade política fez com que as potências aliadas fizessem vista grossa à criação de novos partidos herdeiros do “Duce” e suas ideias.
Além disso, muitos símbolos e monumentos fascistas continuaram – e continuam, até hoje – presentes nas ruas italianas, como os símbolos do fascismo que ainda adornam muitas tampas de esgoto em Roma.
Com isso, surgiu em 1946 o Movimento Social Italiano (MSI), fundado por Giorgio Almirante, que foi chefe de gabinete do último Ministério da Propaganda fascista.
Meloni nunca escondeu sua admiração por Almirante. Em 2018, ela publicou uma montagem fotográfica intitulada “De Giorgio a Giorgia”, mostrando um ao lado do outro, com slogans idênticos: “Podemos olhar nos seus olhos”.
Em 2020, quando se completaram 32 anos da morte de Almirante, a atual vencedora das eleições italianas o homenageou no Twitter, dizendo que foi “um grande homem, um grande político, um patriota”.
Com a queda do bloco comunista, surgiram novos partidos de direita. Um deles, o Força Itália (liderado pelo multimilionário Silvio Berlusconi), incluiu o MSI, então liderado por Gianfranco Fini, na sua coalizão de governo em 1994.
Foi assim que o pós-fascismo entrou no governo e, ante os olhos dos italianos, “deu a ele respeitabilidade”, segundo Luciano Cheles, da Universidade de Grenoble, na França.
O MSI passou a chamar-se Aliança Nacional e a jovem Giorgia Meloni, militante do partido desde os 15 anos de idade, tornou-se líder da sua juventude. É deste processo que nasceu o partido Irmãos da Itália.
“Eles mudaram muitos princípios, alteraram alguns aspectos, mas são, é claro, um partido de direita que tem suas raízes no movimento pós-fascista”, afirma Lorenzo Pregliasco, professor de Ciências Políticas da Universidade de Bolonha, na Itália.
Já Cheles argumenta que as origens do partido estão intimamente ligadas aos partidos neofascistas, mas Irmãos da Itália e Giorgia Meloni enfrentam um desafio.
“De um lado, eles querem apresentar uma imagem respeitável, de moderação e modernidade. Por isso, eles disseram que cortaram o cordão umbilical com o fascismo. Mas, por outro lado, eles não querem perder uma parte do eleitorado que acredita que uma forma moderna do fascismo ainda é válida e aceitável”, explica Cheles.
Simbologia fascista
Essas raízes estão presentes em toda a simbologia do partido.
A mais evidente é a chama tricolor, o símbolo do Movimento Social Italiano que foi mantido pelo partido Irmãos da Itália. E a Frente Nacional, da França, também adotou a mesma chama (ainda que com as cores da bandeira francesa). Mais estilizada, ela também está presente na Reagrupação Nacional francesa de Marine Le Pen.
“Mas, na sua propaganda, existem muitas outras referências ao fascismo, algumas mais ou menos escondidas porque se destinam a ser compreendidas pelos fascistas e pelas pessoas familiarizadas com a sua simbologia”, segundo Cheles, que é especialista em iconografia política.
Um dos exemplos encontrados pelo professor é o próprio hino da juventude da Aliança Nacional, dirigida por Meloni por vários anos.
“Trata-se da canção ‘O Amanhã me Pertence’, cantada por um jovem nazista no filme ‘Cabaret’, de Bob Fosse (1972). Ela continua sendo um símbolo que aparece em grande parte da propaganda de Giorgia Meloni.”
O próprio Giorgio Almirante, que Meloni tanto admira, é outro exemplo: todas as edições do boletim do partido Irmãos da Itália trazem a sua foto, que também se encontra na página web da agremiação, segundo Cheles.
Quais são os seus princípios?
O partido Irmãos da Itália tem suas raízes no pós-fascismo, mas o que conserva daquela filosofia?
O famoso semiólogo, filósofo e escritor italiano Umberto Eco defendia que o fascismo “não tinha essência” e que Mussolini não tinha uma filosofia específica, mas que “só tinha retórica”.
Eco afirmou em um discurso em 1995 que o fascismo “era um totalitarismo confuso, um mosaico de diferentes ideias políticas e filosóficas, uma colmeia de contradições”.
Portanto, não havia uma filosofia específica por trás do fascismo, mas, “emocionalmente, fixava-se firmemente a certos cimentos arquetípicos”, como o culto à tradição, o medo das diferenças, o populismo seletivo e o machismo.
O partido Irmãos da Itália conserva algumas dessas raízes culturais, segundo explica à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, a jornalista italiana Annalisa Camilli, que trabalha para o semanário Internazionale.
Ela afirma que “eles têm um forte discurso contra a imigração e contra os direitos das mulheres, são contrários ao aborto e querem aumentar a taxa de natalidade da Itália, que é a mais baixa da Europa. Neste sentido, são muito tradicionalistas, daí o seu lema: Deus, pátria e família”.
Mas Camilli ressalta que “eles se libertaram desse passado. Agora, são um partido moderno de extrema-direita, mais parecido com outros partidos como a Reagrupação Nacional, de Marine Le Pen, Vox na Espanha ou o partido de Viktor Orbán, na Hungria.”
“Eles procuram um consenso em torno de certos pilares, como a luta contra a imigração ilegal, a promoção de uma identidade nacional e as políticas de apoio à natalidade”, afirma a jornalista.
Como ocorre com tantos outros líderes de ultradireita, desde Orbán até o republicanismo de Donald Trump nos Estados Unidos, a ideologia de Meloni ataca a “esquerda globalista”, os supostos “lobbies LGBT” e fala de como a “imigração massiva” acabará substituindo os italianos “de toda a vida”, ou seja, os brancos e cristãos, de forma alinhada com a “grande substituição” do polêmico escritor francês Renaud Camus.
“O neofascismo não traz necessariamente camisas negras”, segundo Cheles. “O fascismo hoje tem uma forma mais sutil. É uma forma de autoritarismo cujos elementos resumem-se a não respeitar as diferenças, nem as minorias, e que mantém atitudes intolerantes contra certos grupos de pessoas.”
Do que se alimenta o neofascismo?
Annalisa Camilli indica que, em um país como a Itália, “o fascismo é endêmico. De alguma forma, 100 anos depois, as testemunhas já morreram e a memória que ficou não é suficientemente forte para evitá-lo.”
E a base eleitoral ficou muito mais instável. Se existe algo que os italianos demonstraram nos últimos anos, é que eles sempre votam pela mudança. Sucessivos governos italianos geraram insatisfação entre os cidadãos e o populismo parece ter chegado para ficar.
“O Movimento 5 Estrelas já preparou esse terreno, garantindo que não havia diferença entre a esquerda e a direita, que tudo era corrupção”, destaca Camilli.
Esse discurso de indignação contra as castas e as elites, contra os partidos tradicionais e a política clientelista que muitos italianos rejeitam, é o mesmo defendido pelos populistas do Movimento 5 Estrelas e que agora foi adotado por Giorgia Meloni e pelo partido Irmãos da Itália.
A coalizão de extrema-direita alimentou-se das “classes trabalhadoras que perderam suas economias com a inflação e da classe média que fica cada vez mais pobre, prometendo uma ‘nova era'”, explica Camilli.
E, há 100 anos, o fascismo também prometia “uma nova era”, um novo começo.
As consequências para a Europa
Para Luciano Cheles, o auge dos partidos de extrema-direita em toda a Europa, como os Democratas da Suécia, Vox na Espanha, Lei e Justiça na Polônia e a Hungria de Orbán – que o Parlamento Europeu declarou recentemente que não pode ser considerada uma democracia plena – tem uma mesma origem: o aumento da imigração.
“Essas ideias neofascistas vêm sendo introduzidas com este tipo de argumentos, que dizem que a Itália e outros países não podem permitir a entrada de tantos estrangeiros”, afirma o professor.
Em Bruxelas, a Comissão Europeia garante que irá trabalhar com qualquer governo que saia das urnas, mas a preocupação é real. Tanto o Irmãos da Itália quanto a Liga – partido do senador Matteo Salvini que faz parte da coalizão de extrema-direita – conduziram forte retórica “eurocética”, embora com algumas diferenças.
Meloni moderou seu discurso nos últimos meses. Ela afirmou que não quer que a Itália saia da União Europeia, nem de organizações como a Otan. Sobre a Guerra na Ucrânia, Meloni apoiou a decisão do primeiro-ministro Mario Draghi de enviar armas para Kiev.
Mas a postura dos seus sócios de coalizão apresenta oposição frontal a Bruxelas. Salvini tem estreitas relações com a Rússia e seu partido está sob suspeita de ter recebido financiamento de Moscou.
Já o terceiro “sócio” da coalizão, Silvio Berlusconi, também é amigo íntimo de Vladimir Putin e recentemente justificou a invasão da Ucrânia pela Rússia.
Mas, além da guerra, o que realmente preocupa a União Europeia é a possibilidade de que a Itália, país fundador do bloco e sua terceira maior economia, torne-se outra Hungria ou Polônia, colocando em risco seus valores fundamentais.
“Existem preocupações em nível internacional”, reconhece Lorenzo Pregliasco, que também é diretor da revista digital YouTrend, especializada em jornalismo de dados. “Mas acredito que a democracia italiana é mais forte do que parece e, é claro, mais forte do que era em 1922.”
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