- Author, Alejandra Martins
- Role, BBC News Mundo
Laranjas do entorno do vulcão Etna, na Itália; cacau criollo da Venezuela; arroz vermelho da China e milho das montanhas de Oaxaca, no México.
Esses e outros alimentos ameaçados de extinção são muito mais do que uma fonte de sobrevivência, de acordo com o jornalista da BBC Dan Saladino.
Eles são também objeto da “invenção, imaginação e sabedoria de centenas de gerações de agricultores e cozinheiros”.
Isto é: nossos ancestrais melhoraram, adaptaram e tornaram comestíveis alguns frutos da terra ao longo de milhares de anos. Mas, em nossos tempos, essa rica diversidade está se perdendo rapidamente.
Em seu livro Eating to Extinction (“Comendo até a extinção”), Saladino viajou para vários cantos do planeta para conhecer comunidades que cultivam e preparam alimentos tão únicos e ameaçados quanto seus estilos de vida.
O jornalista alerta para “a imensidão do que estamos perdendo” e afirma que o nosso atual sistema de produção alimentar altamente intensivo “está contribuindo para a destruição do planeta”.
Dan Saladino conversou com a BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC,
durante o festival Hay Festival de Cartagena 2023, realizado na Colômbia entre 26 e 29 de janeiro.
Na entrevista, ele defendeu que os alimentos ameaçados compõem um verdadeiro tesouro, alertou para os riscos de um mundo cada vez mais uniforme e deu sugestões do que fazer para combater a perda da diversidade.
Confira os principais trechos da entrevista.
BBC – Como você começou a coletar histórias de alimentos ameaçados de extinção?
Dan Saladino – Em 2007, comecei a trabalhar em um programa de rádio da BBC sobre alimentos chamado Food Programme, que existe há mais de 40 anos e se concentra na cultura, ciência e economia dos alimentos.
E o primeiro programa que fiz me levou para a Sicília. Fui lá esperando contar a colheita de cítricos em tom de festa. Minha família vem da Sicília e eu sabia que as frutas cítricas vinham impactando a cultura, a paisagem e a identidade da ilha por milhares de anos.
Mas, ao conversar com produtores das típicas laranjas da Sicília, eles me disseram que estavam colhendo sua última safra, porque com a demanda por variedades importadas, os pequenos agricultores não podiam mais continuar.
BBC – Foi ali que você descobriu a iniciativa que inspirou o seu livro, o projeto Ark of Taste?
Saladino – Na Sicília, também fui convidado para uma refeição em um povoado chamado Lentini, onde todos os pratos tinham laranjas tradicionais como ingrediente. Lá, conheci um dos fundadores do movimento slow food, que tinha vindo do norte da Itália.
Ele me disse que as típicas laranjas sicilianas que crescem nas encostas do vulcão Etna seriam incluídas no catálogo do Ark of Taste (“Arca dos Sabores”). Eu nunca tinha ouvido falar naquilo. É como uma Arca de Noé, mas com alimentos ameaçados.
A lista inclui hoje mais de 5.500 alimentos ameaçados de extinção em cerca de 150 países, incluindo muitos nas Américas.
Foi assim que entrei no assunto dos alimentos em extinção e me apaixonei por esse tesouro de histórias.
BBC – Algo de que gostei muito no livro é que ele nos faz ver os alimentos ameaçados não apenas como fontes de nutrição, mas como histórias de inovação e sobrevivência, de habilidades aprimoradas ao longo de milhares de anos, por centenas de gerações.
Saladino – A comida é uma lente incrível para entender o mundo.
No livro, conto a história de como surgiram esses alimentos e de como eles permitiram a sobrevivência de comunidades em diferentes paisagens e terrenos.
E como a relação com esses alimentos influenciou a identidade e a cultura dessas populações.
Então, eu vejo a comida e a bebida do ponto de vista da inovação, da ciência, da cultura, da sobrevivência — porque a comida representa todas essas coisas.
BBC – Uma imagem comovente no livro é aquela contada por Cary Fowler, o cientista que teve a ideia de criar o banco de sementes de Svalbard, no Ártico da Noruega. Ele disse que muitos visitantes do banco de sementes saem chorando e dizendo que “as sementes são resultado do trabalho de meus ancestrais e também de seus ancestrais”. Você vê a comida dessa maneira quase espiritual?
Saladino – É uma das minhas passagens favoritas do livro. As sementes de Svalbard foram enviadas de todo o mundo, e a incrível escala dessa diversidade é o que emociona muitas pessoas.
Essas sementes representam o esforço de mais de 12.000 anos de agricultura, com pessoas adaptando o cultivo e passando essas sementes de geração em geração.
São nosso patrimônio, porque dependemos dessa diversidade criada por milhares de anos. Mas poucos conhecem essas histórias.
Vemos as pinturas, esculturas e catedrais como os melhores exemplos da criatividade e visão humana, mas também devemos olhar para os alimentos ameaçados de extinção de que falo no livro.
BBC – Você poderia nos dar uma ideia de quanta diversidade perdemos na alimentação atualmente?
Saladino – É difícil ter dados precisos. É por isso que bancos de sementes como a de Svalbard são uma forma de medir a diversidade que ainda existe.
Svalbard contém milhares de amostras, por exemplo, de arroz, milho e muitas plantas comestíveis. Tem mais de 200.000 amostras de trigo. Mas os agricultores da Europa recebem uma lista com apenas dez variedades de trigo — que são muito semelhantes geneticamente.
O mundo tornou-se dependente de uma quantidade relativamente pequena de alimentos. Existem basicamente nove culturas principais consumidas globalmente. E cerca de 50% das calorias que consumimos são fornecidas por apenas três: trigo, arroz e milho.
BBC – No início do livro, há uma citação de Rachel Carson, a famosa bióloga americana. Ela diz que a natureza criou uma grande diversidade, mas o ser humano sempre tentou simplificar essa diversidade. E você enfatiza que vivemos em um mundo marcado pela uniformidade.
Saladino – Rachel Carson é merecidamente famosa por seu trabalho pioneiro alertando contra o uso de pesticidas no livro Primavera silenciosa. Ela era uma bióloga marinha, mas reconhecia a interconexão de todas as coisas.
Em todo o seu trabalho, ela quis transmitir aos leitores a beleza e a necessidade de toda a complexidade da natureza. Os seres humanos, no entanto, têm essa tendência de simplificar a natureza.
Muitas pessoas podem dizer: “Mas a minha alimentação é mais variada que a dos meus avós, vou ao supermercado e compro comida de todo o mundo.”
O problema é que estamos todos tendo a mesma experiência globalmente, comendo o mesmo tipo de sushi ou abacate, da mesma forma que usamos as mesmas vestimentas. Comemos, por exemplo, apenas um tipo de banana, a Cavendish, embora existam 2.000 variedades de banana.
BBC – Por que é tão crucial preservar a diversidade e salvar alimentos ameaçados?
Saladino – Na segunda metade do século 20, gerou-se essa crença de que questões alimentares eram resolvidas com soluções tecnológicas, com a genética, com sistemas de irrigação que utilizam muita água, insumos químicos e fertilizantes.
Mas, agora, percebemos que esse sistema alimentar homogêneo que criamos tem um custo alto e gera muitas emissões de gases de efeito estufa, as quais impactam as mudanças climáticas.
Acho que precisamos ser mais humildes e reconhecer que a ciência e a tecnologia funcionam em um nível, mas também criaram muitos problemas. E um primeiro argumento para salvar a diversidade é que talvez, no futuro, muitas soluções podem ser encontradas na diversidade genética de alimentos cultivados há milhares de anos.
BBC – Você também traz no livro argumentos relativos à saúde.
Saladino – As descobertas mais recentes da nutrição enfatizam que os seres humanos evoluíram consumindo diversos alimentos. Precisamos da diversidade para a saúde da nossa microbiota intestinal.
E há também outro argumento, que para mim é igualmente válido: queremos mesmo viver num planeta onde a experiência humana se torna cada vez mais uniforme?
BBC – No livro, você garante que o atual sistema de produção de alimentos está contribuindo para a destruição do planeta. Poderia nos explicar isso?
Saladino – Houve várias mudanças na agricultura no século 20, por exemplo, com a invenção do processo chamado Haber-Bosch para produzir fertilizantes sintéticos, ou o surgimento das monoculturas.
Vastas faixas de biodiversidade estão sendo perdidas à medida que essa forma de agricultura se espalha pelo mundo. Os solos foram esgotados e os aquíferos, lagos e rios foram contaminados. Por isso, eu digo que nosso atual sistema de produção de alimentos tem um custo muito alto.
O positivo, claro, é que a fome foi afastada enquanto a população mundial dobrou desde a década de 1970. Mas não podemos continuar da mesma maneira. Até os protagonistas da chamada Revolução Verde, como Norman Borlaug, reconheceram isso.
Borlaug disse que esse sistema muito intensivo teve uma vida útil relativamente curta e nos deu tempo para elaborar uma estratégia de longo prazo. E acho que é onde estamos agora.
Grandes mentes da agricultura e da ciência estão tentando criar sistemas de produção de alimentos em maior harmonia com a natureza, em prol da nossa saúde e da saúde do planeta.
BBC – Falemos de alguns exemplos de alimentos ameaçados citados em seu livro, como o milho oloton de Oaxaca, no México.
Saladino – Este milho é um exemplo fascinante de quão diversas são as plantas e quão grande é a plasticidade genética deste cultivo. Quando botânicos de outros países exploraram as partes montanhosas de Oaxaca desde o final dos anos 1970, possivelmente antes, encontraram esse milho extremamente incomum, muito alto e com raízes aéreas que pingavam algo como um muco.
Este milho é cultivado há gerações pela comunidade Mixe em altitudes elevadas e em terrenos pouco promissores para a agricultura.
Só nos últimos três ou quatro anos surgiu a tecnologia para analisar o muco desse milho. Foi possível constatar que ele contém bactérias que ajudam a fixar o nitrogênio do ar.
Este milho mostra como uma comunidade pode cultivar alimentos sem fertilizantes. E a produção de fertilizantes requer a queima de grandes quantidades de combustíveis fósseis.
É uma história que mostra como a diversidade pode ajudar na segurança alimentar futura.
BBC – No livro, você também fala sobre a perda de variedades de milho em decorrência do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta, na sigla em inglês).
Saladino – O Nafta existe desde a década de 1990 e é um exemplo de acordo comercial que foi importante, mas não incluiu na sua agenda pequenos agricultores ou alimentos nativos.
A entrada do milho dent maize, dos Estados Unidos, teve um impacto devastador na diversidade do milho no México.
Não se sabe quais traços genéticos importantes desapareceram sem nunca terem sido analisados.
É por isso que quero contar essas histórias, para dizer que devemos dar mais valor à diversidade.
BBC – Outro exemplo de alimento ameaçado abordado no livro é o cacau criollo da Venezuela.
Saladino – Fui à Venezuela para conhecer María Fernanda di Giacobbe, que está fazendo um trabalho pioneiro para resgatar esse cultivo.
O primeiro cacau que chegou à Europa veio da Venezuela e mudou o paladar de grande parte do mundo.
Mas, devido à ascensão da indústria do petróleo no século 20, os investimentos no cacau criollo pararam, os agricultores não recebiam mais bons pagamentos e a diversidade genética começou a ser perdida. María Fernanda embarcou então em uma missão, em um contexto de colapso econômico, para resgatar tradições e variedades genéticas do cacau.
Ela trabalha com agricultores e ajuda as famílias no processo de transformação do cacau em barras de chocolate para aumentar a renda delas.
Assim, o reconhecimento da diversidade pode ser um importante recurso econômico.
BBC – E o sabor desse chocolate é diferente?
Saladino – Sim, esse cacau foi muito valorizado quando chegou na Europa por ter um sabor mais delicado, menos amargo. Hoje muito açúcar é adicionado na produção de chocolate.
Mas o cacau criollo permite um produto com perfil único, sabor equilibrado e harmonioso.
BBC – As mudanças climáticas estão tornando mais urgente a necessidade de preservar alimentos ameaçados?
Saladino – Uma história que conto no livro é a do café. Em 2014, muitas plantações da variedade arábica foram devastadas por um fungo.
Foi uma lição sobre a fragilidade das duas principais espécies cultivadas: arábica e robusta.
A solução, apontam, é uma maior diversidade nos tipos de café cultivados. Por exemplo, uma espécie da África chamada Coffea stenophylla [que tolera temperaturas mais altas do que outras espécies] mostra como a diversidade pode nos ajudar a enfrentar os desafios do futuro.
BBC – No epílogo de seu livro, você mostra o que pode ser feito para salvar alimentos ameaçados de extinção e impedir a perda de diversidade. Uma das recomendações trata do problema dos subsídios agrícolas. O quão ruim eles são?
Saladino – Não digo no livro que os cerca de trinta alimentos ameaçados de extinção que eu analiso alimentarão o mundo. Mas eu digo que precisamos de múltiplos sistemas agrícolas. Existe lugar para a tecnologia, mas ao mesmo tempo precisamos de um sistema onde a diversidade possa prosperar.
E é extremamente difícil que isso aconteça por causa dos bilhões de dólares em subsídios agrícolas que sustentam o sistema atual e favorecem as três culturas dominantes que mencionei anteriormente.
Temos que ser mais criativos na produção de alimentos.
Há outras histórias no livro que são exemplos de alimentos que podem ter um enorme potencial, mas este sucesso só vai se concretizar com investimentos.
BBC – Outra recomendação que você dá é que as pessos pensem “como um hadza”. Você poderia nos explicar isso?
Saladino – Os hadza, na Tanzânia, representam uma parte importante da nossa história como humanos. Eles são caçadores-coletores de um dos locais onde o Homo sapiens evoluiu na África.
Eles têm uma grande diversidade na dieta, com um cardápio que pode incluir até 800 espécies de plantas e animais.
Eles ilustram que a diversidade é crucial. E, além disso, sobrevivem porque têm um conhecimento íntimo da natureza.
Claro que nunca mais seremos caçadores-coletores, mas acho que eles podem nos inspirar a construir uma conexão mais forte com a natureza, a ter mais consciência de que somos extremamente dependentes dela.
Os hadza entendem isso e nós devemos entender também.
BBC – O que você gostaria que os leitores tivessem em mente na próxima vez que cozinhassem alguma coisa ou se sentassem diante de um prato de comida?
Saladino – Quaisquer que sejam os ingredientes que você esteja usando, gostaria de convidá-lo a parar por um momento e pensar que há uma história por trás desse ingrediente, uma história de milhares e milhares de anos de agricultores que adaptaram o cultivo para que ele chegasse ao seu prato. Conhecer essa história é importante.
Também os convidaria a comprar outra variedade deste ingrediente, com visual e sabor diferentes, em uma próxima oportunidade.
E convido todos também a estabelecer contato com quem produz seus alimentos.
No livro, conto a história de um agricultor chinês de mais de 70 anos que cultiva uma variedade ameaçada de arroz vermelho.
Quando perguntei como ele conseguia vender o produto, ele pegou o celular e me mostrou como se comunicava com os consumidores em Pequim por meio do Wechat, que é como o WhatsApp na China.
Com a tecnologia moderna, é possível conectar-se com as pessoas que cultivam nossos alimentos e incentivá-las a fornecer mais diversidade no futuro.
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