- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
“A Terra é um só país e os seres humanos seus cidadãos”, proclamou Mirzá Husayn-‘Ali (1817-1892), mais conhecido como Bahá’u’lláh.
Ele fundou, em 1844 na Pérsia Cajar (hoje Irã), uma religião baseada em princípios da unicidade — ou seja, que nega a segmentação, a divisão, a cisão.
Existem praticantes do bahaísmo em mais de 200 cidades brasileiras e, segundo os responsáveis pela igreja no país, são cerca de 30 mil os participantes em território nacional.
A instituição contabiliza um total de 90 mil, somando todos os fiéis desde que o primeiro grupo chegou ao Brasil, há pouco mais de 100 anos.
“A Fé Bahá’í é uma religião mundial, independente”, define a praticante Luiza Cavalcanti, representante institucional da Comunidade Bahá’í do Brasil.
“O princípio fundamental dos ensinamentos de Bahá’u’lláh é a unidade na diversidade, a partir do qual decorrem outros três pilares: unicidade de Deus, unicidade das religiões e unicidade da humanidade”, diz à BBC News Brasil.
Ela explica que Bahá’u’lláh, a maneira como o próprio fundador Husayn-‘Ali assumiu como identidade, é um título assumido por aquele que se considerava — e passou a ser considerado por seus seguidores — mensageiro de Deus.
Bahá’u’lláh, em árabe, significa “a glória de Deus”.
“E que a humanidade é uma grande e única família humana, completamente interconectada e interdependente.”
De acordo com Cavalcanti, Bahá’u’llah defendia “a ideia de que a unicidade é um elemento intrínseco da natureza da humanidade”.
No início da tarde de 16 de outubro do ano passado, uma sessão solene em homenagem ao centenário do estabelecimento da Fé Bahá’í no Brasil ocorreu na Câmara dos Deputados, em Brasília, por requerimento dos parlamentares petistas Luiz Couto e Zeca Dirceu.
Durou 1h45, com transmissão ao vivo pela TV Câmara e pelo canal da casa parlamentar no YouTube.
“A homenagem reflete o quanto a comunidade bahá’í brasileira é vibrante, é diversa, deseja servir ainda mais ao nosso país e acredita com convicção no potencial do nosso povo”, diz a representante institucional.
“Nós celebramos o passado com os corações cheios de esperança no futuro.”
O marco dos 100 anos, na verdade, ocorreu em 2021 — a celebração oficial foi adiada por conta da pandemia de covid-19.
De acordo com Cavalcanti, a primeira bahá’í a pisar em solo brasileiro foi uma escritora americana chamada Martha Root (1872-1939).
Ela viajava o mundo espalhando os princípios da crença e esteve em algumas cidades sul-americanas em 1919.
“Mas foi em 1921 que efetivamente a Fé Bahá’í se estabeleceu no Brasil, a partir da chegada da pioneira bahá’í americana Leonora Armstrong [1895-1980], então com 25 anos de idade”.
Professora de latim em colégios, Armstrong soube da viagem de Root e decidiu também ela contribuir para professar a fé — é considerada a “mãe espiritual dos bahá’ís da América Latina”.
Hierarquicamente, a Fé Bahá’í se organiza por meio de uma ordem administrativa que é formada por, como eles chamam, instituições.
Cada instituição é composta por nove bahá’ís eleitos pela própria comunidade.
“É uma religião que não possui clero”, frisa Cavalcanti.
A eleição dos nove é feita por um processo eleitoral considerado sagrado, de natureza espiritual, em votação secreta.
“Não existe candidatura. Todos os bahá’ís maiores de 21 anos são elegíveis, sendo eleitos por aqueles maiores de 18 anos”, explica ela.
“Na ordem administrativa bahá’í, os membros das instituições bahá’ís não possuem status ou privilégios”, esclarece.
“A autoridade recai sobre as instituições, as quais têm por objetivo guiar os indivíduos e administrar os assuntos de caráter espiritual e material das comunidades bahá’ís”, acrescenta.
No âmbito pontual — de uma cidade, por exemplo —, as instituições recebem o nome de Assembleia Espiritual Local. No país, há a Assembléia Espiritual Nacional.
“No nível internacional, a Casa Universal de Justiça é o órgão máximo da Fé Bahá’í”, conta Cavalcanti. A sede fica no Centro Mundial Bahá´’i, em Haifa, Israel.
No Brasil, são atualmente 74 assembleias locais. Também há sete conselhos regionais, com presença em todas as regiões. A sede nacional fica em Brasília.
“É importante dizer que o funcionamento das instituições bahá’ís é orientado pela unidade e pelo princípio da consulta, o qual é entendido como um mecanismo de investigação coletiva da realidade, cujo propósito central é encontrar clareza e verdade para se alcançar a melhor decisão possível”, explica.
“Nesse contexto, a participação é extremamente importante, em que espaços de consulta são criados para que indivíduos, comunidade e instituições, juntos, possam refletir sobre sua realidade, identificar desafios e encontrar soluções por meio de cooperação e apoio mútuo, bem como dos aprendizados adquiridos pela experiência nas bases.”
Os bahá’ís não adotam rituais coletivos, porque acreditam que estes são linguagens que separam as pessoas.
As reuniões são feitas de forma diferente por cada comunidade, obedecendo a uma organização em três partes: a espiritual, a administrativa e a social.
Antes dos encontros, os fiéis lavam as mãos e o rosto.
As orações podem ser escolhidas pelos participantes e também há o incentivo de leitura de textos sagrados. Não somente aqueles que tratam da Fé Bahá’í, como os livros de Bahá’u’lláh, mas também trechos da Bíblia e do Alcorão.
Na seção administrativa são tratadas das atividades realizadas pela assembleia local, com avaliação dos projetos e compartilhamento de resultados. Por fim, há a parte social: uma pequena confraternização que finaliza o encontro.
Um messias para todas as crenças
Bahá’u’lláh foi criado dentro dos ensinamentos do islamismo.
Ao 28 anos, ele decidiu aderir à Fé Babi, uma religião criada por um jovem muçulmano que se proclamou “o prometido”.
Os praticantes dessa religião foram perseguidos pelo governo da época e o próprio Bahá’u’lláh foi preso duas vezes. Nas profecias difundidas por essa corrente, havia a previsão de que um dia haveria um “mensageiro de Deus”.
Em 1844, quando estava preso pela segunda vez, ele teve uma visão na qual uma donzela, enviada por Deus, lhe dava a missão de ser o aguardado mensageiro. Nascia a Fé Bahá’í.
Bahá’u’lláh definia-se como o “prometido” de todas as religiões do mundo, sendo uma espécie de coletivo de messias em uma só pessoa.
Em seus escritos, ele cita profecias do judaísmo, cristianismo, zoroatrianismo, do islã xiita, do islã sunita e da Fé Babi, colocando-se como o enviado.
Conforme explica o teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o bahaísmo é fruto de uma crença forte entre maometanos persas: a de que o último e verdadeiro sucessor de Maomé (571-632), o criador do islã, que desapareceu no século 10, nunca morreu e, sim, continua vivo numa misteriosa cidade, rodeado de fiéis, e que, no fim dos tempos, aparecerá e encherá a terra de justiça.
“Esse sucessor oculto revela-se de tempos em tempos através daqueles a quem esclarece a sua vontade. Estes são portas por meio das quais se renova a comunicação entre o escondido e seus fiéis seguidores”, contextualiza Moraes.
O último desses teria sido um jovem mercador persa chamado Mullá Husayn (1813-1849). “Ele mencionava muitas vezes um profeta divino que viria logo após ele”, comenta o teólogo. Foi essa a figura que Bahá’u’lláh acreditou ser.
Depois da morte de Bahá’u’lláh, em 1892, o comando da Fé Bahá’í passou a um dos seus filhos, o mais velho. Segundo Moraes, ‘Abdu’l-Bahá (1844-1921) é o grande responsável por disseminar o bahaísmo pelo mundo.
“Ele se transformou em um intérprete idôneo do pai. Em 1912, visitou os Estados Unidos e ali, em Chicago, conquistou os primeiros discípulos americanos. O grupo cresceu e se espalhou pelo mundo”, conta o professor.
Para Moraes, o enredo tem uma explicação no imaginário coletivo. Por se tratar de uma religião muito nova, se comparada com a imensa maioria das demais, foi necessário vincular a narrativa a um passado.
“No caso, um fato mais antigo, misterioso [o seguidor de Maomé que desapareceu no século 10]. Aí, no século 19, vem à tona esse processo de aparecimento dessa fé.”
Na doutrina, há uma lógica contemporânea, cheia de princípios democráticos e com a preocupação de encarar a humanidade como um só povo, unido, sem fronteiras.
“Talvez seja o grupo religioso mais adaptado ao temperamento de nossos dias”, avalia Moraes.
“Estudiosos classificam a Fé Bahá’í como um grupo unionista por excelência, no sentido de que, ao contrário de outros grupos religiosos que existem para negar a fé dos demais segmentos, proclamando-se como arautos, como únicos arautos da verdade, a Fé Bahá’í não faz isso, ela integra, tenta unir, respeitando todas as manifestações de liderança das mais variadas religiões do mundo”, diz o teólogo.
Segundo sua análise, isso propicia aos bahá’ís atrair “da mesma maneira, sem causar danos, hindus, muçulmanos, cristãos, judeus…”
“É uma fé que admite a divindade do messias de cada uma dessas religiões. E nem sequer reivindica o posto de maior divindade ao seu próprio profeta, o Bahá’u’lláh. Apenas diz que ele trouxe a última mensagem da fonte divina aos povos do mundo”, argumenta.
“E essa mensagem não difere fundamentalmente ou em essência da mensagem dos precedentes.”
Para os bahá’ís, cada um tem liberdade de buscar sua verdade. E todos os preceitos e preconceitos têm de ser abandonados: de religião, de cor, de nacionalidade, de classe, de orientação sexual.
Cavalcanti afirma que o grande objetivo dos bahá’ís é contribuir para o desenvolvimento humano.
“As questões e desafios sociais, que bloqueiam o progresso e o desenvolvimento da sociedade, adoecem como um todo o corpo da humanidade, independente de onde a doença esteja afetando. Esse fato, inclusive, impede o estabelecimento da unidade, pois tal elemento só é possível se houver justiça”, argumenta.
Assim, segundo a representante, os ensinamentos bahá’ís apresentam princípios sociais “capazes de responder às necessidades mais primordiais da sociedade”, como remédios para a superação do que ela chama de males sociais.
Alguns desses princípios são: a eliminação de todos os tipos de preconceito; igualdade de direitos e oportunidades entre mulheres e homens; harmonia entre ciência e religião; eliminação dos extremos de riqueza e pobreza; educação universal e compulsória; livre e independente busca pela verdade; e uma língua auxiliar universal, enumera a porta-voz.
“Eles lutam pela paz internacional, por um idioma internacional auxiliar, pela educação para todos, igualdade entre os sexos, abolição da escravidão industrial e santidade pessoal”, cita Moraes, da Universidade Mackenzie.
“O bahaísmo proclama que a união e a fraternidade são as duas únicas coisas importantes e que devem nortear o mundo. Nesse sentido, é uma religião típica de um tempo como o nosso: afinal, quem é contra a paz?”, diz o teólogo. “Com uma mensagem bastante plausível aos nossos dias, eles vão ganhando adeptos.”
Essa postura, contudo, nem sempre é bem-vista pelas outras denominações religiosas.
“Há grupos cristãos que não enxergam a Fé Bahá’í com bons olhos, tachando-a de oportunista, de tentar de alguma maneira ocupar um lugar de Jesus Cristo e dizer para um cristão que a mensagem dele está ultrapassada. Isso incomoda”, comenta Moraes.
Fonte: BBC
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