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Oriana em sua barraca de comida venezuelana em Georgetown

  • Author, Leandro Prazeres e Jorge L. Pérez Valery, de Essequibo, e Noberto Paredes, de Londres
  • Role, BBC Brasil e BBC Mundo

“A Venezuela reivindica dois terços da Guiana e essa terra nos pertence.”

Essa é a opinião de Lincoln Green, guianês que vende comida de rua no Stabroek Market, o maior mercado de Georgetown, a capital do pequeno país sul-americano.

Green garante que os guianêses experimentam com desconforto e angústia as recentes tensões com a Venezuela por Essequibo. E eles apenas esperam que a paz prevaleça.

“Os britânicos já resolveram (a disputa) no passado, em 1899”, defende Green.

Para a Venezuela, porém, a questão não é tão simples como explica o comerciante guianês.

O governo venezuelano baseia seu ponto de vista no fato de Essequibo ter pertencido à Capitania Geral da Venezuela do Império Espanhol e, após a independência do país em 1811, o território ter continuado sob controle do país durante alguns anos.

O cenário começou a mudar em 1814, quando o Reino Unido comprou da Holanda as terras que se tornariam a Guiana Inglesa, cujas fronteiras com a Venezuela não estavam bem definidas.

Em 1899, o governo venezuelano denunciou que o Reino Unido estava invadindo o seu território e concordou em levar o assunto a um tribunal em Paris.

Como apontou Green, a questão foi então considerada resolvida quando a Sentença Arbitral de Paris decidiu a favor do Reino Unido.

Mas quatro décadas depois, a Venezuela encontrou provas de uma suposta injustiça durante o processo judicial e reativou a demanda. Após a independência da Guiana em 1966 e a assinatura de um acordo no mesmo ano, o assunto permaneceu como uma pendência até hoje.

Green visitou repetidamente a região disputada com seu grupo de música cristã e diz que fica feliz em saber que o território pertence à Guiana.

“É um dos lugares mais bonitos da Guiana. Com todas as paisagens, muita cultura e a comida que vem daquela região”, continua ele.

“Temos coisas demais: ouro, bauxita, diamantes… Meu Deus! Essa riqueza é a nossa herança”, exclama ele, com entusiasmo.

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Lincoln Green no Stabroek Market, em Georgetown, capital da Guiana

Região rica em recursos

Essequibo é de fato uma região rica em recursos naturais e minerais.

Desde 2015, quando foram descobertos vastos depósitos de petróleo ao longo da costa da região, a Venezuela aumentou progressivamente a antiga reivindicação sobre o território.

“Não existem queixas”, diz sem rodeios Ron, um trabalhador da construção civil guianês que vive em Georgetown.

“Nascemos e crescemos sabendo que Essequibo pertence à Guiana. Estamos confiantes de que seremos vitoriosos em tudo o que (Nicolás) Maduro tentar alcançar”, acrescenta ele.

O presidente da Venezuela convocou um referendo no início de dezembro para consultar os cidadãos do seu país sobre a reivindicação do território, também conhecido como Guayana Essequiba.

Segundo as autoridades venezuelanas, os eleitores aprovaram as propostas do governo, que incluem a criação do Estado da Guiana Essequiba como parte do território venezuelano.

Dois dias depois do referendo, Maduro solicitou a aprovação de uma lei para criar este novo Estado venezuelano e pediu à petrolífera estatal PDVSA que começasse a conceder licenças de exploração em Essequibo.

‘Deveríamos ser consultados’

Narayan Rampertap nasceu e cresceu em Essequibo e confessa que ignorou durante muito tempo que a sua terra natal era reivindicada pela Venezuela.

“Nunca ouvimos nada sobre isso, e tenho 56 anos. No começo, pensei que fosse propaganda, mas agora percebo que é real”, diz a mulher, que hoje mora em Georgetown.

“Isso tudo é estressante, porque minha irmã e meus sobrinhos moram lá (em Essequibo) e, se essa grande parte da Guiana virar Venezuela, então o que será a Guiana? Vamos fazer parte da Venezuela? Não gosto disso.”

Ela destaca que a Venezuela está em crise e que Nicolás Maduro deveria se concentrar em “cuidar do seu povo”.

“Muitos guianêses foram para a Venezuela para escapar da pobreza e agora tiveram que retornar”, continua ele.

“Ele não deveria ter organizado um referendo perguntando ao seu povo. Ele deveria perguntar o que nós queremos.”

Medo de uma invasão?

Thomas Singh, pesquisador da Universidade da Guiana, visitou Essequibo na véspera do referendo e diz que o clima na região era sombrio, “muito diferente” do resto da Guiana.

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Georgetown, Guiana

“Enquanto na Guiana havia um clima de ameaça latente, um medo de uma intervenção venezuelana e pessoas organizando manifestações para demonstrar a unidade nacional, em Essequibo poucos pensavam que haveria uma invasão militar”, acrescenta o acadêmico.

“Os habitantes de Essequibo são guianêses e se sentem guianêses, mas alguns responderam que aceitariam uma carteira de identidade venezuelana se realmente não tivessem outra opção.”

“Se eles sentissem que a segurança e os meios de subsistência estavam sendo ameaçados e acreditassem que poderiam continuar a viver em paz aceitando uma identidade venezuelana, eles o fariam”, avalia o pesquisador.

Talvez a proposta mais controversa do referendo venezuelano tenha sido justamente a de conceder a cidadania venezuelana aos habitantes de Essequibo.

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Um mural em Georgetown que diz: ‘Essequibo pertence à Guiana’

Durante décadas, a Guiana foi a segunda nação mais pobre da América do Sul, à frente apenas da Bolívia.

Isso transformou o país em uma terra de migrantes que buscavam uma vida melhor em outros países, inclusive na Venezuela.

De acordo com o censo venezuelano de 2001, naquele ano pouco mais de 6 mil guianeses viviam na Venezuela.

Oriana fazia parte dessa estatística.

Ela decidiu se estabelecer em Sierra Imataca, cidade do Estado de Delta Amacuro, na fronteira com Essequibo, onde viveu cerca de 30 anos com os filhos. Ela afirma que sempre foi “muito bem” tratada e nunca teve problemas por ser guianesa.

Há alguns anos, Oriana regressou à terra natal devido à situação econômica da Venezuela. Agora, ela tem uma barraca de comida venezuelana em Georgetown.

“Tenho de tudo: empanadas, arepas, cachapas, pãezinhos, pepitos, hambúrgueres, cachorros-quentes…”, diz ela.

Quanto ao conflito em Essequibo, ela pede apenas que tudo seja resolvido de forma pacífica.

“Não queremos guerra. Se conseguirmos encontrar uma solução sem guerra, melhor.”

Adrian Smith é outro guianês que morou na Venezuela. Ele chegou em San Félix, no Estado de Bolívar, com apenas 8 anos.

“Nasci em Essequibo e cresci na Venezuela. Não tenho nacionalidade venezuelana, mas meus filhos possuem”, diz ele, que mora em Anna Regina, cidade localizada no noroeste de Essequibo.

Após 34 anos na Venezuela, Smith saiu de casa, vendeu os carros e tudo que havia construído em sua terra adotiva para retornar ao país de origem.

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Mercado en Georgetown, capital da Guiana

“Agora, Essequibo é muito melhor que a Venezuela. Lá não se pode mais conviver com criminosos nem com o sistema de governo.”

Smith acredita que a Venezuela não vai agredir a Guiana e tenta acalmar os compatriotas que temem uma invasão.

Venezuelanos na Guiana

De fato, o fluxo migratório entre a Venezuela e a Guiana se inverteu nos últimos anos. Atualmente, não são apenas os guianêses que fazem a viagem de regresso. Cada vez mais venezuelanos procuram melhores oportunidades do outro lado da fronteira.

Enquanto a Venezuela atravessa uma intensa crise econômica há quase uma década, a Guiana não para de crescer. O PIB do país deverá aumentar 25% este ano, depois de ter subido 57,8% em 2022.

Cristian Anton mudou-se do Estado de Bolívar, na Venezuela, para Georgetown há alguns anos.

“Todos sabem que o governo venezuelano não é bom, e por isso vim para a Guiana”, diz o venezuelano, que atualmente trabalha como entregador.

Anton acrescenta que, quando chegou, não sofria com a xenofobia — mas diante da situação atual é frequentemente confrontado e ouve “fortes grosserias”.

“Parece que estamos lutando contra eles. Para ser claro, digo que isso (Essequibo) não é a nossa preocupação. Esses são problemas políticos”, continua ele, antes de insistir que está na Guiana apenas para trabalhar e empreender.

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Georgetown, Guiana

Anton confessa que, se dependesse dele, jamais entregaria Essequibo ao governo de seu país.

“Essas pessoas não estão fazendo nada de bom. Se vão colocar os moradores de lá (Essequibo) em dificuldades, melhor não fazer isso.”

Mas, no final, ele diz que, como venezuelano, quer que esse território seja entregue “a quem tem razão e a quem realmente o merece”.

Maria*, outra venezuelana que vive em Georgetown há quase uma década e prefere permanecer anônima, também sofreu com o aumento das tensões entre a Guiana e a Venezuela.

Ela garante que a situação atual é muito tensa e que tem recebido “muitas” mensagens de ódio e até ameaças.

Ela admite que na Guiana viveu “alguns” episódios de xenofobia, mas que são raros.

“Os venezuelanos que vivem aqui só querem paz e tranquilidade para continuar a ajudar as nossas famílias. Não concordamos com a guerra”, continua.

Maria, que possui uma grande rede de seguidores nas redes sociais, costumava postar conteúdos sobre a Guiana.

Mas ela começou a receber ameaças depois de expressar o seu desacordo com o referendo. Desde então, teve que esconder a própria identidade.

“Eles têm que perguntar às pessoas que vivem em Essequibo, não às pessoas da Venezuela que não sabem como é a situação lá”, opina ela.

Tal como muitos dos seus compatriotas, Maria não acredita que o assunto irá mais longe. Para ela, o governo venezuelano usa a disputa por Essequibo como um “truque político” para distrair a população de uma questão que muitos consideram mais importante: a eleição presidencial, marcada para o próximo ano.

*O nome verdadeiro foi alterado para proteger a identidade da entrevistada.