- Author, Mariana Alvim
- Role, Enviada da BBC News Brasil a Santiago do Chile
Quarenta anos separam as idades de Gabriel Boric, 38, e Luiz Inácio Lula da Silva, 78. Esta poderia ser apenas uma curiosidade trivial sobre os presidentes chileno e brasileiro, que se encontram a partir desta segunda-feira (5/8) em Santiago — mas explica, na verdade, muitas das diferenças na postura dos dois presidentes esquerdistas, segundo entrevistados pela BBC News Brasil.
No mesmo dia, o Chile foi um dos países cujo corpo diplomático foi expulso pela Venezuela de seu território por ter questionado os resultados do pleito. Já Lula, em sua primeira declaração sobre o assunto, minimizou a crise e afirmou que o que está acontecendo é um “processo normal”, onde a Justiça poderia resolver o impasse.
A crise na Venezuela deverá ser o elefante na sala do encontro bilateral entre Boric e Lula, que viajou a convite do chileno e ficará em Santiago até terça (6/8). Os eventos buscam trazer uma agenda positiva, com a previsão de assinatura de cerca de 20 acordos ou projetos entre os dois países em áreas diversas.
O Brasil é o terceiro maior parceiro comercial do Chile e principal destino dos investimentos chilenos no mundo, enquanto o Chile é o sexto maior mercado para exportações brasileiras.
Espera-se que os presidentes tratem da situação em Caracas, ao menos em reunião privada.
Para o cientista político chileno Patricio Navia, professor na Universidade Diego Portales e na Universidade de Nova York, justamente nesse capítulo sobre a Venezuela, a questão da idade— e mais precisamente da experiência —, apareceu.
“Provavelmente, a reação de Lula [à situação na Venezuela] reflete um pouco mais de experiência política que a reação de Boric, que tomou uma reação muito mais visceral e crítica, que de certa forma o deixa fora do espaço para gerar diálogo e negociação entre o governo e a oposição na Venezuela”, diz Navia.
Mas o professor lembra que, na questão da Venezuela, as diferentes posturas vão além de Boric e Lula, e têm a ver mais com o papel do Chile e do Brasil no cenário internacional. Ele destaca a grandeza da população, do território e da economia do Brasil, em contraste com o tamanho do Chile — apesar deste, em geral, ter índices sociais melhores.
“O Chile não pode ser um ator internacional. Se o presidente do Chile disser algo, ninguém vai prestar atenção. Se o presidente do Brasil fala, prestam atenção, porque é o maior país da América Latina. Então, o Brasil entende o seu papel no mundo.”
Navia exemplifica essa diferença de importância citando que o presidente americano, Joe Biden, ligou para Lula, e não para Boric, para falar sobre a situação da Venezuela.
“Por isso, Lula vem ao Chile e Boric vai querer estar próximo a Lula. Para Boric, uma foto com Lula será mais valiosa para ele” do que o contrário, brinca o cientista político sobre o encontro bilateral.
Velha guarda e ‘nova agenda’
Lula está em seu terceiro mandato, e Boric, no primeiro. Quando o chileno assumiu o poder em 2022, aos 36 anos, tornou-se o presidente mais jovem já eleito em seu país.
Entretanto, ele não poderá buscar um segundo mandato na próxima eleição porque o Chile não prevê reeleição consecutiva.
Além dos anos de vida e de experiência política, Navia destaca também as diferentes trajetórias sociais de Lula e Boric.
“Lula nasceu pobre, foi líder sindical, trabalhou em fábricas. Boric é de classe média alta, sempre foi a colégios privados. Boric está disposto a ser um pouco mais irresponsável porque é mais jovem e vem da burguesia, enquanto Lula entende os custos da confrontação e a necessidade de criar alianças com quem pensa diferente”, diz Navia, afirmando que Boric tem “muitos problemas” em conversar com pessoas diferentes ideologicamente.
Dawisson Belém Lopes, professor de política internacional e comparada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), endossa essa diferença nas origens, destacando que Lula ascendeu como líder sindical e Boric, como “filho” do movimento estudantil.
“O Lula não estudou formalmente nas universidades, e Boric nasce nas universidades”, ressalta Lopes, destacando que o brasileiro se formou politicamente em um contexto ainda fortemente influenciado pela Guerra Fria.
“Para o Lula, o prisma econômico é muito forte. Questões relativas à infraestrutura, aos meios de produção e aos conflitos de renda pesam muito para ele, no raciocínio dele. Boric é outra coisa, ele não está tão ligado a esse conflito material — pelo lugar de fala dele, por vir do movimento estudantil, por ser de um país que já é mais rico”, enumera.
O contexto histórico da trajetória de cada um também importa, lembra Talita Tanscheit, brasileira e professora da Universidade Alberto Hurtado.
“O Lula e o PT fazem parte de uma esquerda que reemerge nos processos de transição à democracia na América Latina, com o fim das ditaduras militares e a criação ou o restabelecimento dos partidos políticos de esquerda. Boric e a Frente Ampla emergem num processo de reinvenção da ação coletiva no Chile nos anos 2010”, explica a cientista política.
Ela destaca a adesão dessa “nova esquerda” à chamada agenda dos novos direitos, que inclui assuntos como aborto, eutanásia, maconha e saúde mental, e ao identitarismo, um debate contemporâneo que ressalta e busca recompensar a distribuição de oportunidades determinada por gênero, raça, entre outros marcadores de diferenças sociais.
“Essa nova esquerda não é forjada no mundo sindical, então a centralidade do mundo do trabalho é menor — algo muito relevante no caso brasileiro e do Lula”, afirma Tanscheit, dizendo que, no Brasil, segundo ele, essa “nova esquerda” tem como representante o PSOL.
No governo Boric, o identitarismo se reflete numa maior presença de mulheres no governo, aponta Patricio Navia.
“Lula tem uma maioria de ministros homens, algo que para Boric é impossível de entender”, destaca.
Entretanto, com as derrotas em dois plebiscitos para tentar aprovar uma nova Constituição, Boric também precisou recuar em sua agenda.
“Boric chegou ao poder querendo reformar drasticamente o Chile. Mas as principais questões políticas de Boric foram simplesmente abandonadas, porque as pessoas votaram contra elas nos plebiscitos. Então ele foi muito mais moderado porque foi muito limitado no que era capaz de fazer”, afirma o cientista político.
É a economia
Navia destaca que eventuais diferenças entre Brasil e Chile na política econômica podem ter mais a ver com as características próprias dos países do que de seus governantes.
“As economias do Brasil e do Chile são bem diferentes. O Chile é voltado para a exportação e é um país de 20 milhões de pessoas. Então a economia do Chile precisa de exportação.”
“No Brasil, sempre houve uma economia doméstica significativa. Presidentes brasileiros de esquerda e de direita no Brasil têm que se preocupar com protecionismo. Já o Chile não pode implementar políticas protecionistas porque a economia simplesmente não é grande o suficiente”, diz o professor.
Dito isso, Talita Tanscheit avalia que, no que diz respeito aos atuais ministros da Fazenda do Brasil e do Chile — Fernando Haddad e Mario Marcel —, a conduta dos governos Lula e Boric tem sido bem semelhante.
“Há uma proposta de estabilizar [o país] e fazer reformas para crescer”, diz a cientista política, destacando a aposta no controle da inflação e nas reformas tributárias com o argumento de investir em desenvolvimento social.
E, apesar dos discursos e diferenças entre a velha e a nova guarda da esquerda latino-americana, Tanscheit destaca que, dentro do próprio governo Boric, elas não estão tão distantes assim: as figuras e ministros “mais relevantes” têm origem no governo da ex-presidente Michelle Bachelet.
“É um governo da nova esquerda dirigida pela velha esquerda chilena”, resume.
Fonte: BBC
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