Crédito, Divulgação/Paulo Robinson Samuel

Legenda da foto, Lixão no Porto Seco em 2 de junho; os chamados ‘bota-espera’, lixões temporários criados pela prefeitura, causam preocupação entre moradores e especialistas

  • Author, Luiz Antônio Araujo
  • Role, De Porto Alegre para a BBC News Brasil

Ao retornar em 18 de maio ao seu apartamento de quarto andar no bairro Menino Deus, em Porto Alegre, a profissional de educação física Cáren Cecília Baldo sentiu-se em um “cenário de guerra”.

Treze dias antes, ela tinha assistido pela janela a água espalhar-se pela vizinhança — primeiro do meio da rua para a calçada, e em seguida para o interior do prédio.

Agora, ela via os vizinhos do térreo depositarem no meio-fio os pertences destruídos pela inundação.

“No domingo, aumentou muito a quantidade de entulho. Na segunda-feira, também”, diz Cáren sobre os dias seguintes ao seu retorno ao apartamento.

Além da lama e da sujeira, Cáren passou a observar no entorno do edifício montanhas de lixo misturado a recordações das vítimas da enchente.

“A gente passava e via fotos, árvores de Natal, brinquedos de crianças. Era bem triste”, descreve.

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Cáren junto à cerca do prédio com marcas de lama indicando a altura atingida pela água

Carros com alto-falantes da prefeitura passavam pelas ruas do bairro anunciando a coleta do entulho “hoje à noite”.

“Só que o ‘hoje à noite’ nunca chegava”, relata a moradora.

Com pequenas diferenças, situações semelhantes à descrita pela professora no final de maio ainda são visíveis nos 22,6% da área de Porto Alegre afetados pela enchente.

Sem plano de contingência para lidar com resíduos de catástrofes, a capital gaúcha teve de apelar para soluções improvisadas e que atraem críticas em razão do volume significativo de barro, lixo e entulho.

Passados mais de 40 dias do início da inundação, porto-alegrenses continuam depositando dejetos da enchente nas calçadas de bairros como o Centro Histórico, Cidade Baixa e Menino Deus, que já estão drenados há semanas.

Em outros, como Humaitá e Sarandi, na zona norte, a água ainda persiste em ruas inteiras, com lixo acumulado em grandes proporções nas partes secas. Finalmente, no Arquipélago, região da capital composta pelas ilhas do Delta do Jacuí, a água ainda cobre a maior parte da área e não há luz.

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, O carro do casal Cáren e Luis Guilherme, que ficou na garagem do prédio e teve perda total

Até segunda-feira (10/6), a prefeitura havia recolhido 48,3 mil toneladas de resíduos pós-enchente. A coleta mobiliza 800 garis divididos em 22 grupos, que trabalham em três turnos de seis horas, incluindo sábados, domingos e feriados.

Na terça-feira (11/6), por meio de contratação emergencial, mais 256 trabalhadores de quatro empresas terceirizadas, divididos em oito equipes, foram acrescidos ao contingente.

Além de coleta de dejetos, os operários executam raspagem de lodo e terra e varrição de vias. A Prefeitura enfatiza que a enchente não provocou em nenhum momento a interrupção dos serviços de coleta, varrição e capina na parte da capital que não foi inundada.

Nas primeiras horas da enchente, a prefeitura decidiu que não colocaria pessoal e maquinaria em risco em áreas alagadas. Nesses locais, a operação limpeza teria início somente depois do fim da inundação.

Nas regiões em que a água tinha escoado totalmente, a orientação foi de que os moradores colocassem resíduos na calçada.

“Foi a única alternativa que a gente teve de dar agilidade ao processo de coleta”, justifica o diretor-geral do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), Carlos Alberto Hundertmarker.

Mas um novo pico do volume de chuva, na quinta-feira (23/5), agravou a situação em bairros como Menino Deus.

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Luis Guilherme e o cão do casal, Che, no dia 4 de maio rodeados de água

Foi essa circunstância que levou a professora Cáren Baldo e seu marido, o empresário Luis Guilherme Menezes, a deixar o apartamento do Menino Deus pela segunda vez em menos de 20 dias — o casal saiu do imóvel novamente em 23 de maio.

“A gente não imaginava que a água ia subir do jeito que subiu. O nível atingido antes em dois dias da segunda vez foi alcançado em duas horas”, afirma Cáren, que atualmente está morando novamente no imóvel.

O repique da inundação nos dias 23 e 24 de maio provocou uma reviravolta na orientação da prefeitura. Em uma postagem nas redes sociais, a administração afirmou: “Até a estabilização do clima, pedimos que a população evite colocar o lixo nas ruas nos próximos dias. Com a previsão de chuva e vento forte, é importante evitar acúmulo de resíduos que possam ser levados pela água”.

Apesar das orientações desencontradas, Hundertmarker afirma que o lixo nas ruas depois do primeiro período de inundações não foi responsável pelo entupimento da rede.

“Visualmente nós até vimos [lixo boiando em] algumas áreas, mas não impactou em nenhum momento na obstrução de bocas de lobo”, diz o diretor-geral do DMLU.

Outra preocupação é com os bota-espera, como foram designados os lixões temporários criados pela prefeitura em vários pontos da cidade.

Crédito, Daniel Marenco/EPA-EFE/REX/Shutterstock

Legenda da foto, Enchentes criaram crise sem precedentes na coleta de resíduos em Porto Alegre

A medida teve por finalidade facilitar a logística de descarte, coleta e armazenamento de inertes, como são definidos os rejeitos da enchente.

Na escala de contaminação estabelecida pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), os inertes ocupam uma posição intermediária (II B).

Não são excessivamente tóxicos a ponto de ser classificados como perigosos (ao lado do lixo hospitalar e de certos tipos de resíduos industriais) nem suficientemente inofensivos para figurar ao lado dos não-inertes (entre os quais encontra-se a maior parte do lixo doméstico).

No Complexo Cultural do Porto Seco, local previsto com uma das futuras “cidades temporárias” planejadas pelo governo do Estado para desabrigados, um bota-espera foi alvo de uma representação do vereador Jonas Reis (PT) apresentada ao Ministério Público do Estado.

A estrutura, disse o parlamentar, “tornou o espaço público insalubre, sem nenhum tipo de manta de proteção no solo, misturando lixo orgânico que as pessoas dispensaram junto com dejetos da enchente que também estão contaminados”.

O presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes), Paulo Robinson Samuel, também fez críticas ao local.

“Vi pessoas catando material no meio daquele monte de resíduos. Não podemos esquecer que esses dejetos estão contaminados. Podem conter ratos, escorpiões e baratas, além de urina de roedores. As pessoas podem pegar doenças. Além de exalar gases, a partir de dois ou três dias os resíduos podem gerar chorume capaz de contaminar o lençol freático”, afirma.

No sábado (8/6), um grupo de moradores do bairro Humaitá protestou contra a presença de um bota-espera nas imediações da Arena do Grêmio. O prefeito Sebastião Melo (MDB) foi até o bairro e garantiu que o lixo será removido para outro local.

Hundertmarker diz que os bota-espera foram fundamentais para dar segurança e agilidade à coleta nos bairros feita por caminhões pequenos.

O DMLU reconhece ter orientado a população a utilizar apenas cinco estruturas (duas no Centro Histórico, uma delas desativada no início do mês de junho, uma no bairro Serraria, outra no bairro Humaitá e outra no bairro São Geraldo).

Na terça-feira (11/6), o órgão informou que o lixão do Porto Seco “ainda (está) sendo encerrado”. Não há previsão para término das operações dos outros quatro.

O diretor técnico da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), Gabriel Ritter, defende que os bota-espera foram fundamentais para retirar montanhas de resíduos da cidade e devolver dignidade aos moradores.

“Na região metropolitana, é praticamente a casa inteira das pessoas que está indo para a rua”, observa.

“À medida que se diminui o lixo nas casas, será possível reduzir o número de carretas de resíduos em circulação e fazer a completa recuperação do espaço urbano.”

Crédito, Divulgação/Paulo Robinson Samuel

Legenda da foto, O diretor técnico da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), Gabriel Ritter, defende que os bota-espera foram fundamentais para retirar montanhas de resíduos da cidade

Nos momentos iniciais da catástrofe, a prefeitura, os órgãos de fiscalização e especialistas chegaram a um primeiro consenso: os restos oriundos das zonas inundadas não poderiam fazer o caminho usual do lixo da capital.

Porto Alegre produz diariamente, em condições normais, cerca de 1,1 mil toneladas de resíduos, das quais cerca de 50 toneladas são de recicláveis.

Esses últimos são destinados a unidades de triagem do DMLU. O material orgânico e resultante da limpeza pública é levado à Estação de Transbordo da Lomba do Pinheiro, na zona leste da cidade, de onde segue para o Aterro Sanitário de Minas do Leão, distante 113 km da capital.

Uma vez que aterros sanitários e unidades de triagem de recicláveis são impedidas por lei de receber inertes, a prefeitura teve de contratar um aterro específico para os resíduos decorrentes das enchentes.

“Tivemos de fazer uma busca em aterros para inertes aqui no Estado e até mesmo fora. Chegamos a cogitar levar esses resíduos para um município em Santa Catarina”, explica Hundertmarker.

A escolha acabou recaindo sobre o Aterro São Judas Tadeu, no município de Gravataí, na região metropolitana de Porto Alegre.

Pesou a favor do estabelecimento a pequena distância da capital (29 quilômetros, percorridos em cerca de uma hora pelas carretas) e o licenciamento pelos órgãos ambientais.

O contrato emergencial firmado pela prefeitura com o aterro prevê o descarte de 77 mil a 180 mil toneladas de inertes.