“Mãos ao alto. Se elas abaixarem, vamos matá-los. Só se tiverem sorte é que vocês vão sair daqui vivos.”
Esse é apenas um dos duros relatos que vêm de El Salvador, onde o presidente Nayib Bukele decretou, há 14 meses, um regime de exceção em meio à sua chamada “guerra às gangues”.
Particularmente, o relato acima foi dado por um jovem que ficou detido na prisão de Mariona e depois foi libertado, após ser declarado inocente.
Ele compartilhou sua história com a Cristosal, a principal organização de defesa dos direitos humanos do país centro-americano. A organização publicou na segunda-feira (29) um relatório a partir de centenas de entrevistas com ex-detidos, familiares de presos e peritos, além de atestados forenses e boletins policiais.
“[Presos] Foram eletrocutados de joelhos. Até tiraram sangue de um deles. Ao entrarem no setor onde iam ficar, os guardas deram outra surra”, contou o jovem.
O relatório concluiu que, desde 27 de março de 2022 (data em que o estado de exceção entrou em vigor), dezenas de presos morreram vítimas de tortura, espancamento ou falta de cuidados de saúde.
A Cristosal registrou a morte de pelo menos 153 pessoas sob custódia do Estado, todas presas durante o regime de exceção.
Destes, 29 presos tiveram morte violenta; 46 “provável morte violenta” ou suspeita de “criminalidade”.
Ainda de acordo com o relatório, é um “padrão comum” a presença nos corpos de detidos de hematomas evidenciando pancadas, ferimentos causados por contusões ou objetivos pontiagudos, sinais de estrangulamento ou enforcamento.
O relatório cita o caso de um homem de 52 anos, dono de uma loja e de um engenho, que durante anos foi assediado por membros de gangues e forçado a fornecer-lhes comida. Com o regime de exceção, o homem foi acusado de colaborar com as gangues e preso.
Segundo um atestado de óbito emitido pelo Instituto de Medicina Legal de El Salvador, o homem acabou morrendo por conta de um edema cerebral.
Enquanto isso, as autoridades salvadorenhas declararam como confidenciais as informações oficiais a respeito e sustentam que as mortes dentro dos presídios ocorrem por causas naturais.
“Ouvi a oposição dizer que as pessoas estão morrendo nas prisões. E que de alguma forma estamos matando os presos ou deixando-os morrer […] Há alguns que têm doenças terminais etc”, disse Bukele durante uma transmissão ao vivo em 16 de outubro do ano passado.
Regime de exceção
O regime de exceção foi imposto em El Salvador após 76 assassinatos serem registrados no país em apenas 48 horas em março do ano passado.
Segundo reportagens como do site jornalístico El Faro, a onda de homicídios foi resultado da ruptura de um suposto pacto entre o governo e a gangue MS-13.
Recentemente, a Procuradoria dos Estados Unidos de fato apontou para uma ligação entre o governo e a MS-13, mas o Executivo salvadorenho sempre negou ter feito qualquer tipo de negociação com a gangue.
No último ano, em que o direito à privacidade nas comunicações e as garantias do devido processo legal foram suspensos, mais de 68 mil pessoas foram detidas por suposta associação às gangues.
Com uma população de 6,3 milhões de pessoas e com as milhares de prisões recentes, El Salvador se tornou o país com a maior taxa de população encarcerada do mundo.
Familiares e organizações denunciam que muitos dos detidos são inocentes.
Em entrevista exclusiva concedida à BBC em março, por ocasião do primeiro ano do regime de exceção, o vice-presidente Félix Ulloa reconheceu que, com uma operação dessas dimensões em andamento, é possível que algum erro tenha sido cometido e que pessoas possam ter sido presas sem ter ligação com as gangues MS-13 ou Barrio 18.
Mas Ulloa também argumentou que “mais de 90% da população concorda com o estado de exceção e quer que ele seja prolongado”.
“Os únicos que reclamam são os ativistas que não sabem o que se passa no país e a oposição política”, disse o vice-presidente.
Já a organização Cristosal afirma que “a suspensão permanente das garantias constitucionais sob a figura do regime de exceção é a única ferramenta de política pública que o governo implementa.”
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