• Shin Suzuki
  • Da BBC News Brasil em São Paulo

Crédito, Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr

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Protestos de junho de 2013 no Congresso Nacional

A vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) que desaloja Jair Bolsonaro (PL) do poder marca o fim de um ciclo político fundado com os protestos de junho de 2013, afirma o professor titular da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Wilson Gomes.

Iniciado por uma manifestação de esquerda sobre tarifas do transporte público que culminaria cinco anos depois na eleição da direita conservadora para o comando do país, o processo é narrado por Gomes no livro Crônica de uma Tragédia Anunciada: Como a Extrema-Direita Chegou ao Poder (Sagga Editora, 2020).

Ele vê a interrupção de um percurso em que a ameaça de rompimento democrático se tornou uma constante.

“O que eu celebro depois da eleição é a retomada dos combinados republicanos. Usando a metáfora da escolinha das crianças, existem regras como ‘não pode morder o amiguinho’, e a república e o sistema liberal-democrático também têm as suas. Só que, desde 2013, tinha um monte de gente que não aceitava os combinados, não aceitava as regras do jogo democrático. E houve uma reação republicana ao bolsonarismo, que é, em grande parte, antirrepublicano e antidemocrático”, diz Gomes.

“O campo democrático conseguiu vencer nas urnas. Esse é o fato fundamental. E não foram os petistas que elegeram Lula. Eles não têm número para isso. Quem elegeu Lula? Havia uma cota de antibolsonaristas radicais e havia também quem votou nele por razões democráticas. A democracia tem essa coisa, ela é meio preguiçosa, mas o campo acabou criando juízo. Aprendeu com os erros e se juntou nessa eleição para derrotar Bolsonaro. Na minha opinião, esse é o grande lucro, a grande novidade.”

“Minha esperança é que seja uma nova era, porque, de 2013 para cá, foi uma espiral de degradação, de ódio, de sentimento antipolítica, antiuniversidade, anticiência… É preciso agora recuperar isso dentro do combinado republicano”, complementa.

Em um texto recente, o professor de Teoria da Comunicação escreveu que, nos últimos anos, “o país dançou como um ébrio à beira do abismo”. Assim, os protestos dos últimos dias vistos nas estradas e em frente a quartéis pelo país são apelidados por ele de “cachaça” residual.

“Também em 2013 e, principalmente, em 2014, já tinha muito desse tipo de protesto que fechava avenida ou estrada. Também já havia os pedidos de socorro aos militares nos cartazes e os apelos a generais nas redes sociais. Aliás, foi nessa época que apareceram os movimentos para dar eixo, para organizar e capitalizar essa força em uma determinada direção. O ódio foi organizado. Surgiram influenciadores importantes que vertebraram esse pensamento conservador.”

Crédito, Valter Campanato/ABr

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Protestos de junho de 2013 moldaram o cenário político dos últimos anos

Gomes diz que é preciso observar se o próprio bolsonarismo vai permanecer com as rédeas desse movimento, com o qual ele enxerga semelhanças com cultos e seitas.

Após o discurso do presidente na quarta-feira (2/11), em que pede para que seus apoiadores desobstruam todas as rodovias brasileiras, alguns vídeos e comentários na internet defendiam a tese de que, se necessário, poderiam prescindir de Bolsonaro.

“A dinâmica de psicologia social entende que os grupos vão ficando muito homogêneos e compartilhando crenças, e as crenças vão ficando cada vez mais radicalizadas. Você tem um líder carismático, que nem precisa ser uma liderança real, mas, às vezes, o líder é considerado como propriedade do culto. E ele próprio, se não se comportar bem, será considerado um traidor da seita.”

“De qualquer forma, isso que vimos nas ruas nesses dias é uma franja mais radicalizada. Toda comunidade tem um grupo mais fiel, mais fervoroso, que é o último a desistir. Mas não é o sentimento de todas as 58 milhões de pessoas que votaram em Bolsonaro no segundo turno.”

Ele diz que, sem um mandato e sem a constância no noticiário cotidiano, o atual presidente pode perder força em sua mensagem.

Lições para o PT?

Historicamente, Gomes nunca deixou de atribuir uma parcela de culpa ao PT pelo período explosivo vivido pelo país nos últimos anos.

Em Crônica de uma Tragédia Anunciada, entre os elementos que “giraram a chave na política brasileira”, há “antes de tudo, um fato de longo termo, que foi uma série de reiterações de escândalos políticos envolvendo o Partido dos Trabalhadores (PT) que foram se acumulando desde o Mensalão de 2005”.

Em setembro, em sua coluna no jornal Folha de S.Paulo, ele escreveu que “imaginar que Bolsonaro pudesse plausivelmente ser o campeão da nossa redenção da política corrupta é um disparate que só o volume insano do ódio ao PT explica, mas o fato é que o patrimonialismo e o clientelismo —praticados à larga e gostosamente pelos Bolsonaros segundo pilhas de matérias e inquéritos — são uma desgraça do sistema político brasileiro”.

Gomes diz na entrevista à BBC News Brasil que “o PT, se não implementar políticas públicas fortes de condução do Estado para evitar a corrupção, está perdido”. “Se o PT não aprendeu nesses anos todos para lidar com a corrupção, que era basicamente negar os fatos e proteger o ninho, não funcionou, então é um partido perdido. Mas eu duvido que eles não tenham inteligência para entender que não tem mais cabimento adotar esse protocolo”.

Crédito, Divulgação

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‘O campo democrático conseguiu vencer nas urnas. Esse é o fato fundamental’, diz Wilson Gomes

Ele faz um contraponto ao dizer que “Lula sempre foi um fã de transparência”. “Tanto que hoje os órgãos de controle e de transparência cresceram muito durante o governo dele. Qualquer pesquisador de corrupção vai dizer que mais controle — e controle inteligente — e mais transparência pública são o remédio para isso.”

“O PT precisa levar isso muito a sério. É aquele ditado sobre a mulher de César. Não basta só ser virtuosa, precisa parecer virtuosa. O partido precisa lidar com essa percepção popular que há sobre corrupção em termos de sua imagem. Por outro lado, eu imagino o potencial de descobertas de corrupção do governo Bolsonaro depois de removidos os sigilos e tudo vir a público.”

Como teórico da comunicação, ele não deixa de criticar a atuação do jornalismo brasileiro pelo processo político vivido pelo país desde 2013.

“O jornalismo precisa também criar juízo. Há essa tendência, há essa paixão em ser um kingslayer [assassino de reis], um regicida. Por muito tempo, o jornalismo brasileiro simplificou a questão da corrupção como tema fundamental. É preciso fazer distinções, mostrar níveis das coisas, ajudar a encontrar alternativas sem escandalização simplesmente.”

– Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63507138