As decisões durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) que colocaram sigilo de 100 anos em resposta a pedidos de informação vêm sendo atacadas por adversários.
Primeiro colocado no primeiro turno na eleição e nas pesquisas de intenção de voto para o segundo turno, o candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva já havia dito que, se eleito, vai retirar o sigilo de informações que não foram divulgadas por Bolsonaro.
Lula voltou a falar do tema em debate na noite deste domingo (16/10): “Eu quero ver você explicar a forma sigilosa que você colocou tantas coisas na sua vida. Tudo é motivo de sigilo. Tudo é motivo de sigilo. Você sabe que isso tem perna curta, porque vai acabar. Porque eu vou ganhar as eleições, e quando chegar dia primeiro de janeiro, eu vou pegar seu sigilo e vou botar o povo brasileiro para saber por que você esconde tanta coisa. Afinal de contas, se é bom, não precisa esconder.”
Embora não tenha respondido ou comentado diretamente esse ponto da fala de Lula no debate mais recente, Bolsonaro já falou sobre o tema em outros momentos – geralmente alegando que o sigilo trata de informações pessoais.
O sigilo de 100 anos foi criticado antes da corrida eleitoral também. O tema foi alvo de provocação até por Sergio Moro, ex-juiz e ex-ministro de Bolsonaro. Em 14 de abril, Moro tuitou: “Bolsonaro poderia decretar sigilo de 100 anos sobre os tweets dele”.
Um dia antes do tuíte de Moro, Bolsonaro havia respondido “em 100 anos saberá”, na mesma rede oficial, a um comentário que perguntava: por que coloca sigilo de cem anos em “todos os assuntos espinhosos/polêmicos do seu mandato” e se “existe algo para esconder”.
A seguir, veja o que Bolsonaro argumentou sobre o tema nos últimos meses, o que prevê a Lei de Acesso à Informação e o que dizem especialistas.
Sigilo de cem anos: o que disse Bolsonaro
Em debate antes do primeiro turno das eleições, Bolsonaro alegou que o uso do recurso do sigilo é para “questões pessoais”.
“Meu cartão de vacina ou quem me visita no Alvorada. Nada mais além disso”, disse o presidente, após lembrar que a lei que traz essa possibilidade é da época da ex-presidente Dilma Rousseff, do PT.
Durante uma live, Bolsonaro disse: “Não existe decreto meu decretando nada no tocante a sigilo. O que tem é uma lei de 2011, que sou obrigado a cumprir lei, que os assuntos de natureza particular eu não preciso ceder à Lei de Acesso à Informação.”
Em participação no podcast Flow, Bolsonaro disse que se trata de “coisa simples”.
“Não é um decreto ditatorial meu, a lei me garante isso. O que a imprensa começou a perturbar? Tenho minha agenda, que é pública, lá no Palácio da Presidência. Se você for me visitar, tá lá. Mas começaram a querer ter acesso a quem ia visitar no Alvorada (residência oficial do Presidente em exercício) e, de acordo com as pessoas que me visitam no Alvorada, a imprensa faz matéria sobre aquilo. Quem eu recebo na minha casa, não devo satisfação a ninguém. Você na sua casa não deve satisfação a ninguém. Então decidimos, como é garantido em lei – se não me engano, do tempo da Dilma – que você possa garantir sigilo de pessoas que vão me visitar.”
Depois, disse que são “assuntos confidenciais”. E citou, entre os exemplos: “de repente vai uma mulher bonita lá em casa, com uma colega dela, e eu recebo. Minha mulher não tá sabendo, mas é bonita por acaso, aí ‘opa, ele recebeu aquele avião na casa dele para tratar do que? A primeira dama tava ou não tava?’ Começa a virar um inferno minha vida, então esse sigilo é em função disso, a minha privacidade, como todo mundo tem. Cada um recebe quem bem entender na sua casa e não deve satisfação a ninguém.”
O entrevistador argumenta que “era interessante para o povo saber quando Joesley (Batista, da JBS) estava indo na residência oficial”, em referência a um escândalo do governo de Michel Temer, quanto o então presidente recebeu o empresário em sua residência. Bolsonaro diz que “teve gravação em cima daquilo, é outra história”.
O que diz a Lei de Acesso à Informação sobre sigilo de cem anos
O sigilo de no máximo cem anos, aplicado em resposta a pedidos de informação do governo, está previsto na lei que acabou com o sigilo eterno de documentos oficiais — a Lei de Acesso à Informação (LAI). Ela foi sancionada em 2011 pela então presidente Dilma Rousseff — e foi assinada junto com a lei que criou a Comissão da Verdade.
No artigo 31, a lei prevê que informações pessoais relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem tenham acesso restrito pelo prazo de até cem anos.
Também está lá um trecho que busca conter o uso dessa medida: o texto diz que a restrição de acesso de “informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância”.
Sigilo de cem anos e governo Bolsonaro
A imposição de sigilo de um século ocorreu em situações que ganharam destaque durante o governo Bolsonaro, como nos casos a seguir:
- O cartão de vacinação de Bolsonaro foi colocado em sigilo, em meio à pandemia de covid-19 e no contexto de que o presidente questionava eficácia e segurança dos imunizantes.
- O governo determinou sigilo de cem anos sobre informações dos crachás de acesso ao Palácio do Planalto emitidos em nome dos filhos Carlos Bolsonaro e Eduardo Bolsonaro.
- A Receita Federal impôs sigilo de cem anos no processo que descreve a ação do órgão para tentar confirmar uma tese da defesa do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, sobre a origem do caso das “rachadinhas”.
- O Exército impôs sigilo de cem anos no processo que apurou a ida do general da ativa e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello a um ato no Rio de Janeiro com o presidente Jair Bolsonaro e apoiadores do governo.
- Levantamento feito pelo jornal O Estado de S. Paulo também cita sigilos em visitas à primeira-dama, Michelle Bolsonaro, no Palácio da Alvorada, além de telegramas do Itamaraty sobre a prisão do ex-jogador Ronaldinho Gaúcho no Paraguai.
As decisões de manter o tema em sigilo são feitas em resposta a pedidos apresentados por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação), geralmente sob alegação de que documentos continham informações pessoais.
Também há caso em que o governo tentou manter a informação secreta e depois mudou de ideia — como os dados sobre visitas ao Palácio do Planalto de pastores suspeitos de favorecer a liberação de verbas do Ministério da Educação para prefeitos aliados.
Reportagem do Estadão publicada em maio de 2022 mostrou que, de janeiro de 2019 a dezembro de 2021, durante o governo Bolsonaro, um a cada quatro (26,5%) pedidos de informação rejeitados tiveram como justificativa o sigilo da informação — a taxa é duas vezes a registrada na gestão da petista Dilma Rousseff e quatro pontos porcentuais maior do que a do governo Michel Temer (MDB), segundo a reportagem.
Um caso de sigilo de cem anos no governo Dilma Rousseff — presidente responsável pela sanção da Lei de Acesso à Informação — ocorreu em 2016, ano do impeachment da ex-presidente, depois de o então juiz Sergio Moro ter autorizado a divulgação de gravações em que Dilma e Lula tratam da nomeação do petista para a Casa Civil.
A Casa Civil decidiu manter em sigilo os e-mails que o servidor Jorge Rodrigo Messias (mencionado no diálogo) recebeu ou enviou naquele contexto, após pedido do jornal O Globo para acessar o conteúdo. Segundo reportagem, a Casa Civil apresentou motivos como: e-mail não está incluído como documento previsto na Lei de Acesso; a Constituição e até a Convenção Americana de Direitos Humanos garantem o sigilo das correspondências; e as mensagens solicitadas são de caráter pessoal.
‘Desprezo pela Lei de Acesso à Informação’
O advogado Ademar Borges, professor do doutorado em Direito Constitucional no IDP, diz em entrevista à BBC News Brasil que considera que há uma “expansão incontrolada” da aplicação do sigilo e lembra que a Lei de Acesso à Informação traz balizadas para os sigilos.
“O que está acontecendo agora é que virou um escudo para proteção pessoal, do presidente, da sua família e dos seus correligionários, com total desprezo pela Lei de Acesso à Informação e pelos seus requisitos”, diz. “Essa expansão incontrolada do regime de sigilo é uma das marcas autoritárias desse governo – impedir acesso e controle da sociedade e das instituições de controle aos atos do governo.”
Na avaliação dele, Bolsonaro tem colocado em sigilo “tudo que pode lhe trazer algum tipo de responsabilização ou de prestação de contas”. “É o contrário do objetivo da Lei de Acesso à Informação, que é restringir ao máximo o âmbito da decretação de sigilo.”
A professora da Universidade de Brasília (UnB) Andréa Gonçalves — que é especialista em prestação de contas pelo setor público, com foco na área de saúde — afirma que o Brasil é “uma democracia muito jovem” e que, pouco a pouco, foram sendo tomadas medidas focadas em aumentar a transparência — é o caso da LAI, que ela considera “ganho enorme”.
“A sociedade tem direito e tem que ter acesso às informações do Estado”, defende Gonçalves.
No entanto, a professora da UnB diz que “muito do que a gente observa é ainda traço do patrimonialismo — ‘sentei na cadeira e faço do jeito que entendo, do meu jeito’. Isso você observa em todas as áreas”.
“Isso vai do nível mais baixo até o escalão mais alto. A gente está falando de informações no nível federal. Imagina lá na prefeitura das cidades menores, onde o prefeito entende que ele é dono da prefeitura e o recurso que foi ele foi atrás, ele gasta como ele quiser, e não vai disponibilizar essa informação.”
A advogada Patrícia Sampaio, professora de Direito Administrativo da FGV Direito Rio, explica que essa previsão do sigilo de cem anos na LAI busca proteção à intimidade e à vida privada dos indivíduos, visto que o Estado tem acesso a muitos dados que são pessoais. Por exemplo: alguma doença que você prefere que seus familiares e empregadores não saibam que você tem.
“Agora nós também temos que entender que, quando um indivíduo resolve se lançar na arena pública — concorre a um cargo eletivo, toma posse no cargo eletivo —, até mesmo essa privacidade, essa intimidade, ela é, de certa forma, relativizada”, diz. “Não é que ela deixe de existir — o indivíduo continua tendo direito à sua intimidade, vida privada. Mas na relação dele com as coisas públicas, com os recursos públicos, essa intimidade tem que ser relativizada em nome do controle social da atuação dos agentes públicos.”
Sampaio resume: “Em um Estado de direito, a publicidade dos atos administrativos e dos representantes do povo são, em regra, públicos. A publicidade é a regra e o sigilo é a exceção”, diz.
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