- Mariana Schreiber – @marischreiber
- Da BBC News Brasil em Brasília
O debate sobre o aborto ganhou força no segundo turno da eleição presidencial, com trocas de acusações entre as campanhas do presidente Jair Bolsonaro (PL) e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Embora ambos digam ser contra a interrupção da gravidez, os dois candidatos deram declarações diferentes no passado. Enquanto o petista já disse que o aborto deveria ser um direito e uma questão de saúde pública, Bolsonaro afirmou que tem de ser uma decisão do casal, à revista IstoÉ Gente.
Nessa entrevista, de 2000, ele também revelou que chegou a cogitar com Ana Cristina Valle, mãe de seu quarto filho, Jair Renan, interromper essa gestação.
Hoje, o aborto é permitido em três situações no Brasil: quando há risco para a saúde da mulher, quando a gravidez é resultado de um estupro e quando o feto é anencéfalo, ou seja, não tem cérebro e está fadado a morrer logo após o parto.
Qualquer mudança nessas regras, seja para ampliar a legalização ou aumentar a proibição, depende de uma decisão do Congresso ou do Supremo Tribunal Federal (STF). Ou seja, o presidente não pode diretamente mudar a atual legislação. Mas ele pode tentar influenciar as decisões do Parlamento ou do STF.
Entenda melhor a seguir as posições e contradições de Bolsonaro e Lula sobre aborto. E, ao final, saiba qual pode ser o papel de um presidente nesse debate.
1) As contradições de Bolsonaro
O presidente se coloca como um defensor dos valores cristãos e da família. Nesse contexto, ele tem sido um opositor da ampliação do direito ao aborto já há vários anos.
Uma pesquisa no portal da Câmara dos Deputados por falas antigas de Bolsonaro mostra que, durante seus mandatos de deputado federal, ele abordou a questão do aborto em algumas ocasiões, quando fazia a defesa da ampliação do acesso a métodos de esterilização, como vasectomia e laqueadura.
O então deputado dizia ter uma “obsessão” pelo tema do “planejamento familiar”, pois considerava que o excesso de filhos pela população mais pobre causava graves problemas sociais, como fome, desemprego e violência.
“Falarei hoje sobre um dos temas pelos quais sou apaixonado: o controle da natalidade. (…) Com os que se posicionam contrariamente à legalização do aborto, poderíamos começar a discutir a questão da laqueadura e da vasectomia”, disse em 2007.
Um vídeo compartilhado por Bolsonaro em 2018, cuja data de gravação não é informada, mostra um pouco mais dessa visão do então deputado.
“Olha, o aborto hoje existe em três casos: anencefalia, risco de morte para a mãe e estupro. Se depender do meu voto aí, a questão do aborto, não será dado nesse sentido (de aumentar a legalização)”, responde, após ser questionado sobre qual sua posição sobre o tema.
“Eu tenho um projeto em Brasília que visa, inclusive, evitar abortos. Ou seja, hoje em dia uma mulher, um homem para fazer laqueadura ou vasectomia tem que ter 24 anos ou dois filhos. A minha proposta passa para 18 anos, independente do número de filhos”, continuou o presidente, na mesma resposta.
Depois, a oposição à ampliação da legalização do aborto ganhou mais peso no discurso de Bolsonaro e virou tema de destaque na sua campanha presidencial de 2018. Na sua visão, o aborto é um assassinato, e é preciso proteger a vida do futuro bebê desde a concepção.
Em junho deste ano, Bolsonaro chegou a criticar o aborto realizado legalmente em uma menina de apenas 11 anos que engravidou de um garoto de 13, situação que é classificada como estupro pela lei brasileira.
A interrupção da gravidez ocorreu no sétimo mês de gestação, após determinação da Justiça, já que o hospital procurado pela família quando a menina estava grávida de cerca de cinco meses se recusou a realizar o aborto.
“Um bebê de SETE MESES de gestação, não se discute a forma que ele foi gerado, se está amparada ou não pela lei. É inadmissível falar em tirar a vida desse ser indefeso!”, disse em um post no Twitter.
Mas apesar da oposição ferrenha ao aborto ter se tornado marca de Bolsonaro, declarações mais antigas do presidente são contraditórias com essa posição.
Em fevereiro de 2000, a revista IstoÉ Gente publicou uma entrevista em que a jornalista Cláudia Carneiro perguntou o que ele achava sobre a legalização do aborto.
“Tem de ser uma decisão do casal”, respondeu Bolsonaro, então deputado federal.
Em seguida, Carneiro perguntou se ele já havia vivido tal situação. Bolsonaro, então, revelou ter avaliado a possibilidade de abortar seu quarto filho, Jair Renan, com a mãe dele, Ana Cristina Valle.
“Já. Passei para a companheira. E a decisão dela foi manter. Está ali, ó”, disse, segundo a revista, apontando para a foto no mural de Jair Renan, de 1 ano e meio na ocasião.
Imagens da revista impressa com essa entrevista têm circulado nas redes sociais, e a IstoÉ Gente disponibilizou o conteúdo online.
A campanha de Lula levou essa entrevista à propaganda eleitoral para atacar Bolsonaro. “Ele diz uma coisa: ‘somos contra o aborto’. Mas faz outra. Numa entrevista ele já defendeu o aborto de um de seus filhos”, diz a propaganda petista.
Essa declaração à revista IstoÉ Gente já tinha sido resgatada na eleição de 2018. Naquele ano, o jornal Folha de S.Paulo questionou Bolsonaro sobre a declaração de que o aborto seria uma decisão do casal.
Segundo o jornal, o então candidato disse que era contra o aborto, mas que a decisão caberia à mulher. Após a publicação, Bolsonaro divulgou um vídeo refutando a reportagem da Folha.
“Olá, amigos de todo o Brasil. Mais um fake news da Folha de São Paulo, é aquele jornal de sempre. Manchete do jornal: Homem não deve intervir na decisão da mulher sobre aborto. Mentira. Nunca falei isso. Mais uma covardia dessa imprensa suja”, reclamou Bolsonaro.
“A única situação em que a mulher decide juntamente com o marido ou sozinha sobre aborto é nos casos definidos em lei do momento: em risco de vida, anencefalia e caso de estupro. Esses casos a mulher que decide se vai abortar ou não. Tá em lei. Ela pode não abortar. Nos demais casos, sempre fui radicalmente contra”, disse ainda.
Nesse vídeo, Bolsonaro também prometeu jamais sancionar uma lei ampliando o aborto legal, caso fosse eleito presidente.
“E digo mais, como sempre disse, caso um dia a Câmara e o Senado aprovem a ampliação do aborto e eu seja presidente, eu vetarei essa proposta e ponto final. Homens e mulheres de todo o Brasil continuo o mesmo antes, durante e continuarei sendo o mesmo após as eleições. Aborto não. Folha de S.Paulo, mais uma vez, vocês estão a serviço de quem?”, concluiu Bolsonaro, na gravação.
2) As contradições de Lula
Em abril deste ano, o ex-presidente defendeu que o aborto seja tratado como questão de saúde pública e que todos tenham direito a interromper uma gravidez.
Segundo ele, a proibição não impede que mulheres de maior renda busquem o aborto em outros países, onde a prática é legalizada. Por outro lado, argumentou o petista, a proibição leva mulheres pobres a arriscarem suas vidas com métodos inseguros no Brasil.
“Numa cidade chamada Jaguaquara, na Bahia, eu conheci uma mulher que ela utilizava fuligem do fogão à lenha, aquela fumaça, aquela folha que gruda, colocando na vagina para ver se ela abortava”, disse, durante um evento da Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT.
“Ora, quando que a madame ela pode fazer um aborto em Paris, ela pode escolher Berlim. Aqui no Brasil, ela não faz porque é proibido, quando na verdade deveria ser transformado numa questão de saúde pública e todo o mundo ter direito e não ter vergonha”, continuou na ocasião.
A abordagem defendida por Lula nessa declaração, em que o aborto é visto como uma questão de saúde da mulher, é comum em países com índices mais elevados de desenvolvimento, como França, Portugal, Austrália e Canadá, e também em alguns países com perfil semelhante ao Brasil, como Argentina.
No Brasil, em que o tema é bastante polêmico, essa fala de Lula pegou até petistas de surpresa. Apenas dois dias depois, ele mudou o tom e disse ser contra o aborto ao ser questionado em entrevista à rádio Jangadeiro BandNews, de Fortaleza.
“A única coisa que eu deixei de falar na fala que eu disse é que eu sou contra o aborto. Eu tenho cinco filhos, oito netos e uma bisneta. Eu sou contra o aborto. O que eu disse é o seguinte: é que é preciso transformar essa questão do aborto em uma questão de saúde pública. Ou seja, que as pessoas pobres que forem vítimas de um aborto elas têm que ter, sabe, condições de se tratar na rede pública de saúde. É só isso”, afirmou à rádio.
Essa fala é parecida com uma de 2007, quando Lula comentou o tema em entrevista a rádios católicas concedida por causa da visita do Papa Bento 16.
“Eu tenho dito, na minha vida política, que sou contra o aborto. E tenho dito publicamente que não acredito que ninguém faça aborto por opção ou por prazer”, afirmou na ocasião, segundo reportagem do portal G1 que reproduziu trechos da entrevista.
“O meu sonho é que as pessoas tenham uma educação tão perfeita que não precisem ficar grávidas sem desejar. Este é o meu desejo. Agora, enquanto isso não acontece, o Estado precisa assumir a responsabilidade de cuidar de milhões de pessoas, ao longo de décadas, que às vezes ficam grávidas sem querer ficar grávidas”, disse ainda o então presidente.
As contradições de Lula têm sido muito exploradas na campanha de Bolsonaro. O presidente e seus filhos abordam o assunto quase diariamente em mensagens compartilhadas em suas redes sociais.
“Lula agora tenta dizer que é contra o aborto, enquanto é apoiado por quem defende; que é cristão, enquanto é apoiado por quem odeia igreja; que é contra as drogas, enquanto é apoiado por quem é a favor; que é contra a corrupção, enquanto ele e seu bando foram presos por isso…”, tuitou Bolsonaro, no dia 7 de outubro.
A campanha de Bolsonaro também usou a declaração de Lula em sua propaganda de TV, contrastando a fala do petista com um trecho do discurso feito por Madre Teresa de Calcutá ao aceitar o Prêmio Nobel da Paz.
“Madre Teresa de Calcutá nos ensinou sobre o aborto. ‘E se uma mãe pode assassinar seu próprio filho em seu próprio ventre, o que falta a nós para matarmos uns aos outros?’. Já Lula defende o aborto”, diz a propaganda, reproduzindo em seguida a declaração do petista de que o aborto deveria ser um direito.
Com o tema ganhando cada vez mais força na campanha e ameaçando afastar votos de eleitores cristãos de Lula, sua campanha tem reagido às acusações de Bolsonaro. Logo após o primeiro turno, o petista gravou um vídeo em que reforça ser contra o aborto.
“Eu casei com a Lurdes, ela morreu dois anos depois de casada, morreu no parto. Depois eu fiquei 43 anos casado com Marisa, ela morreu de um AVC. Eu estou casado com a Janja agora. Não só eu sou contra o aborto como todas as mulheres que eu casei são contra o aborto. E eu acho que quase todo mundo é contra aborto. Não só porque nós somos defensores da vida, mas porque deve ser uma coisa muito desagradável e muito dolorida alguém fazer um aborto”, diz Lula, no vídeo.
3) O que um presidente pode fazer?
Seja quais forem as posições de Lula e Bolsonaro sobre aborto, o que afinal eles podem fazer no cargo de presidente?
O presidente não tem o poder de diretamente ampliar ou restringir a legalização da interrupção da gravidez. Qualquer mudança tem que passar no Congresso ou no Supremo Tribunal Federal.
No caso do Congresso, o que o presidente pode fazer é propor uma alteração da legislação, que teria que ser votada pelos parlamentares. Em tese, o presidente também pode usar da sua projeção pública para mobilizar a população a pressionar o Congresso no tema.
Além disso, também pode, em tese, negociar com os parlamentares, oferecendo acesso a cargos no governo em troca de apoio para suas agendas, por exemplo.
No entanto, seja quem vencer a eleição, parece pouco provável que o próximo governo priorize esse debate no Congresso. A maioria dos parlamentares eleitos tem posicionamento conservador, o que tornaria custoso para um presidente tentar avançar com a ampliação da legalização.
Além disso, pesquisas de opinião mostram que a maioria da população é contra mudar a atual legislação sobre aborto. Segundo Datafolha de maio, 71% dos brasileiros, ou seja, 7 em cada 10 pessoas são contra a flexibilização da lei atual.
Esse número inclui os 32% da população que acham que a proibição deve ser total, ou seja, mesmo em casos de estupro ou de risco à saúde mãe.
Apenas 18% dos entrevistados pelo Datafolha disseram ser a favor da ampliação das hipóteses de aborto legal, e somente outros 8% disseram ser a favor da legalização total.
A pesquisa mostrou ainda que os segmentos mais pobres e menos escolarizados são os que mais de opõem ao direito ao aborto.
Além do caminho pelo Congresso, outro meio possível para aumentar as hipóteses de aborto legal seria com uma decisão do Supremo Tribunal Federal. Isso ocorreria, por exemplo, se em um julgamento sobre essa questão, a maioria da Corte entendesse que a proibição à interrupção da gravidez contraria o direito constitucional da mulher à dignidade humana.
Embora existam ações sobre o direito ao aborto esperando a análise do STF, não há qualquer perspectiva concreta de que o tema entre em julgamento na Corte. Também não está claro se haveria maioria em favor de alguma mudança na atual legislação.
O próximo presidente terá direito a indicar dois ministros para o Supremo, já que Ricardo Lewandowski e Rosa Weber se aposentam em 2023. Essas indicações, porém, precisam ser aprovadas pela maioria do Senado.
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