Crédito, Getty Images

Legenda da foto, No entendimento de alguns religiosos com mentalidade mais contemporânea, as justificativas bíblicas para a dissolução do casamento podem ser ampliadas

  • Author, Edison Veiga
  • Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil

Embora divórcios sejam condenados pela Igreja Católica e, em diferentes graus, malvistos pela maior parte das denominações evangélicas, há passagens bíblicas que os permitem, em casos específicos.

E no entendimento de alguns religiosos com mentalidade mais contemporânea, as justificativas bíblicas para a dissolução do casamento podem ser ampliadas, dado o contexto de hoje, a situações de violência doméstica, vícios de um dos cônjuges ou qualquer situação grave que impossibilite a convivência plena e harmônica sob o mesmo teto.

Repleto de normas e regras presentes na ancestral sociedade de Israel, o livro do Deuteronômio, provavelmente do século 6 a.C., traz uma passagem emblemática sobre o assunto. “Caso um homem tome uma mulher e a despose e, mais tarde, encontrando nela qualquer coisa que o envergonhe, deixe de olhá-la favoravelmente, redija para ela uma ata de repúdio e a entregue, mandando-a embora de sua casa”, diz o trecho.

Que prossegue dizendo que no caso de ela se casar com outro e se tornar viúva, o primeiro marido não pode envolver-se com ela novamente.

Embora seja uma passagem recorrentemente trazida quando a discussão é divórcio na Bíblia, é preciso lembrar do contexto em que ela foi escrita e a quem foi dirigida.

Como pontua o pastor batista e teólogo Yago Martins em seu recém-lançado livro Igrejas que Calam Mulheres, o texto do Deuteronômio reflete a sociedade judaica da época. Ou seja: “não fala à mulher sobre o homem, mas ao homem sobre a mulher”.

Na interpretação contemporânea, portanto, é legítimo que se entenda a passagem como algo válido também com os papéis invertidos, uma vez que a sociedade atual é, pelo menos em teoria e princípios, baseada na igualdade entre homens e mulheres.

Permissão

Martins lembra ainda que a lei do Antigo Testamento “nem ordena nem admite o divórcio em geral, mas somente regula sua prática para o antigo Israel”. Assim, o trecho não é uma “ordem para o divórcio, apenas uma permissão”.

O teólogo entende que o trecho serve para proteger as mulheres, pois cria um instrumento que garante a elas um distanciamento do primeiro marido nessas situações de separação e novo casamento.

Mas não é o único trecho a mencionar o assunto, evidentemente. No Evangelho de Mateus, há uma passagem que novamente retoma o tema. No trecho, Jesus é questionado pelos mestres da lei sobre ser correta ou não a dissolução do casamento. Embora eles evoquem a escritura presente em Deuteronômio, Jesus busca a resposta no livro do Gênesis, o que narra a criação do mundo.

E argumenta que Deus fez homem e mulher para se tornarem “uma só carne”. “Não separe, pois, o homem o que Deus uniu”, adverte.

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Embora divórcios sejam condenados pela Igreja Católica e malvistos por algumas denominações evangélicas, há passagens bíblicas que os permitem, em casos específicos

Na réplica, seus interlocutores recordam o costume judaico que permite o divórcio. Jesus rebate dizendo que há casos em que há “dureza” nos corações. E finaliza dizendo que “se alguém repudia sua mulher, exceto em caso de união ilegal, e se casa com outra, é adúltero”.

Há um paralelo desta mesma história no Evangelho de Marcos, como aponta a teóloga Tereza Maria Pompeia Cavalcanti, professora aposentada na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).

“[Nele,] Jesus afirma que Moisés permitiu o divórcio ‘por causa da dureza do coração de vocês’. Mas acrescenta que desde o início da criação, ‘Deus os fez homem e mulher. Por isto o homem deixará seu pai e sua mãe e os dois serão uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não deve separar’”, cita ela, à BBC News Brasil.

O teólogo Martins comenta que essa polêmica se origina no fato de que Jesus “queria abordar o padrão de Deus para o matrimônio” e não “a concessão para o divórcio”. “O divórcio não era um mandamento, mas uma permissão”, pontua.

À BBC News Brasil, a teóloga, filósofa e biblista Zuleica Aparecida Silvano, freira da Congregação das Filhas de São Paulo, professora na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e integrante da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica, explica que, no judaísmo a expressão uma seo carne é interpretada “como sendo o filho ou a filha”, ou seja, o produto da união do casal.

“[Assim,] os pais nunca poderão se separar de seus filhos, dado que algo do pai e da mãe continua nos filhos. Mas não é interpretada [a expressão] como sendo o casal”, afirma ela.

Abandono

Também no Antigo Testamento, o livro do Êxodo aborda o divórcio sob uma outra perspectiva.

Na passagem, há o exemplo de um homem que toma para si uma segunda escrava — mas a regra adverte que se ele reduzir o alimento, a vestimenta ou a coabitação com a primeira, ou mesmo não providenciar para ela essas três coisas, “ela poderá sair gratuitamente, sem nada despender”.

Novamente, a lógica patriarcal daquela sociedade precisa ser levada em conta na interpretação. Portanto, a visão mais contemporânea do cristianismo aplica a mesma ideia ao casamento hoje em dia: se um dos cônjuges abandona o outro, de alguma forma, sentimental ou materialmente, ou ainda promove a violência dentro do relacionamento, a vítima poderia “sair gratuitamente” dessa situação.

Já na primeira das cartas enviadas por Paulo à comunidade cristã de Corinto, há a advertência “aos que são casados” para que “a mulher não se separe do seu marido” e “se está separada não se case de novo ou reconcilie-se com o marido”. E também para que “o marido não repudie a sua mulher”.

O contexto daquela situação, vale lembrar, era que mulheres cristãs vinham tendo dificuldades na manutenção de seus relacionamentos com maridos pagãos. E muitas vinham optando pelo divórcio na ideia de seguir uma vida religiosa.

“Paulo fala da possibilidade de divórcio se houver discussões entre os casais por causa de religião, ou seja, no caso que um dos cônjuges é de uma tradição religiosa gentílica ou judaica e o outro, ou a outra, adere a Jesus Cristo”, explica Silvano.

“Se não é possível viver em paz, assim é melhor se separarem. Isso se chama, no Código de Direito Canônico, de ‘privilégio paulino’, mas somente nos casos quando uma pessoa se casa com alguém de outra religião não cristã.”

Machismo histórico

Em conversa com a BBC News Brasil, Martins ressalta que “o grande ponto” que gera a falta de consenso é o fato de que as pessoas tendem a “escolher pedaços da Bíblia”.

“Todo mundo gosta de algum pedaço da Bíblia”, ressalta ele, defendendo uma interpretação que considere o todo e o contexto.

“Quando falamos sobre casamento, existem pequenas coisas que envolvem essa estrutura. Mas o centro disso é o amor, a entrega da minha vida em amor e cuidado. É o básico de um relacionamento”, afirma ele.

Silvano entende que havia um machismo que deixava desigual a relação entre homens e mulheres sobre o tema na época de Jesus — e, segundo o entendimento dela, isso teria motivado o posicionamento dele como contrário à prática. A especialista lembra que no judaísmo, “o homem poderia dar carta de divórcio para a mulher” em algumas ocasiões.

“A grande crítica que Jesus faz do divórcio nos evangelhos era por causa dessa disparidade, ou seja, os homens tinham o direito de colocar qualquer motivo para se divorciar e a mulher não”, comenta ela.

Esta é a principal crítica que faz a filósofa e teóloga feminista Ivone Gebara, freira agostiniana e autora de, entre outros, As Incômodas Filhas de Eva na Igreja da América Latina.

“[A Bíblia] menciona que as mulheres encontradas em adultério podem ser reenviadas por seus maridos, mas o contrário não é afirmado”, ressalta ela, à BBC News Brasil. “[Nos textos sagrados] o homem é sempre preservado, mesmo sendo adúltero.”

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Para os católicos, o casamento é um sacramento e “algo indissolúvel”

No Evangelho de Mateus, conforme lembra a teóloga Cavalcanti, admite-se “o divórcio, no caso em que houver adultério”. O trecho diz que “quem quer que repudie sua mulher — exceto em caso de união ilícita — expõe-na ao adultério”, o que permite compreender que em caso de adultério um divórcio seria aceitável.

No entendimento de religiosos mais abertos à organização social atual, essas passagens devem ser interpretadas de modo igualitário entre os gêneros, deixando a supremacia entre homem e mulher como uma questão do contexto histórico de quando tais textos foram escritos. É o que Martins, por exemplo, argumenta em seu livro.

Católicos e protestantes

“A Bíblia menciona, sim, a questão do divórcio. Jesus toca nesse assunto nos evangelhos e diz que isso tudo é possível, [pois] Moisés permitiu que as pessoas se divorciassem por causa ‘da dureza dos corações’”, afirma à BBC News Brasil o historiador e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Ele lembra, contudo, que isso gera “uma divisão entre católicos e protestantes” quanto ao entendimento. Para os católicos, como o casamento é um sacramento, “é algo indissolúvel”.

“Já para os protestantes, é uma bênção dada em um culto que sela a união entre homem e mulher. Então [o divórcio] é possível mesmo que a justificativa seja a dureza do coração. É possível que se quebre essa aliança por N motivos, e isso não significa o fim, significa a possibilidade reconstituição de uma nova família”, argumenta Moraes.

Segundo o professor, a dissolução de um casamento em igrejas não católicas é facilitada sobretudo “quando há algum elemento que envolva adultério”.

“Então a parte vitimada estaria de alguma forma liberada dos seus votos porque a outra parte foi infiel”, explica.

“As igrejas [não católicas] aproveitam isso para fazer campanhas, para de alguma forma doutrinar pessoas que estão recomeçando suas vidas e, nesse sentido, parece que os evangélicos conseguem dar um passo adiante em relação aos católicos”, acrescenta ele.

Moraes conta que a Igreja Universal, por exemplo, já teve encontros para pessoas divorciadas que funcionavam como uma espécie de “campanha do amor”. “Era exatamente para as pessoa que estavam ali numa situação em que precisassem encontrar um novo parceiro, uma nova parceira.

Nesse sentido, as igrejas evangélicas herdeiras de uma tradição protestante se adaptaram melhor a essa ideia [do divórcio], inclusive acolhendo esses que se divorciaram e aí implantando novamente o ideal de uma família feliz”, diz.