- Author, Leandro Prazeres e João da Mata
- Role, Enviados da BBC News Brasil a Estrela (RS)
No último domingo, mãe e filho acordaram ansiosos. Tomaram o café da manhã distribuído por voluntários no abrigo da Paróquia São Cristóvão, em Estrela, no interior do Rio Grande do Sul, e se aprontaram para sair.
Para Odila dos Santos, 68, e Elizandro dos Santos, 32, a curta viagem de pouco mais de 10 minutos de carro não era tão simples assim. Pelo contrário. Vinham adiando aquele “encontro” desde que as águas do Rio Taquari baixaram.
Naquele domingo (19/5), foi a primeira vez que a dupla tomou coragem para ver o que havia restado daquilo que por 30 anos havia sido um lar. O deles.
A BBC News Brasil acompanhou esse trajeto.
As inundações que atingiram o Rio Grande do Sul desde o final de abril levaram à morte de pelo menos 157 pessoas e deixaram 581 mil pessoas desalojadas. Desse total, 76 mil estão em abrigos improvisados como o que recebeu Odila e seu filho.
Estrela, município de 34 mil habitantes, fica na região conhecida como Vale do Taquari, uma das mais afetadas. Segundo a Prefeitura do município, no auge das inundações, 75% do território da cidade ficou submerso.
Nos primeiros dias da tragédia, o município chegou a ter 6 mil pessoas em abrigos. Com o baixar dos rios, algumas foram voltando para casa ou se abrigam em casas de familiares. Agora, segundo a prefeitura, há 600 pessoas em abrigos.
Odila e Elizandro fazem parte de um grupo de moradores da cidade que simplesmente não terá para onde voltar. Em alguns casos, as casas simplesmente não existem mais. Foram varridas pela força das águas do Rio Taquari.
Em outros casos, como o de Odila e seu filho, o retorno não será possível porque o bairro onde eles viviam, Moinhos, não receberá mais infraestrutura de água, energia elétrica, esgoto e equipamentos públicos como postos de saúde e escolas. A medida atende a uma recomendação do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul.
A ideia é desestimular o retorno a essas áreas. Na prática, a área poderá se converter em um “bairro fantasma”.
‘Vamos meter o pé’
Odila tem pouco mais de 1,5 metro de altura, a pele branca e o cabelo liso grisalho, preso para trás. O corpo parece frágil, num contraste com as mãos, grossas e fortes da vida na roça nos tempos da juventude. Ela diz viver com a pensão equivalente a pouco mais de um salário mínimo (R$ 1.412), por conta da morte do marido, há 21 anos.
Ela chegou em Estrela há 30 anos, pouco depois que se casou. Teve quatro filhos, o mais novo é Elizandro, o único que ainda vive com ela. A casa onde criou a família, ela conta, levou décadas para ficar como ela queria.
“Nós tínhamos uma casinha velha, de madeira, que ganhamos da Prefeitura. Nós fomos construindo. Juntamos uns troquinhos daqui e dali, e fizemos uma parte da casa (em alvenaria). Foi tudo feito ao redor (de nós) porque eu não podia sair de dentro da casa. Não tinha dinheiro para pagar aluguel”, contou.
“A gente foi botando telhado e derrubando (a parte antiga) também. O piso, fomos pagando em prestações. Por último, foi feita uma área numa parte para fora, com churrasqueira”, assim, Odila ia descrevendo a casa, ainda no abrigo.
O bairro Moinhos, onde a casa está localizada, era habitado, em sua maioria, por trabalhadores de baixa renda como Odila e por algumas famílias de classe média.
As ruas eram, inicialmente, cobertas com paralelepípedos que acentuavam o ar bucólico do local. As casas, em geral, eram cercadas por pequenos jardins de grama verde e baixa, como o da residência de Odila. Nos últimos anos, a prefeitura asfaltou algumas ruas do local. .
Elizandro disse ter uma relação especial com a vizinhança.
“Ajudei a construir metade dessa vila”, contou com a voz embargada.
O bairro já havia sido severamente atingido por uma enchente em setembro de 2023. Na ocasião, o Vale do Taquari também foi afetado e, no total, o Rio Grande do Sul registrou 54 mortes.
O trauma de setembro deixou os moradores da região em estado de alerta quando o nível do rio Taquari começou a subir de novo em meio às fortes chuvas do final de abril. Em algumas partes, o rio passa a pouco mais de 500 metros das casas.
“A gente tem medo. O pessoal começou a dizer: ‘Á água está vindo. Á água está vindo’. Aí eu disse: ‘Vamos meter o pé'”, relembrou Odila.
Após a decisão de partir, começou outra fase de angústia. Como sair de um lugar quando todos querem sair ao mesmo tempo?
“Quando começou a enchente, nós começamos a reunir as coisas e esperar o caminhão. Ligamos e ligamos para os caminhões, mas não tinha mais (caminhão) porque eles não podiam socorrer todo mundo. Meu Deus…estávamos numa aflição porque sabíamos que a água ia tomar conta. Quantos já não morreram por causa da enchente e a gente tinha medo de isso acontecer, também”, disse.
Com a ajuda de vizinhos e dos filhos, Odila conseguiu reunir alguns poucos pertences e documentos e foi levada para um abrigo improvisado.
Elizandro só chegou no abrigo no dia seguinte. Ficou tentando ajudar os vizinhos a levar móveis para os pisos superiores de casas com dois ou três andares. Não adiantou. A água encobriu todas as casas, ele contou.
‘Calma, guri’
Conforme o carro que levava Odila e Elizandro avançava pela longa rua Palmeira das Missões, ia ficando claro para os dois a dimensão da tragédia.
Só haviam visto o resultado da enxurrada pela TV ou pelo WhatsApp.
As ruas antes bucólicas do bairro, agora estão cobertas por telhas quebradas, árvores e postes caídos.
Sobre os paralelepípedos e o asfalto há uma camada de lama marrom grossa e pegajosa misturada a placas de gordura vegetal oriunda dos armazéns de produtos agropecuários destroçados pelas águas.
Não havia mais o barulho de música ou de TV saindo das casas, vizinhos conversando na calçada , crianças andando de bicicleta ou o latido de cachorros que se podia escutar num passeio pela área 20 dias atrás.
No bairro, imperava o silêncio cortado apenas pelas aves que voam sobre o Taquari e pelo barulho de caminhões e carros usados para retirar dos escombros o pouco que sobrou.
O latido do cachorro de Odila, por exemplo, desapareceu em setembro. Foi levado pela última inundação.
“Aqui era a nossa igreja. É evangélica”, disse Odila apontando para o que restou do prédio onde ela costumava orar.
“Olha aí, mãe! Nós estávamos ali dentro antes de subir a enchente total”, exclamou Elizandro apontando para o prédio de um conhecido igualmente destruído.
“Meu Deus, ninguém mais tem casa, mãe”, disse Elizandro com a voz novamente embargada.
“Calma, guri. Se Deus quis assim, nós vamos ter que aceitar”, respondeu Odila.
‘É um cemitério’
Odila seguiu pela rua com passos lentos e o auxílio de uma bengala. Elizandro ia na frente, a poucos metros de distância.
“Aqui é a minha casa. Como é que vai ter condições de morar num lugar desses? Meu Deus. Não tem condições de morar num lugar desses”, disse apontando para a residência.
A casa tem pouco mais de 80 metros quadrados e uma pequena edícula na parte de trás.
Na comparação com várias das casas da vizinhança, a de Odila e Elizandro não parece tão afetada. As quatro paredes principais permaneceram de pé, embora quase dois terços do telhado foram arrastados pela enxurrada.
O verde das paredes, no entanto, foi totalmente tomado pelo marrom da lama que atingiu até o telhado. Elizandro afirma que a água subiu mais de cinco metros acima do teto.
Desolados, os dois param, olham para a casa, e ficam em silêncio por 40 segundos.
Odila, que vinha segurando a emoção até ali, cede ao choro.
“Se Deus quis assim… de tirar a nossa casa… não tem mais (o que fazer). Olha aí pros meus vizinhos… eu tinha uma casa e agora não tenho mais”, desabafou.
“É a mesma coisa que tu ver (sic) uma pessoa que morreu e tu ver (sic) que não adianta mais. É muito sofrido para nós”, disse Odila.
Enquanto caminha em frente ao que era o quintal da casa, ela fala do passado.
“Quando eu me casei, nós não tínhamos nada. Só tínhamos a roupinha do couro (sobre a pele)”, disse Odila.
A pensionista busca na mente imagens para descrever o que vê.
“Aqui terminou. É como disse o Klaus: ‘É um cemitério isso aqui'”, disse mencionando um conhecido.
Recomeço incerto
Apesar de verem que as estruturas de sua casa resistiram, em parte, à força da enxurrada, Odila e Elizandro tratam esse capítulo de suas histórias como encerrado.
Pelas redes sociais, eles souberam que a Prefeitura Municipal de Estrela iria tomar medidas para desestimular o retorno de moradores a bairros como Moinhos, à beira do Rio Taquari.
Eles relataram terem ouvido que a Prefeitura iria proibir o retorno dos moradores. À BBC News Brasil, o governo municipal diz que não vai impedir o retorno das pessoas, mas que tomará medida para desestimular esse movimento.
“Há uma recomendação do Ministério Público sobre a ocupação dessas áreas. Estruturas públicas não serão investidas nestes espaços, mas todos têm o direito de fazer sua escolha”, disse a assessoria de imprensa da Prefeitura Municipal de Estrela à BBC News Brasil.
“Não temos como impedir (o retorno da população). Mas não investiremos em espaços públicos como escolas e postos de saúde, o que diminui a aderência das pessoas a quererem voltar para lá”, completou a assessoria de imprensa.
Mesmo sem ter para onde voltar, Odila indica que não retornaria à casa onde viveu de toda forma. Em primeiro lugar, porque não teria o dinheiro necessário para as reformas. Em segundo lugar, porque tem medo.
“Se for para colocar meus filhos em risco, que fique tudo para trás”, disse.
Sem ter para onde ir, Odila e Elizandro retornam ao abrigo e à espera de uma nova casa.
“Ficamos sabendo que vão dar umas casinhas pra nós. Isso nós ficamos sabendo, mas não disseram quando”, disse Odila.
O trabalho de reconstrução do Rio Grande do Sul, no entanto, ainda está sendo formulado e as informações sobre a distribuição de novas residências aos afetados pelas inundações não foram totalmente detalhadas.
O Estado do Rio Grande do Sul estimou os trabalhos de reconstrução em pelo menos R$ 19 bilhões.
O governo gaúcho anunciou um plano de abrigamento temporário para aproximadamente 10 mil pessoas. O projeto ficou conhecido como “cidades temporárias” que seriam construídas com estruturas de metal e plástico em quatro localidades espalhadas pelo Estado.
Não há informações sobre quando essas estruturas estariam prontas e nem se elas iriam servir para abrigar os desalojados de Estrela como Odila e Elizandro.
No abrigo, Elizandro refletia sobre o futuro em meio à dor física. Há duas semanas, ele foi ajudar os voluntários a trocar uma lâmpada no salão onde está abrigado e caiu da escada. Uma queda de oito metros de altura. No acidente, quebrou duas costelas e chegou a ser levado ao hospital. Desde então, usa um colete torácico e toma remédios para controlar a dor e ajudar na cicatrização de suas lesões.
Cansado, ele resumiu sua condição.
“Duas costelas quebradas, um pulmão perfurado, um rim amassado, mas de pé. Como diz meu finado pai: não está morto quem peleia”.
Fonte: BBC
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