- Edison Veiga
- De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Dicionários costumam definir o dízimo de duas formas. Primeiro como “um tributo pago por fiéis a suas igrejas”. Mas também como “a décima parte”, ou “dez por cento do total”.
Na tradição judaico-cristã, o pagamento dessas quantias remonta ao princípio da própria organização dos serviços religiosos.
Nominalmente, o dízimo aparece pela primeira vez na Bíblia ainda no livro do Gênesis, que abre o Antigo Testamento.
No capítulo 14, quando há a narrativa de que Abraão retornou vitorioso da guerra e foi tomar a bênção de Melquisedeque, enigmática figura apresentada como “sacerdote do Deus Altíssimo”.
No versículo 20 está a menção de que “Abraão deu-lhe o dízimo de tudo”.
Conforme explica o padre Welington Cardoso Brandão, mestre em teologia moral e psicólogo, autor dos livros Pastoral do Dízimo e Terapia a Serviço do Dízimo, essa ideia de oferecer algo a Deus é comum nas passagens do Antigo Testamento e demonstra a origem da prática.
“O dizimo não foi criado. Ele aparece na Bíblia a partir do momento em que percebemos que o homem depende também materialmente de Deus desde a criação do mundo e do homem”, contextualiza o religioso.
“Assim, o dízimo é o agradecimento que o homem faz a Deus por alguma coisa que ele conseguiu.”
Ele lembra que essa ideia aparece quando Caim e Abel “ofereciam a Deus parte do fruto de seu trabalho” e quando Noé, “depois do dilúvio, oferece um sacrifício a Deus”.
“Era tipo uma barganha”, resume ele.
“Uma prática de doar 10% de tudo o que era feito ou dos bens da terra ou da plantação ou dos animais.”
Havia razões práticas, é verdade. Em uma época em que o trabalho consistia na produção básica do necessário à sobrevivência, com a organização dos serviços religiosos aqueles que se dedicavam a tais assuntos precisavam solucionar a problemática do comer e viver.
Se um sacerdote estava ocupado o tempo todo com assuntos da fé, era necessário que de alguma forma os proventos lhe fossem garantidos por aqueles que labutavam na agricultura ou na pecuária.
História
“O dízimo era uma prática muito comum na antiguidade, no chamado Oriente Próximo. Grupos ofertavam parte dos seus ganhos, tiravam parte de sua produção para o serviço religioso ligado a suas divindades”, conta o historiador, teólogo e filósofo Gerson Leite de Moraes, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Moraes lembra que “não é a Bíblia quem inventa o dízimo”. Ela registra, ela documenta uma prática que já era corrente naqueles tempos antigos.
“Estamos falando de sociedades agrárias, rurais, e de uma organização religiosa que começa a existir, e portanto, tem suas necessidades quanto à manutenção dos sacerdotes e da estrutura”, contextualiza.
“O dízimo está associado à manutenção do culto, da casta sacerdotal. Isso era feito em espécie. Do ponto de vista sociológico, não há problema algum, as religiões se organizaram todas desta maneira.”
Mas o historiador lembra que à medida que instituições religiosas foram ficando mais poderosas e sofisticadas, o que costumava ser feito em espécie passou a ter um valor pecuniário.
Templos passaram a ter cofres centrais, destinados a sustentar o sistema. As doações, então, eram feitas com o pagamento da décima parte daquilo que era obtido com a venda das mercadorias.
“A justificativa seguia a mesma: o dízimo era uma forma de demonstrar comprometimento com o sistema de adoração, de culto. Mostrava que a pessoa era fiel e que, portanto, estava inserida em toda a lógica religiosa”
De acordo com padre Welington Brandão, é preciso lembrar que o cristianismo ressignificou a prática — o que, em tese, deveria ser o principal argumento contra a leitura fundamentalista que alguns grupos religiosos fazem do Antigo Testamento.
Em síntese, o que era barganha passou a ser visto como agradecimento. E como sinal de participação.
“Antes era motivado pelo temor, um termo pelo castigo divino. No Novo Testamento, a lei do temor é substituída pela lei do amor. E o homem passa a oferecer o dízimo por amor”, explica Brandão.
No Evangelho de Mateus, por exemplo, há uma passagem sobre isso. No capítulo 23, Jesus critica aqueles que pagavam o dízimo religiosamente mas deixavam de lado a prática da justiça e da misericórdia.
Essa atualização também deixou a questão dos tais 10% muito menos precisa e mais fluida.
Na segunda carta que Paulo envia aos Coríntios — e vale lembrar que o apóstolo se preocupou muito em criar as regras para embasar aquelas primeiras comunidades cristãs —, ele conclamou que cada um desses “conforme o impulso do seu coração, sem tristeza nem constrangimento”.
O vaticanista Filipe Domingues, vice-diretor do Lay Centre em Roma e doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, na Itália, ressalta que esse era um princípio daqueles primeiros cristãos: nunca pedir explicitamente, muito menos arbitrar um valor.
“Os apóstolos, desde o começo, não pediam nada. Jesus sempre dizia: vocês vão viver do que os outros derem, aceitem de bom coração aquilo que é oferecido”, afirma.
“O dízimo deve ser interpretado não como um cifrão, mas como uma forma de ajudar a igreja nas coisas que ela precisa”, acrescenta Brandão.
Finalidade
Ele defende que há três dimensões para fundamentar a contribuição, e elas seriam necessárias para justificá-la.
“A dimensão religiosa é a manutenção do templo em sim: funcionários, água, luz, telefone, limpeza, a hóstia e o vinho, o salário do padre. A dimensão missionária é o envio de dinheiro para outras obras e lugares que tenham necessidades específicas. E a dimensão caritativa é o destino de dinheiro para ajudar aos mais pobres, seja na manutenção de creches ou outras instituição, na doação de cestas básicas e outros auxílios”, enumera ele.
“É bom lembrar que toda obra religiosa precisa de sustento material e que esse sustento vem inicialmente, direta ou indiretamente, de contribuições dos fiéis, por dízimos, esmolas e semelhantes”, comenta o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
“Nas igrejas protestantes o pastor frequentemente é visto como um contratado da comunidade, o que implica numa boa gestão das entradas e muita transparência nos gastos, para viabilizar a manutenção da estrutura.”
“Na Igreja Católica, a estrutura centralizada, o patrimônio artístico acumulado e a variedade de obras sociais e missionárias cria uma série de dificuldades para o sistema. O custo operacional é muito maior e a destinação final dos recursos nem sempre é visível para o contribuinte”, acrescenta ele.
Ribeiro Neto lembra, contudo, que também há um simbolismo forte para os católicos, com “a ideia de que o dízimo não é só necessário para o sustento material da Igreja, mas também para o crescimento espiritual do crente, que se sente mais colaborador de sua comunidade e da obra de Deus no mundo”.
No Código de Direito Canônico vigente, promulgado pelo papa João Paulo II (1920-2005) em 1983, a contribuição financeira dos membros da Igreja está prevista no artigo 222.
“Os fiéis têm a obrigação de prover às necessidades da Igreja, de forma que ela possa dispor do necessário para o culto divino, para as obras de apostolado e de caridade, e para a honesta sustentação de seus ministros”, diz o texto.
“Têm ainda a obrigação de promover a justiça social e, lembrados do preceito do Senhor, de auxiliar os pobres com seus próprios recursos.”
Se é um costume arraigado às próprias criações das religiões, por outro lado foi inevitável, ao longo do tempo, que a evolução da prática do dízimo também tenha dado brecha para o surgimento de abusos. Muitas vezes protagonizados por exploradores da fé alheia.
“Tanto para as igrejas protestantes históricas quanto para a igreja católica romana, a fundamentação bíblica para a contribuição, ou o dízimo, é a mesma: trata-se de uma oferta de gratidão a Deus, que deve ser feita por todas as pessoas batizadas”, explica a pastora luterana Romi Márcia Bencke, secretária geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic).
Ela explica que o que costuma variar é que “algumas igrejas trabalham com [a ideia de] o dízimo, ou seja, 10% daquilo que os fiéis recebem, enquanto outras trabalham com a contribuição voluntária, ou seja, as pessoas da comunidade contribuem com aquilo que podem, e se podem”. “Assim, não é estabelecido um valor específico”.
Bencke ressalta que as igrejas devem sempre informar “o destino das contribuições”. Isso pode ser feito mediante a publicação de balanços. “Geralmente, um determinado percentual fica com a paróquia local para ela poder realizar os seus trabalhos e outro percentual vai para a igreja nacional. Muitas paróquias, na maioria das vezes, [também] precisam realizar eventos para cobrir suas despesas anuais. As contribuições são destinadas a serviços diaconais e sempre há a prestação de contas nas assembleias, concílios, indicando quanto foi arrecadado ao longo do ano e para onde as contribuições foram destinadas”, frisa ela.
Nessa questão, a da prestação de contas, reside a principal diferença entre as igrejas neopentecostais e as tradicionais. E a explicação está no cerne da teologia da prosperidade.
Conforme explica o sociólogo Edin Sued Abumanssur, coordenador do curso de Ciência da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e líder do Grupo de Estudos do Protestantismo e Pentecostalismo da mesma instituição, a teologia da prosperidade “monetizou o sacrifício”.
Porque o que justifica essas doações, segundo a teologia da prosperidade, é uma maneira de exercer um sacrifício a Deus, expressando um compromisso “em uma batalha espiritual”, fundamenta o pesquisador.
“Sacrifício não é uma coisa exclusiva dos neopentecostais. A maioria das religiões trabalha com essa ideia. Mas se o catolicismo popular tem coisas como ‘ir para Aparecida a pé’ para conseguir uma graça, ‘fazer promessa para algum santo’, ‘jejuar’, a inovação neopentecostal é a monetização do sacrifício”, explica Abumanssur. “É a maneira como o fiel assume seu compromisso com o lado divino, o lado de Deus na batalha. E, por essa lógica, Deus abençoa conforme o sacrifício.”
Segundo ele, essa monetização “representa o poder, a profundidade e o tamanho do compromisso” e “quanto maior o compromisso, maior deve ser a bênção de Deus”. Desta forma, uma pessoa pobre que doa um valor considerado pequeno está fazendo um sacrifício maior do que aquele que têm muitas posses e doa uma quantidade considerada alta — mas que não interfere em seu dia a dia.
“E não existe a prestação de contas. Os fiéis não estão nem aí para isso, porque o conta para ele é o compromisso dele com Deus. Não interessa o que o pastor vai fazer com esse dinheiro, não é mais problema do fiel se vai servir para uma obra de caridade, e essas igrejas fazem muitas obras de caridade, se vai servir para financiar um deputado ou para comprar um iate”, argumenta o sociólogo.
“A teologia da prosperidade não trabalha com dinheiro. Trabalha com o sacrifício, que é monetizado pelo dinheiro”, resume. “O dinheiro é o mediador do sacrifício.”
‘Moeda de troca’
Nas últimas décadas o que se viu também foi a disseminação, em igrejas neopentecostais fundamentalistas, da ideia da teologia da prosperidade.
Para especialistas, isso provocou uma distorção da explicação e da finalidade do dízimo.
“Essa teologia da prosperidade trouxe a ideia de que você não somente obedece a um mandamento de Deus devolvendo a décima parte como fidelidade à obrigação dele de abençoar, mas que a sua oferta criaria um compromisso de Deus com você”, diz Moraes.
“Essa teologia diz que se você foi fiel a ele, pagando, ele também vai ser fiel a você, abrindo as portas do céu para você, recompensando-o com riqueza, bênção, saúde e que tudo vai dar certo.”
O dízimo então passou a ser moeda de troca.
“E a teologia da prosperidade leva adiante esse discurso, olhando do ponto de vista do negócio, ou seja, que todo negócio pode ser incrementado”, explica o historiador.
“Aparecem as correntes de oração que pedem ofertas, o pastor que tem um discurso no meio do culto dizendo que está tendo a revelação de Deus que alguém ali vai doar R$ 100 mil para a causa do Senhor e coisa e tal. Tem gente que vê e faz esse tipo de oferta, incentivado pelo discurso.”
E há os testemunhos motivadores.
“Gente que vai ao púlpito para dizer que fez exatamente o que o pastor mandou e ‘a vida prosperou’. Isso dá uma legitimidade ao modelo”, comenta Moraes.
“É preciso distinguir as contribuições destinadas à sustentação de uma igreja que desenvolve um serviço público, de natureza espiritual e social, da exploração da fé popular em proveito próprio, que pode acontecer em qualquer época, mas se tornou particularmente escandalosa nos tempos atuais”, salienta Ribeiro Neto.
“É muito difícil fazer essa distinção, entre o serviço público e a apropriação privada, sem incorrer em preconceitos e estereótipos, mas é uma necessidade premente em nossas sociedades.”
Padre Brandão também acredita ser importante diferir uma coisa da outra.
“Muitas igrejas evangélicas pentecostais, com essa teologia da prosperidade, vendem a ideia de que ‘quanto mais eu der, mais eu vou receber’, como se estivéssemos negociando com Deus”, critica ele.
Para o historiador Moraes, a teologia da prosperidade vive um momento de verdadeira encruzilhada sociopolítica, justamente por muitos daqueles que a disseminam serem apoiadores do atual presidente Jair Bolsonaro e a situação da economia.
“Essa teologia só funciona quando você tem um sociedade prosperando economicamente”, contextualiza ele.
“Por isso há uma relação umbilical entre religião e política.”
O vaticanista Domingues concorda que as igrejas neopentecostais tendem a dar uma “ênfase muito grande na questão do sucesso individual e da prosperidade material”, com a a ideia de “que aquilo que você dá para a igreja de alguma forma vai voltar para você, levando-o a um sucesso material”.
“E eles [os pastores] dizem claramente quanto querem, pedem… Não podemos generalizar mas é muito comum essa interpretação desvirtuada daquilo que é o dízimo”, diz Domingues.
“Em vez de ser uma coisa para sustentar a ação da igreja e da caridade, passa a ser entendido como um investimento individual espiritual e material, na linha do ‘eu invisto para tirar algum benefício disso depois’.”
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